Pela
direita, mas também pela esquerda, a linguagem política brasileira mimetiza os
temas, os argumentos e até os escândalos teatralizados da ‘guerra cultural’ que
consome os EUA
‘Disseram que eu voltei americanizada, que não
suporto mais o breque do pandeiro e fico arrepiada ouvindo uma cuíca’. A Carmen
Miranda “americanizada” de 1940, baiana caricatural da Broadway, não é nada
perto do Brasil de 2020. Pela direita, mas também pela esquerda, a linguagem
política brasileira mimetiza os temas, os argumentos e até os escândalos
teatralizados da “guerra cultural” que consome os EUA.
O
culto bolsonarista é uma religião de contrabando. Nos EUA, a ala reacionária do
Partido Republicano definiu-se pela tríade “God, guns, gays”. Por aqui, uma
extrema-direita sem tradição macaqueia a missa americana, organizando-se ao
redor de bispos de negócios, difundindo a homofobia e erguendo a bandeira do
“armamento do povo”. No rastro do plágio, o Partido Militar — isto é, os
generais do Planalto, rendidos a um capitão arruaceiro — rasga as cartilhas
antigas que ensinavam as lições da ordem, do planejamento, da hierarquia e da
autoridade.
A direita voltou americanizada: não suporta mais a geometria do progresso de Benjamin Constant ou o sonho integrador de Cândido Rondon. Seus arautos marcham à sombra das bandeiras entrelaçadas dos EUA e de Israel, recitam os versos do America First e, hipnotizados por um guru místico, anunciam a batalha final contra os demônios gêmeos do “globalismo” e do “comunismo”. Eles inscreveram na pedra o ideal de um Brasil isolado, o “pária orgulhoso” de Ernesto Araújo, um missionário da Internacional Cristã, essa relíquia achada entre os destroços da Santa Aliança.
“Drill,
baby, drill!” Sob a égide do negacionismo climático, a direita brasileira
traduz o lema dos fanáticos perfuradores de poços americanos tocando fogo nas
florestas da Amazônia e no Pantanal. O bolsonarismo fala uma língua estranha
que pensa ser inglês.
“Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu
lês negro onde eu leio branco” (William Blake). A esquerda engajou-se no
contrabando antes ainda da direita. Das universidades americanas, em
contêineres lacrados, trouxe as políticas identitárias, a teoria racial
crítica, a crença fundamental de que nosso gênero e a cor de nossa pele
determinam implacavelmente nossas existências, ideias, conceitos e
preconceitos.
Queima
o que adoraste, adora o que queimaste. A esquerda reinventada, falsa baiana,
renunciou às oposições tradicionais e instaurou novos contrapontos, que são
essenciais e, portanto, imutáveis. No lugar de povo/elite ou
proletariado/burguesia, entronizou as dicotomias mulher versus homem, homo
versus hetero, preto versus branco. Daí, desistiu do horizonte da igualdade,
substituindo-o pela reiteração perene da diferença. Escola pública de
qualidade? Não: cotas raciais. Reforma das polícias? Não: reservas de gênero e
raça no Congresso.
A
esquerda brasileira já foi anarquista, modernista, cosmopolita, comunista,
tropicalista e sindicalista — mas, em cada uma de suas encarnações,
conservou-se fiel à convicção de que existe uma nação única, cozida no forno do
passado. Não mais. #MeToo, #BlackLivesMatter: nossa esquerda vive a história
dos outros e já nem sabe mais falar português.
É
um duplo divórcio da realidade brasileira. A extrema-direita enxerga, em meio a
brumas, uma nação sem leis ou instituições, habitada por colonos armados e
pregadores puritanos agarrados a cruzes: os EUA imaginários do faroeste. A
esquerda, por sua vez, confunde seu país com um outro: os EUA das Leis Jim
Crow, da segregação legalizada, do censo que classifica as pessoas em
categorias raciais estanques.
Nas
franjas, a imitação rompe os últimos diques. Surge, pela primeira vez, um
movimento antivacinal no Brasil. Mais realistas que o rei — e em contraste com
o próprio Trump, herói maior —, seus militantes copiam o individualismo
anárquico dos libertários da extrema-direita americana. Simetricamente, pela
esquerda, o “colorismo” ultrarracialista exige a troca de “negros” por
“pretos”, e os mensageiros radicais das políticas identitárias adicionam
letrinhas misteriosas à sigla LGBT para instituir “lugares de fala” cada vez
mais exclusivistas.
Viva Carmen Miranda. Feliz 2021.
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