segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O futuro do acordo Mercosul-EU – Opinião | O Estado de S. Paulo

A escalada do desmatamento, entre outros danos colaterais, tem-se mostrado o principal entrave à ratificação do Acordo Comercial entre os dois blocos

É uma característica irreversível de nosso tempo que a agenda geopolítica e econômica fique cada vez mais atrelada à ambiental. No caso do Brasil, a escalada do desmatamento, entre outros danos colaterais, tem-se mostrado o principal entrave à ratificação do Acordo Comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE). Recentemente, o representante da UE em Brasília, Ignacio Ybañez, declarou que até que o Brasil assuma o compromisso de reverter a devastação na Amazônia o Acordo não avançará.

Mas enquanto o governo de Jair Bolsonaro insiste em transferir responsabilidades, maquiar dados e acusar autoridades internacionais de má-fé, forças políticas na Europa e no Mercosul trabalham por uma solução para o impasse. Em pronunciamento na Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu, a chefe da divisão da América do Sul, Véronique Lorenzo, esboçou um mecanismo para melhorar as condições de ratificação do Acordo.

Segundo Lorenzo, a “Iniciativa Amazônia” que vem sendo estudada em Bruxelas seria baseada em dois pilares. Primeiro, uma “declaração conjunta” anexa ao Acordo definindo compromissos ambientais e sociais dos dois blocos. As metas seriam monitoradas por uma agência científica independente e por um comitê formado por integrantes da UE e do Mercosul. O segundo pilar viria na forma de recursos disponibilizados pela UE para combater o desmatamento.

Como que a ilustrar a resistência que o Brasil enfrentará, na mesma sessão o deputado Yannick Jadot, pré-candidato do Partido Verde às próximas eleições presidenciais francesas, manifestou ceticismo: “Bolsonaro será o primeiro a jogar essa declaração no lixo, depois que for assinada”. Para ele e seus correligionários, a declaração será inútil caso não haja mecanismos que obriguem o Brasil a respeitar seus compromissos.

Não há nenhuma razão para que o Brasil, em ligação com os demais integrantes do Mercosul, não crie imediatamente uma força-tarefa para cooperar com as autoridades europeias na montagem desses mecanismos. Afinal, a única coisa que elas esperam é que o País cumpra suas próprias leis, retomando programas bem-sucedidos, como o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, que entre 2005 e 2012 conseguiu reduzir o desmatamento de 27,8 mil km² para 4,6 mil km² – em 2019, o desmate foi de 9,8 mil km².

Além de restaurar a confiança dos europeus, restabelecendo as condições para a ratificação do Acordo, uma ação conjunta nos termos da “Iniciativa Amazônia” facilitaria a criação de fundos que canalizariam recursos para a preservação ambiental. Mais importante: pulverizaria os pretextos do lobby protecionista para sabotar o Acordo.

Hoje, o maior foco de resistência talvez venha do presidente francês, Emmanuel Macron. Para efeito da opinião pública, a motivação é ambiental. Mas sabe-se que o Acordo é um anátema para os influentes fazendeiros franceses. “Macron encontrou uma maneira barata de agradar tanto aos ambientalistas como aos fazendeiros ao se opor ao Mercosul”, disse Jordi Cañas, o principal negociador do Parlamento Europeu para o Acordo. “Mas ainda é protecionismo, camuflado por uma semântica virtuosa.”

O Acordo é o maior já negociado pela União Europeia. Nove países, entre os quais Espanha, Itália, Suécia e Portugal, escreveram ao chefe de comércio da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, argumentando que a não ratificação, além de piorar a questão ambiental, “não só afetará a credibilidade da UE como parceira geopolítica e de negociações, mas também fortalecerá a posição de outros competidores na região”. Em janeiro, Portugal assumirá a presidência rotativa do Conselho Europeu. O Uruguai, que ocupava a presidência do Mercosul, emitiu uma declaração confirmando que o bloco “está disposto a cooperar para desenhar uma declaração adicional para aprofundar os compromissos ambientais desde que eles sejam aplicados a ambas as partes”. Essa é uma janela de oportunidades que o Brasil não pode perder.

