O embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva dessas eleições
Há uma semana estava eu escrevendo a coluna antes do primeiro debate entre Trump e Biden. Embora não soubesse que seria o show de deselegância, truculência, e falta de educação que foi, disse que o debate em si pouco mudaria o cenário eleitoral nos EUA por duas razões: muitos eleitores já estavam decididos e a eleição de fato já havia começado – em alguns Estados, é possível votar antes do dia 3 de novembro, assim como se pode enviar o voto por correio. No dia seguinte, quando a coluna foi publicada no jornal, fiz um post-mortem do debate no meu canal do YouTube. Mal sabia que tudo estava prestes a virar de ponta cabeça já que àquela altura – do pouco que se sabe sobre a linha do tempo – Trump já estava infectado. De lá para cá, soubemos que a Casa Branca se tornou um “covidário”, que no evento de nomeação da indicada para a Suprema Corte várias pessoas do círculo íntimo de Trump se infectaram, que o homem inabalável – imagem que adora projetar de si – passou três dias no hospital com o que parece ser um quadro mais grave de covid-19 do que os médicos estão dispostos a revelar.
Seguindo
o script do reality show que já tem quase quatro anos de duração, Trump deu
alta a si próprio no início da semana e voltou para a Casa Branca ainda no
período contagioso e, nas palavras dos próprios médicos, não fora de perigo.
Para projetar a imagem de homem forte que venceu o vírus, ainda que o vírus
nele ainda esteja sabe-se lá fazendo o quê com o corpo frágil de um idoso com
comorbidades, Trump desceu do helicóptero, subiu escadas, tirou a máscara. As
imagens do vídeo capturaram com nitidez o esforço que fazia para respirar no
momento em que removia a máscara e expunha fotógrafos e outros funcionários da
Casa Branca às partículas virais que expelia. Por certo, seus apoiadores viram
apenas a imagem intencionada, a do homem e seu vírus, do homem sem seu vírus
como que por milagre. Qual o impacto desse teatro para as eleições? A resposta
depende, em parte, do vírus.
Como
bem sabem os especialistas, Trump ainda está no período crítico, aquele em que
a doença pode se agravar a qualquer momento. Até o médico responsável por
cuidar do presidente, o mesmo das ofuscações e das meias palavras para a
imprensa, foi claro ao dizer que só estará mais tranquilo depois da próxima
segunda-feira. Caso o quadro de Trump se agrave antes disso, a bravata terá
sido em vão e a campanha do republicano estará definitivamente encerrada. Se
for esse o desfecho, o mais provável é que Trump perca para o adversário
democrata Joe Biden, sobretudo após as recentes falas sobre a doença e o vírus.
Para quem não está acompanhando tão de perto, Trump disse que a covid-19 não é
nada a temer – embora tenha matado mais de 210 mil pessoas nos EUA – e voltou a
afirmar como fazia em março que a doença não passa de uma gripezinha. Para
completar, disse que a população tem que aprender a conviver com o vírus, que a
economia não pode parar, e que não é o momento de discutir pacotes de estímulo
fiscal como fazia o Congresso antes de sua internação. Se for para dar mais
recursos para a economia, enfatizou Trump, isso só ocorrerá depois das
eleições.
Ainda
que essas palavras o prejudiquem, há outra possibilidade. Recebendo os melhores
tratamentos que a medicina de ponta pode oferecer, não é irrazoável que Trump
se recupere. Nesse caso, a bravata terá valido a pena. A imagem do homem forte
que combateu o vírus e venceu se implantará no imaginário norte-americano que
ainda acredita na suposta excepcionalidade do país. A presunção de uma nação
imbatível personificada por Trump poderá ameaçar seriamente as chances de
Biden, ainda que o comportamento do presidente tenha sido condenável e que a
gestão da epidemia tenha sido um desastre. Vejam: o imaginário americano não se
move por sentimentalismos ou simpatias à la “facada de Bolsonaro”. O imaginário
americano se move pela ideia de heroísmo e invencibilidade. É desse mito que
Trump se alimenta para mesmerizar os suscetíveis, e não são poucos os
suscetíveis.
O
embate travado entre Trump e o vírus poderá, portanto, ser a batalha decisiva
dessas eleições. Trata-se agora da interação entre o sistema imune
possivelmente turbinado por medicamentos ainda em fase de ensaio clínico e as
artimanhas insidiosas do Sars-CoV-2. A política, assim como a economia, jamais
dependeu tanto da medicina.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e Professora da Sais/Johns Hopkins University
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