quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Tiago Cavalcanti* - O valor da biodiversidade

- Valor Econômico

Como qualquer gestor de riscos temos o dever de minimizar a possibilidade de perdas irrecuperáveis

A minha família é de ativistas ambientais. Eu, apesar de ser amante da natureza e das atividades integradas à mesma, nunca fui ativista ambiental. Escrever sobre a questão para mim não é fácil. Mas o tema é importantíssimo e não podemos nos omitir.

De acordo com os cientistas, nunca na história da humanidade a biosfera, que é o conjunto de todos ecossistemas a garantir e sustentar a vida humana, esteve tão ameaçada.

A natureza, de forma geral, provê a energia necessária para as nossas atividades, os alimentos para o consumo e as matérias primas para os bens que produzimos. Além disso, a natureza regula nosso clima e a degradação do meio ambiente está intimamente ligada à proliferação de vírus que podem ser transmitidos dos animais para os humanos.

Assim, a destruição crescente da biosfera implica risco sistêmico à nossa existência. Representa pelo menos grave ameaça à forma de vida que atualmente conhecemos, levando em conta que o progresso econômico trouxe vários benefícios para a humanidade.

Dada a pandemia que estamos vivendo e a confirmação de mais de 1 milhão de mortos no mundo pelo novo coronavírus, em menos de um ano, parece até inverídico falar sobre a transformação que tivemos na nossa saúde nos últimos 100 anos.

O economista escocês Angus Deaton, prêmio Nobel de economia de 2015, caracteriza esses últimos dois séculos da história humana como a “grande fuga”, em que pudemos superar diversos obstáculos que ameaçavam a vida humana (ex., doenças e conflitos) e estender de maneira notável a vida média de cada cidadão na terra.

Para ser mais preciso sobre a “grande fuga”, basta olhar para a expectativa de vida ao nascer em vários países um século atrás e atualmente. No Brasil, a expectativa de vida ao nascer em 1920 era de 35 anos e hoje é de 76.

A melhoria da saúde veio juntamente com o progresso em infraestrutura básica, acesso a diversos bens e serviços, ao lado de um mundo menos autoritário e menos conflituoso.

Observe que a última sentença não faz um julgamento de valor absoluto, mas sim relativo.

Isso não implica afirmar que hoje vivemos num planeta livre de problemas. Ao contrário, o progresso econômico não foi igual para todos os países e dentro de um mesmo país o progresso beneficiou algumas pessoas mais que outras.

Há vários desafios importantes que a humanidade enfrenta atualmente. Um desses mais ameaçadores desafios diz respeito à velocidade que estamos usando nossos recursos naturais e depredando nossos ecossistemas. Tudo, de certa forma, está intimamente ligado ao nosso desenvolvimento após a “grande fuga”.

Existe ampla e crescente evidência científica de que estamos demandando de forma insustentável os serviços da natureza. Dois estudos recentes mostram nitidamente esse problema. Relatório do Kew Garden de Londres, “Estudo Mundial das Plantas e Fungos”, divulgado no Valor no último dia 30 de setembro, apresenta fortes conclusões.

Primeiro, há uma variedade de plantas e fungos, que podem ser diretamente úteis para a humanidade (produção de alimentos, energia e medicamentos), sendo ainda descobertas. Ao mesmo tempo, duas em cada cinco espécies de plantas estão ameaçadas de extinção nas próximas décadas.

Além disso, é incrível a especialização humana. De acordo com esse estudo, apenas 15 plantas fornecem 90% dos alimentos no mundo.

Ou seja, a humanidade está extinguindo parte do seu capital natural mesmo antes de explorar seus potenciais benefícios.

Um outro estudo importante, ainda a ser publicado, é o “Dasgupta Review”, sobre a economia da biodiversidade, encomendado pelo governo do Reino Unido para avaliar os benefícios da biodiversidade e os custos econômicos de sua perda. As conclusões são semelhantes às detalhadas no estudo do Kew Garden.

O professor Partha Dasgupta é meu colega na Universidade de Cambridge e vem se dedicando ao estudo das questões ambientais desde dos anos 70. Ele faz uma importante analogia sobre o papel da biodiversidade. Assim como no mercado financeiro, um portfólio diversificado de ativos naturais - maior biodiversidade - reduz os riscos e incertezas, aumentando a resiliência da vida como um todo.

O caso brasileiro é emblemático. A floresta tropical amazônica possui uma biodiversidade incomparável, compreendendo a área mais rica do mundo, incluindo um grande número de micróbios, espécies de plantas e animais, com novas espécies adicionadas regularmente.

Estima-se que um terço de todas as espécies mundiais habita a floresta tropical amazônica. Na verdade, a distribuição de flora desconhecida na Amazônia tem sido subestimada há muito tempo e a biodiversidade vegetal provavelmente inclui pelo menos 3 vezes mais espécies de plantas na Amazônia do que as conhecidas atualmente. Plantas com potencial energético, econômico e farmacêutico importante.

Existem indicações de que partes significativas da Amazônia podem deixar de ser floresta fechada para se transformar numa savana aberta com menor biodiversidade, resultante da destruição implacável e incessante das árvores, afetando também nosso clima

Achava-se que isso não seria possível com a Amazônia ou que demoraria muito tempo. Ocorre que esse ponto de inflexão parece bem próximo de acontecer. Segundo estudo que acaba de ser publicado pela Nature Communications, até 40% das Amazônia pode se transformar numa savana.

O Centro de Resiliência de Estocolmo mostra que quase metade da Amazônia está sucumbindo. Os incêndios aumentam a cada ano. Em 2020, até agora, já estamos com destruição acima de 60% do que ocorreu em 2019. Destruição que ainda não recebe a devida ação do governo brasileiro.

Nós, brasileiros, precisamos urgentemente de uma visão estratégica para preservar nosso capital natural e abraçar a colaboração internacional. A destruição de tão formidável e rica biodiversidade é uma calamidade contra todo o planeta Terra, afetando diretamente a vida humana e a qualidade de vida das futuras gerações, que por razões óbvias não podem influenciar as políticas atuais.

Os impactos econômicos de longo prazo são difíceis de mensurar e como qualquer gestor de riscos temos o dever de minimizar a possibilidade de perdas irrecuperáveis.

*Tiago Cavalcanti é professor de Economia na Universidade de Cambridge e FGV-SP

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