Encurralados – Opinião | O Estado de S. Paulo

A União definiu um piso para os professores alheia às realidades dos municípios

Quase 40% dos municípios paulistas – 252 dos 645 – não cumprem a Lei Federal 11.738/2008, que fixou um piso salarial para o magistério público da educação básica. O levantamento inédito, ao qual o Estado teve acesso com exclusividade, foi feito pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP).

Não é que os prefeitos dessas cidades tenham decidido governar à margem da lei ou tenham predisposição para desvalorizar uma das mais importantes categorias profissionais do País. Eles simplesmente não conseguem cumprir o piso dos professores e manter a oferta de outros serviços públicos à população ao mesmo tempo. Trata-se de imperativo aritmético. A conta não fecha.

A origem do problema, pois, remonta à edição daquela lei no governo do ex-presidente Lula da Silva. Em que pese a louvável intenção da União de valorizar o magistério público, houve um claro alheamento da realidade dos municípios, sobretudo dos pequenos, que não têm volume de receitas capaz de suportar a obrigação que lhes foi imposta. A bem da verdade, a União bancou o pagamento do piso nos primeiros anos. Mas, pouco a pouco, o volume de repasses aos entes federativos caiu, ao passo que as despesas com a folha de pagamento dos professores continuaram subindo acima da inflação. O piso foi fixado em R$ 950 para uma jornada de 40 horas quando a lei entrou em vigor. Hoje está em R$ 2.886,24. Ou seja, ao longo de quase 12 anos, o salário dos professores teve um reajuste de 203%. No mesmo período, o salário mínimo aumentou 124% e a inflação acumulada foi de 84% (IPCA).

“Os prefeitos não são contra o piso salarial e querem pagar bem seus professores”, disse Frederico Guidoni, vice-presidente da Associação Paulista de Municípios (APM). “Eles apenas lamentam a obrigação que vem de cima para baixo, sem uma contrapartida da União.” Guidoni resume bem o desafio de muitos prefeitos que assumirão em janeiro de 2021: “Estão encurralados”.

Se em grande parte dos municípios paulistas a situação fiscal já é preocupante hoje, a ponto de prefeitos não terem condições de cumprir uma lei federal, o futuro que se avizinha adquire contornos dramáticos. Por um lado, o notório recrudescimento da pandemia de covid-19 impõe aumento de gastos públicos na área da Saúde e na assistência social aos mais desvalidos. Por outro, a dificuldade dos prefeitos será maior porque uma portaria do Ministério da Educação (MEC) determinou a redução de 8% no repasse federal aos municípios. Diante da necessidade de aumentar gastos, há uma redução de receitas. Como os prefeitos administrarão suas cidades? “Terão de apertar os cintos”, recomendou Guidoni, da APM.

“Apertar os cintos” significa que cortes de gastos precisarão ser feitos – vale dizer, queda na qualidade dos serviços públicos – ou impostos municipais terão de ser majorados. A conta chegará para os munícipes, de uma forma ou de outra.

Não se discute que uma das mais importantes medidas para atrair profissionais qualificados para o magistério público é a valorização salarial. O aumento do poder aquisitivo dos professores é fundamental não só para atraí-los, como também para retê-los no serviço público. Ocioso estender considerações sobre o papel de uma educação pública de qualidade no desenvolvimento de uma nação. Mas não será com medidas impositivas, alheias à realidade local, que se chegará ao fim almejado. A realidade que se impõe é a de uma lei federal que virou letra morta em quase 40% dos municípios do Estado mais rico da Federação. E não por desídia, repita-se, mas por questão de impossibilidade.

Há quem enxergue soluções simples, reduzindo o problema à mera questão de “vontade política” dos prefeitos, como se reais brotassem em orçamentos por manifestação de desejo. Evidente que sempre há melhorias a serem feitas nas gestões municipais, mas nas cidades pequenas, com poucos recursos, não há milagre que alivie o peso de uma lei bem-intencionada, mas mal pensada.

O juiz de garantias – Opinião | O Estado de S. Paulo

Faltam limites a setores da magistratura quando são contrariados seus interesses corporativos

Quase um ano após o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, ter concedido liminar suspendendo por tempo indeterminado a implantação do juiz de garantias, criado pela Lei 13.964/19, um grupo de advogados criminalistas apresentou à Corte um pedido de habeas corpus coletivo pedindo a retomada do julgamento do mérito deste caso.

A Lei 13.964, que altera o antigo Código de Processo Penal de 1941, foi aprovada no final de 2019, depois de tramitar por dez anos no Congresso. Adotado há décadas em vários países europeus, com o objetivo de assegurar a isenção da magistratura criminal, preservar o equilíbrio nas ações penais e garantir a segurança jurídica, o juiz de garantias é o responsável pela condução das diligências e pela salvaguarda dos direitos fundamentais dos presos. Ele atua na fase de produção de provas, de controle da constitucionalidade das investigações e de expedição de mandados de busca e apreensão. Cabe a ele autorizar buscas e apreensões, determinar o trancamento ou a prorrogação do inquérito, adotar medidas cautelares restritivas ao ir e vir do acusado e decidir sobre pedidos de quebra de sigilo bancário e telefônico e de arquivamento. Pela Lei 13.964, uma vez terminada a etapa de instrução e aceita a denúncia do Ministério Público, o processo é transferido para outro juiz, que será responsável pelo julgamento do mérito.

Essa divisão de tarefas sempre causou polêmica nos meios jurídicos. As associações de advogados alegam que, sem essa separação de funções, os juízes criminais têm pouca motivação para revisar eventuais erros cometidos no inquérito e, na maioria das vezes, atribuem excessiva credibilidade aos resultados das investigações em que atuaram. Já a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defende a tese de que os magistrados que conduzem a fase de instrução devem ser os mesmos que julgam o mérito e prolatam a sentença. Para a entidade, a divisão de tarefas atrasa a tramitação dos processos criminais e acarreta problemas de insegurança jurídica. Também lembra que 40% das comarcas judiciais têm apenas um único magistrado. Por isso, a criação do juiz de garantias exigiria realização de concursos e contratação de serventuários num período em que, por causa da crise fiscal, a Justiça carece de recursos até para pagar despesas de custeio.

Nesse embate, fica evidente que, ao suspender por tempo indeterminado a implantação do juiz de garantias, Fux demonstrou provir dos quadros da magistratura. O argumento que invocou é prova disso – a figura do juiz de garantias foi uma “medida feita para depreciar o juiz da causa”, disse ele. Além disso, sua estratégia foi a mesma que usou quando atuou como relator nas ações que questionavam a constitucionalidade do auxílio-moradia concedido pelas diferentes instâncias e braços especializados do Poder Judiciário aos seus membros, como forma de burlar o teto salarial do funcionalismo. Quando não pedia vista e engavetava as ações em seu gabinete, concedia liminar e deixava para as calendas o julgamento de mérito.

Na realidade, esse confronto entre criminalistas e juízes criminais prima, desde o início, mais por seus aspectos políticos do que jurídicos. Do ponto de vista técnico-legal, por exemplo, o habeas corpus coletivo não é o instrumento processual adequado para pedir ao Supremo Tribunal Federal a retomada do julgamento. Mas foi o meio que os criminalistas utilizaram para pressionar publicamente o presidente da Corte para cassar a liminar ou levar o caso a plenário. Por seu lado, com apoio da Ajufe, Fux vem alegando que, se a liminar for suspensa, ela abrirá brechas legais para a anulação da condenação de presos perigosos, o que não é verdade.

Acima de tudo, o que esse embate revela é a falta de limites de alguns setores da magistratura quando seus interesses corporativos são contrariados. As entidades de juízes foram ouvidas pelo Congresso antes da aprovação da Lei 13.964. Contudo, tendo perdido numa votação inquestionável, elas recorreram a expedientes discutíveis para impedir a entrada em vigor de uma decisão aprovada por um Poder independente. 

Uso das redes sociais por facções criminosas exige resposta ágil – Opinião | O Globo

Plataformas digitais precisam ampliar esforços para derrubar conteúdos perigosos ou ilegais

As redes sociais se tornaram um meio de comunicação essencial para o narcotráfico e para as facções do crime organizado. De acordo com uma análise do Instituto Igarapé, elas têm sido usadas tanto no recrutamento da mão de obra criminosa quanto para fazer propaganda dos crimes. Vídeos de execuções bárbaras têm sido publicados em redes como YouTube, Telegram e WhatsApp. “O objetivo não é apenas assustar os oponentes, mas também enviar uma mensagem às comunidades locais demonstrando quem manda”, escreveram em artigo recente na Foreign Policy os pesquisadores Robert Muggah e Pedro Augusto Francisco.

Eles contam que, assim como a polícia usa os posts das redes para investigar as facções, os criminosos seguem de perto as publicações de seus informantes, publicam no Facebook sentenças de morte proclamadas pelos “tribunais do crime”, divulgam vídeos e imagens de julgamentos, execuções ou apenas propaganda dos maus-tratos a que alegam ser submetidos nas prisões. O uso das redes sociais se estende a plataformas inovadoras, mais difíceis de rastrear, como Snapchat ou TikTok.

Não é de hoje que o crime organizado lança mão da tecnologia digital em suas atividades. Basta lembrar que o anonimato garantido pela “internet profunda” é o recurso preferido de traficantes, pedófilos, terroristas ou neonazistas. O uso de plataformas públicas abertas demonstra que empresas como Google ou Facebook não têm agido com a energia e a presteza necessárias para enfrentar os riscos.

Tramita no Congresso um projeto de lei, do deputado Capitão Wagner (PROS-CE), tentando proibir publicações ou compartilhamentos que façam propaganda ou endossem atos criminosos. Como em toda iniciativa do tipo, o risco é impor restrições à liberdade de expressão. Embora o texto tente fazer uma distinção para proteger publicações jornalísticas, científicas, culturais e acadêmicas, na prática nem sempre esse tipo de classificação funciona.

É difícil, também, acreditar que uma resposta legislativa seja capaz de coibir uma atividade exercida, por definição, fora da lei. A principal responsabilidade cabe às plataformas digitais, sempre mantendo o respeito às leis que protegem a privacidade e a liberdade de expressão. “Agências de inteligência e investigadores criminais precisarão rastrear atividades”, dizem Muggah e Francisco. “Companhias de tecnologia precisam ampliar os esforços para monitorar e derrubar conteúdos perigosos. E os grupos de direitos digitais e consumidores precisam se manter vigilantes para impedir os governos e as empresas de irem longe demais.”

O risco do transporte clandestino – Opinião | O Globo

Fiscalização falha permite viagens em veículos precários e ameaça a vida dos passageiros

Num intervalo de pouco mais de uma semana, o Brasil assistiu perplexo a dois acidentes gravíssimos. Em 25 de novembro, um ônibus da Star Viagens e Turismo, que transportava 50 trabalhadores para uma tecelagem, colidiu com uma carreta na Rodovia Alfredo de Oliveira Carvalho, em Taguaí, interior de São Paulo. Morreram 41. Nove dias depois, um ônibus da Localima que seguia de Mata Grande (AL) para São Paulo despencou de um viaduto da BR-381 em João Monlevade (MG). Morreram 19 passageiros. Nenhum dos dois veículos tinha autorização para fazer o que fazia. Os episódios expõem a tragédia do transporte clandestino no país.

O ônibus da Star Turismo não tinha registro nas agências estadual e federal de transportes e, portanto, trafegava irregularmente. Era prática corriqueira, como comprovam as 11 multas por transporte irregular, má conservação e outros problemas. O veículo estava com IPVA, licenciamento e DPVAT atrasados. O motorista alegou que perdera os freios e, para não bater no veículo da frente, que andava em velocidade reduzida, precisou invadir a pista contrária, colidindo com uma carreta.

No acidente em João Monlevade, o ônibus da Localima também não tinha registro para fazer transporte de passageiros. Um indício da reincidência são as seis multas emitidas desde 2019 pelas autoridades de Minas, por irregularidades como transporte clandestino, excesso de peso e problemas no tacógrafo. A polícia suspeita que o acidente tenha sido provocado por uma falha no sistema de freios.

O transporte pirata é uma realidade num país onde as normas de trânsito são atropeladas sem qualquer cerimônia. Nas metrópoles, é notória a concorrência predatória de Kombis e vans com as linhas de ônibus regulares. É uma atividade que põe em risco a vida dos passageiros e causa prejuízo às empresas que operam na legalidade. Nas estradas, o perigo viaja a bordo dos ônibus clandestinos de turismo. São milhares percorrendo rodovias de todo o país em condições precárias de manutenção, com funcionários nem sempre habilitados para a função.

É verdade que os veículos são multados, como ocorreu com os dois ônibus envolvidos nos acidentes. Mas está claro que isso é insuficiente para interromper a trajetória dos piratas. Até porque as multas raramente são pagas. O poder público finge que fiscaliza, e as empresas fingem que obedecem. Raramente o festival de bandalhas leva à apreensão. Não deveria ser difícil fiscalizar ônibus que, por motivos óbvios, sempre se deslocam de um ponto a outro e estão sujeitos a inspeções.

Os veículos clandestinos costumam oferecer aos passageiros um atrativo: o preço mais baixo em relação ao transporte regular. Mas a vantagem é só uma ilusão. A tarifa não leva em conta o preço pago por viajar em veículos de idade avançada, em condições precárias de manutenção, que muitas vezes não passam pelas inspeções obrigatórias em que são verificados os equipamentos de segurança. Os clandestinos podem oferecer viagens mais baratas. Só que muitas vezes elas não têm volta.

Divórcio amigável – Opinião | Folha de S. Paulo

Saída do Reino Unido da UE deixa pontos em aberto, mas evita ruptura caótica

Após quatro anos de exaustivas negociações e às vésperas do prazo limite de 31 de dezembro, foi concluído o acordo que consuma a saída do Reino Unido da União Europeia e dá início a uma nova era nas relações entre as partes.

O entendimento, ainda por ser ratificado em todas as capitais, cobre essencialmente o comércio de bens (a UE é o destino de 46% das vendas britânicas), que continuará a fluir sem imposição de tarifas ou cotas, mas com regras mais restritivas que as do mercado comum.

Evita-se com isso o cenário caótico de imposição súbita de custos e barreiras a partir de 2021.

Pode-se dizer que dentro das circunstâncias houve vitória para todos. O ponto-chave para os britânicos era quebrar qualquer subordinação à legislação do bloco europeu, objetivo sempre repetido pelo primeiro-ministro Boris Johnson.

Já a UE queria garantir salvaguardas para manter equilíbrio econômico nas relações comerciais, o que na prática significa limitar o espaço para que o parceiro, liberto das obrigações com o bloco, possa obter vantagens com práticas como subsídios e regras ambientais e trabalhistas mais brandas.

Ao final, foi negociado um mecanismo de arbitragem de disputas, a ser conduzido por um painel independente, sem jurisdição da corte europeia, fronteira política principal para Johnson.

Como é típico em negociações desse tipo, houve pontos de controvérsia menores, que por meses dificultaram o acordo. Um dos principais dizia respeito às regras de pesca, setor que movimenta uma ínfima fração do comercio.

Finalizado o acerto, o foco agora se voltará para consequências e custos econômicos. Apesar da ausência de tarifas, haverá uma fronteira e checagens aduaneiras, o que deve perturbar a fluidez logística, ao menos inicialmente.

Itens burocráticos como aprovação de produtos e validação de diplomas e especialidades não serão sempre automáticos, o que trará incerteza e maiores custos para empresas e consumidores.

O acordo tampouco cobre o comércio de serviços, no qual o Reino Unido é superavitário, tema que ainda demandará negociações.

Cálculos do governo britânico apontam para uma perda de até quatro pontos percentuais no Produto Interno Bruto do país a longo prazo em decorrência da saída do bloco europeu, custo que poderia ser 50% mais alto se o desenlace não tivesse sido amigável.

O divórcio deixa pontos em aberto, portanto. Mas construiu-se uma plataforma concreta que viabiliza negociações amplas —também em temas como segurança, combate ao terrorismo e proteção de dados. Os vizinhos, apesar da separação, continuam a partilhar interesses.

Ciência paulista – Opinião | Folha de S. Paulo

Estado promete manter recursos da Fapesp em 2021, mas arranjo deixa dúvidas

Aprovado recentemente, o Orçamento do estado de São Paulo para 2021 corta recursos da ciência, mas promete, ao mesmo tempo, recompor a dotação perdida.

O texto corta 30% dos recursos da Fapesp, fundação estadual que financia ciência em universidades e em institutos de pesquisa. A estimativa é de R$ 455 milhões a menos nos laboratórios paulistas.

Entretanto a mesma lei prevê um ajuste por decreto governamental para que a Constituição estadual seja cumprida —com repasse de 1% da receita do ICMS à entidade, e não do 0,7% proposto.

Quase metade da ciência nacional tem a participação da Fapesp. Neste ano, por exemplo, 60% da ciência produzida pelo Butantan —o instituto à frente da produção da vacina Coronavac, aposta do governador João Doria (PSDB) na pandemia— tem verba da fundação.

Ela fomenta a atividade científica por meio de bolsas pagas a pesquisadores e de auxílios em diferentes programas. Nos dois casos, os contratos podem durar até dez anos. A previsibilidade de recursos, portanto, é fundamental para a gestão dos aportes.

O arranjo heterodoxo encontrado para preservar os recursos da Fapesp causa justificada preocupação. O governo tucano, afinal, já tentou, por meio de um projeto de lei deixado de lado, apropriar-se das sobras de caixa da fundação.

Depois, a proposta orçamentária para o próximo ano previu a desvinculação de receitas da entidade com base na emenda constitucional 93, de 2016, que buscou tornar mais flexíveis as despesas públicas. Após a má repercussão da ideia, o Bandeirantes se comprometeu a garantir as verbas.

Será a primeira vez, no entanto, que elas dependerão de uma assinatura do governador.

Compreende-se, decerto, a necessidade de ajustes nos gastos estaduais, ainda mais no cenário de crise agravada pela pandemia de Covid-19. A investida sobre a dotação da Fapesp, porém, parece trazer mais problemas que soluções.

O modelo que garante a autonomia da fundação, baseado na reserva de uma parcela fixa da arrecadação tributária, tem funcionado a contento. Com alguma previsibilidade das receitas, é possível planejar a longo prazo —arcando com as consequências, também, de eventuais escolhas erradas.

Se o governo estadual entende que há excessos ou distorções nesse gasto, deveria expor mais claramente seus argumentos.

Crédito deve se desacelerar com fim do apoio do governo – Opinião Valor Econômico

Caso se confirme o abismo fiscal previsto para o início de 2021, talvez seja necessário sustentar o crédito por mais tempo para evitar novo mergulho recessivo

O crédito bancário foi um dos pilares de sustentação da economia na crise do coronavírus, puxado pelo corte da taxa básica de juros, novos subsídios, forte injeção de liquidez em reais e alívio nas regras prudenciais do sistema financeiro. No próximo ano, deverá ter um papel menos importante, devido ao fim de muitos desses programas oficiais, justamente quando a economia deverá sofrer um baque com a redução dos estímulos fiscais.

Dados divulgados pelo Banco Central mostram que, nos 12 meses encerrados em novembro, o crédito bancário apresentou um crescimento de 15,6%. À primeira vista, parece ter havido uma forte aceleração em relação ao ano anterior, quando avançara apenas 6,5%. Mas uma análise mais detalhada dos dados mostra que, na verdade, a oferta de financiamentos ao setor privado não cresceu de forma tão robusta.

Nos últimos anos, as grandes empresas vinham deslocando as suas fontes de financiamento do sistema bancário para o mercado de capitais. Já em fins de 2019 esse mercado começou a perder dinamismo, em virtude da desvalorização de papéis, que provocou queda nas cotas de alguns fundos de investimento. Com a pandemia, o mercado de capitais teve uma parada. Cresceu apenas 3,5%, bem menos do que a alta de 35% observada um ano antes.

Grandes empresas deslocaram a sua fonte de financiamento para os bancos, sacando linhas pré-contratadas para fortalecer o caixa nesse período de incerteza. Em 2019, o estoque de crédito bancário às grandes empresas havia caído 4% e, em 2020, apresentou uma expansão de 14,5%.

Nos primeiros meses após o choque do coronavírus, os financiamentos às micro, pequenas e médias empresas se mantiveram contidos. Deslancharam apenas quando o governo e o Congresso aprovaram novas linhas de crédito direcionado, com subsídios orçamentários. Também ganharam impulso depois que o Banco Central adotou medidas de assistência de liquidez que foram usadas por muitas instituições financeiras especializadas em empresas menores.

O crédito a pessoas físicas, por sua vez, apresentou uma grande desaceleração inicial. Pesou, em particular, a queda no volume de operações com cartão de crédito à vista, devido às medidas de distanciamento social. Mais recentemente, o fluxo de empréstimos começou a se normalizar, com a providencial ajuda dos agressivos cortes na taxa básica de juros pelo Banco Central. Nos 12 meses até novembro, o crédito às famílias cresceu 10,9%, muito próximo de recuperar a velocidade do ano anterior, de 11,9%.

Um dos aspectos menos reconhecidos nesta crise foi o papel do crédito para evitar uma recessão mais grave em 2020. Foi um trabalho penoso. Muitos dos novos programas não funcionaram num primeiro momento e precisaram de ajustes. O saldo, apesar desses contratempos, é positivo, comparando com as dificuldades em outros países, como os Estados Unidos, para canalizar financiamentos para a economia.

A dúvida é o que vai ocorrer no ano que vem, quando os subsídios de diversos programas vão acabar. A projeção do Banco Central, divulgada no Relatório de Inflação, aponta uma expansão de 7,8% do mercado de crédito bancário. Boa parte dessa desaceleração se deve aos empréstimos direcionados, entre os quais se encontram as linhas subsidiadas, que terão avanço de apenas 3,3% em 2021, bem abaixo dos 15,2% estimados pelo BC para este ano.

Os empréstimos livres também devem crescer menos, 11%, ante os 15,2% estimados para este ano. A premissa do Banco Central é que, em 2021, o mercado de capitais vai recuperar o seu fôlego, deslocando as grandes empresas que ao longo de 2020 tomaram financiamentos bancários.

Já o crédito às pessoas físicas deverá ter uma alta de 10,6%, mais ou menos em linha com o avanço neste ano. Embora a baixa de juros crie um ambiente favorável para empréstimos, o risco fiscal e a perspectiva de normalização da política monetária já afetam os custos de captação dos bancos. As famílias também estão mais endividadas, e o mercado de trabalho segue desfavorável.

O natural é que, depois de um ano atípico, que exigiu uma forte intervenção do governo, o mercado de crédito volte a andar com as próprias pernas. Mas, caso se confirme o abismo fiscal previsto para o início de 2021, talvez seja necessário sustentar o crédito por mais tempo para evitar um novo mergulho recessivo.

Nenhum comentário: