terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Populismo e democracia na pandemia – Opinião | O Estado de S. Paulo

Na pandemia, o presidente Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo de agir suscitou a reação da sociedade

A edição brasileira de novembro do Journal of Democracy publica o artigo A cartilha populista brasileira, de Amy Erica Smith. Ao analisar os efeitos da pandemia e a reação do governo Bolsonaro sobre o funcionamento das instituições democráticas, a professora de ciência política da Universidade Estadual de Iowa apresenta reflexões pertinentes. A resposta do presidente Jair Bolsonaro à crise sanitária deixou muito a desejar, mas suas evidentes deficiências parecem ter contribuído para uma maior resistência de outras lideranças e para uma reação da sociedade civil.

“Apesar das consequências humanas trágicas e incomensuráveis da covid-19 no Brasil, a doença está provocando um impacto mais ambíguo na saúde da democracia do País”, diz Amy Erica Smith. “Ao evidenciar as fraquezas de Bolsonaro, a pandemia parece ter favorecido um movimento de resistência por parte de outros representantes eleitos.”

Segundo o artigo, “não é simplesmente que a incapacidade de Bolsonaro de conter o coronavírus fortalece o sistema de freios e contrapesos. Os acontecimentos dos últimos meses parecem ter revelado que algumas das ameaças de Bolsonaro eram vazias. (...) À luz desses não acontecimentos, o golpismo de Bolsonaro – ou seja, seu apoio ideológico aberto à intervenção militar – parece cada vez mais ser apenas jogo de cena, uma ameaça que ele faz como aceno a parte de sua base e intimidação da oposição”.

A respeito do comportamento de Bolsonaro na pandemia, a professora de Iowa diz: “Em vez de repressão autoritária, Bolsonaro escolheu uma estratégia mediada que acentua a polarização política e a ‘guerra cultural’ nas redes sociais. Seus objetivos são controlar a informação e promover uma narrativa alternativa da pandemia”.

Como exemplo, Amy Erica Smith cita a defesa que Jair Bolsonaro fez da hidroxicloroquina. “O objetivo de sua gestão ao promover o remédio não parece ser melhorar a saúde pública, mas encorajar os cidadãos a associar suas lealdades afetivas e identidades políticas ao processamento de informações, transformando o julgamento de fatos em questão de intuições e desejos subjetivos.”

Em vez de informar e oferecer orientações seguras para a população, o presidente Bolsonaro optou pela desinformação, politizando as questões. Até mesmo a competência constitucional relativa à saúde pública, compartilhada entre os entes da Federação, foi transformada por Jair Bolsonaro em embate de forças políticas. “Bolsonaro tratou a pandemia menos como uma crise de saúde pública e mais como um desafio de relações públicas”, diz o artigo.

Ao comentar a hostilidade presidencial às medidas de prevenção, que levou a um “tipo peculiar de crise de governança”, a professora de Iowa recorre ao conceito “carências do Executivo”, de David Pozen e Kim Lane Scheppele, em contraste com os “excessos do Executivo”, quando o presidente excede os limites legais às atribuições de seu cargo. Segundo o artigo, “no longo prazo, essa tendência poderá não prejudicar as eleições democráticas, mas afetará a capacidade dos cidadãos de monitorar e responsabilizar seus representantes eleitos”.

Entre os efeitos da pandemia, Amy Erica Smith destaca a reação da sociedade civil. “Sem apoio governamental efetivo, grupos locais em comunidades pobres tiveram que desenvolver redes de auxílio mútuo e regras informais sobre máscaras e isolamento social. A imprensa registrou um florescimento desse tipo de atividade entre associações de bairro, movimentos sociais, igrejas e até mesmo gangues”, diz. Mesmo rejeitando a ideia de uma idealização das instituições comunitárias, a professora de Iowa reconhece que “tais movimentos podem servir de apoio a uma forma de democracia local, participativa e não oficial”.

Na pandemia, Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo de agir suscitou a reação da sociedade. Melhor seria que o governo cumprisse seu papel, mas isso não impede de reconhecer que a sociedade reagiu. E essa reação, mesmo com todas as limitações, é sempre um óbice aos populismos e autoritarismos.

A Bolsa destoou da crise – Opinião | O Estado de S. Paulo

Mercado de capitais poderá avançar em 2021, se ninguém assustar o investidor

Com mais de 1,5 milhão de novos investidores e recorde na oferta de ações, a Bolsa brasileira (B3) cresceu em 2020 como se o Brasil tivesse atravessado uma fase de prosperidade e criação de empregos. O mercado de capitais foi de longe o setor com melhor desempenho, um resultado até espantoso diante dos principais indicadores da economia real. O Produto Interno Bruto (PIB) do ano deve ter sido 4,40% menor que o de 2019, segundo projeção do mercado. A desocupação oscilou na vizinhança de 13% da força de trabalho e o desastre econômico e social só foi atenuado com muito gasto público emergencial e muito estímulo ao crédito. Mas o setor financeiro festeja e aposta em mais números positivos em 2021.

Boas notícias da Bolsa, no próximo ano, dependerão de importantes fatores extramercado, dizem analistas prudentes. Os donos do capital deverão seguir com muito cuidado a gestão das contas públicas e as condições de solvência do governo. Já estiveram atentos neste ano e em certos momentos preferiram outros destinos, mas, de modo geral, predominaram as condições favoráveis aos negócios na B3.

Juros baixos e menor rendimento das tradicionais contas de poupança atraíram aplicadores nacionais. O número de investidores pessoas físicas chegou a 3,2 milhões, praticamente duplicando. Esse público chegou ao fim do ano com R$ 424 bilhões aplicados em ações. O ingresso desses investidores foi a grande surpresa de 2020, observou o presidente da B3, Gilson Finkelsztain, em entrevista publicada pelo Estado.

A boa disposição dos investidores, especialmente dos nacionais, garantiu demanda para a grande oferta adicional de ações. Com 28 aberturas de capital e um volume considerável de emissões de empresas já atuantes na Bolsa, R$ 117 bilhões em papéis foram lançados em 2020. Em 2019 as emissões haviam atingido R$ 90 bilhões. Bancos de investimento estimam lançamentos de R$ 140 bilhões em 2021.

Mudanças importantes ocorreram dos dois lados do mercado. Empresas menores que as tradicionais estrelas da Bolsa entraram no jogo, buscando nova forma de financiamento. Descrita por analistas como democratização, a novidade se completou com a chegada de grande número de pessoas físicas em busca de rendimento maior que o das contas de poupança e de novas oportunidades de negócios.

Novos lançamentos de papéis, programados por grandes companhias e também por empresas menores e sem tradição no mercado, são esperados para os próximos meses. Com maior participação que em 2020, investidores estrangeiros deverão reforçar a demanda dessas e de outras ações, garantindo, se as expectativas forem confirmadas, mais um ano de prosperidade na B3.

O capital estrangeiro começou a voltar ao Brasil e a outros emergentes no trimestre final de 2020, depois de se mostrar muito arisco durante vários meses. Ações baratas e dólar valorizado favoreceram essa volta, mas outros fatores contribuíram para maior aceitação do risco. A expectativa de um breve início da vacinação contra a covid-19, começando pelo mundo rico, reforçou as apostas numa recuperação econômica mais firme. Grandes bolsas, como a de Nova York, reagiram rapidamente às notícias de avanços nas pesquisas de vacinas. Parte da valorização recente da B3 foi reflexo dessa reação.

Mais capital estrangeiro poderá contribuir para a consolidação de um mercado de ações mais amplo e mais democratizado no Brasil. Poderá também normalizar o mercado de câmbio, eliminando as fortes oscilações do dólar.

A vacinação poderá mudar sensivelmente as perspectivas internacionais. Mas boas notícias do exterior serão insuficientes para eliminar os desajustes brasileiros. O País chega a 2021 com enorme buraco nas contas oficiais, dívida pública próxima de 100% do PIB, baixo potencial de crescimento e um presidente distante dos problemas nacionais, pouco empenhado até mesmo em cuidar da vacinação. Esse presidente estará no radar dos investidores, afetando a movimentação de bilhões de dólares e, se nada mudar, agravando o descompasso entre o Brasil e o mundo.

A hora do saneamento – Opinião | O Estado de S. Paulo

É necessário que o Congresso aprove os vetos da Presidência ao Novo Marco

O cenário do saneamento no Brasil é triplamente adverso. Primeiro, porque a cobertura está abaixo da média de outros países com o mesmo estágio de desenvolvimento. Cerca de 35 milhões de brasileiros não são servidos por água potável e quase metade da população não dispõe de coleta de esgoto.

Segundo, porque o País tem investido bem abaixo da meta para atingir a universalização até 2033, estabelecida em 2013 pelo Plano Nacional de Saneamento (Plansab), de R$ 24,9 bilhões por ano. Na prática, o Brasil investiu apenas metade disso. Para piorar, os investimentos vêm caindo: entre 2014 e 2018 a redução foi de 12,3%.

Em terceiro lugar, há indícios de que a própria meta do Plansab esteja defasada. Um estudo da ABCON-KPMG estima que o investimento médio deveria ser de R$ 37,4 bilhões por ano, montante quase 40% maior do que o previsto pelo Plansab, e 2,6 vezes maior do que o investido em 2018.

Os dados constam de um diagnóstico do Instituto Trata Brasil sobre Investimentos em Saneamento, que, por sinal, registra um quarto fator agravante: as disparidades regionais. Em média, os Estados com os melhores índices de cobertura (em geral no Sudeste, Sul e Centro-Oeste) são os que estão investindo mais e os com menor cobertura (Norte e Nordeste) estão investindo menos.

De acordo com os indicadores da ABCON, apenas três unidades da Federação (São Paulo, Paraná e Distrito Federal) apresentam patamar de investimentos compatíveis com a meta da universalização em 2033. Sete Estados investem abaixo do previsto (entre 50% e 90% do necessário) e 17 investem muito abaixo (menos de 50% do necessário).

Felizmente, o Novo Marco do Saneamento aprovado neste ano facilitou, entre outras coisas, as parcerias, concessões e investimentos privados. Estima-se que os investimentos devem crescer em média 4,1 vezes em relação aos aportes atuais. Entre os 24 Estados com investimentos insatisfatórios, 8 já têm estudos ou projetos de parcerias e/ou concessões em andamento. Os restantes precisam urgentemente de providências para aumentar os investimentos.

A esse respeito, não é possível exagerar a necessidade de o Congresso aprovar os vetos da Presidência da República ao Novo Marco. Sem eles, os contratos atuais das estatais poderão ser renovados por mais 30 anos sem licitação. Não por mera coincidência, a maior resistência vem justamente de bancadas do Norte e Nordeste, que, em escandalosa oposição ao bem-estar de suas populações, se mostram mais empenhadas em preservar os privilégios corporativos das empresas públicas que têm falhado fragorosamente na missão de prover a universalização do saneamento.

Garantir mais concorrência na celebração dos contratos não só é um meio para buscar a maior eficiência possível nos serviços, como atrairá mais investimentos privados, permitindo que os investimentos públicos sejam canalizados às regiões e populações mais carentes e menos atrativas para o mercado.

Um estudo do Ipea identificou que, dos 5.570 municípios nacionais, 961 – essencialmente no Norte e no Nordeste – apresentam alto grau de vulnerabilidade. Esses municípios – em geral com menos de 50 mil habitantes, na zona rural e com populações de baixa renda – exigem que se dê prioridade máxima nas condições de acesso aos recursos públicos. Somados a outros mil municípios em condições precárias, eles totalizam mais de 35 milhões de pessoas.

Segundo a pesquisa, além da alocação em novas obras, o Poder Público – em especial nestes municípios – deve objetivar cada vez mais o aumento da inclusão e a construção de infraestrutura física para acesso ao que é prioritário, de modo a inovar na gestão e acelerar medidas em andamento. Em resumo, trata-se de fortalecer a gestão local, capacitando seus prestadores de serviços e arranjo institucional; apoiando iniciativas que aumentem a eficácia dos investimentos e a autossuficiência da manutenção e operação dos sistemas; e promovendo ações integradas entre os três níveis da administração e entre políticas de temas correlatos ao saneamento, como gestão da água, do solo urbano e do meio ambiente.

O escandaloso reajuste no salário dos prefeitos – Opinião | O Globo

Apesar da crise fiscal, apesar das necessidades criadas pela pandemia, a prioridade deles é outra

O aumento salarial para os prefeitos de pelo menos seis capitais, a começar pelos 47% concedidos a Bruno Covas (PSDB), de São Paulo, comprova que os interesses das castas e corporações políticas são mais resistentes que titânio, ósmio ou irídio. Não importa que o mundo e o país enfrentem a maior pandemia em um século, com efeitos desastrosos nas contas públicas e na vida da população. Não importa que a crise fiscal tenha deixado o Estado brasileiro à beira da bancarrota. Nada disso parece ter a menor importância diante da permissão legal para elevar o próprio salário.

Com reajuste aprovado pelos vereadores, Covas sancionou o aumento em seus próprios vencimentos. De R$ 24,1 mil, passa a receber R$ 35,4 mil. Prevalecesse uma visão minimamente ética do governo, não haveria dinheiro nos cofres públicos para aumentar salários de servidores, tampouco de governantes. As prioridades deveriam ser outras, a saúde em primeiro lugar. Mas a seriedade administrativa parece ter ficado nos palanques depois da vitória eleitoral.

Uma vez elevado o salário do prefeito, várias categorias de servidores também se beneficiam por reajustes em cascata. No caso de São Paulo, 5 mil servidores da elite do serviço público pegarão carona no aumento de Covas, inflando o custo real do reajuste para R$ 500 milhões ao ano, pelas contas do gabinete do vereador Paulo Police Neto (PSD). São recursos que deveriam ter outro destino diante do avanço do novo coronavírus, que forçou o estado e a cidade de São Paulo a endurecerem as medidas de contenção.

Naturalmente, São Paulo não está sozinha na onda de reajustes natalinos. Tucano como Covas, Arthur Virgílio, se não vetar, passará a administração de Manaus a David Almeida (Avante) com o salário do prefeito e do vice reajustados em 50%. Em Salvador, o aumento foi mais modesto. A Câmara elevou em 1,08% a remuneração do prefeito, do vice e estendeu a medida aos secretários. Mas o percentual disfarça o custo real da benesse para os cofres municipais. Caberá ao eleito Bruno Reis (DEM) administrar o impacto do efeito em cascata nas contas do município. Em Curitiba, o prefeito reeleito Rafael Greca (DEM) já deve saber o preço para os cofres públicos do aumento linear de 3,14% aprovado pelos vereadores para todos os servidores públicos, aposentados e pensionistas.

Estava com razão o ministro da Economia, Paulo Guedes, quando defendeu que o Congresso incluísse, no pacote de ajuda a estados e municípios para compensar os efeitos da pandemia, o congelamento dos salários do funcionalismo durante mais um ano. Não conseguiu. Bolsonaro vetou os aumentos distribuídos por deputados e senadores, mas abriu exceção para sua base eleitoral, os policiais. Era um prenúncio do que está acontecendo.

Os mesmos políticos que, quando precisam, vão de pires nas mãos a Brasília atrás de dinheiro esquecem a penúria fiscal quando se trata de defender os próprios interesses e as corporações do funcionalismo.

Violência contra mulher persiste, apesar de avanços na legislação – Opinião | O Globo

Feminicídio brutal contra juíza demonstra que questão transcende as conquistas legais ou jurídicas

O assassinato brutal da juíza Viviane Vieira do Amaral pelo ex-marido, o engenheiro Paulo José Arronenzi, chamou atenção pela brutalidade: inconformado com o divórcio, Arronenzi desferiu 16 facadas nela diante das três filhas que vinham passar com ele a noite de Natal. Tristemente, não se trata de caso isolado.

Tipificado como crime por uma lei de 2015, o feminicídio registra mais casos a cada ano: 929 em 2016, 1.075 em 2017, 1.229 em 2018 e 1.326 no ano passado, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De 13,5% do total de homicídios cujas vítimas são mulheres, passaram a 35,5%.

É verdade que há um tanto de ilusão estatística nesses números, pois o número total de homicídios de mulheres caiu em proporção à população (entre 2015 e 2019, de 4,6 para 3,5 por 100 mil). Mesmo assim, ainda que os crimes tenham apenas passado a ser classificados corretamente, os dados revelam uma realidade inaceitável, tornada ainda mais grave pela pandemia.

Neste ano, simultaneamente a um aumento nas ligações telefônicas denunciando violência doméstica, houve queda nos registros policiais de ameaças, lesões corporais e estupros. É como se, nas quarentenas, muitas mulheres tivessem passado a viver como reféns daqueles com quem se viram forçadas a conviver. Sofrem a violência, mas se veem impossibilitadas de recorrer aos mecanismos para coibi-la.

Em comparação com outros países, o Brasil dispõe de legislação avançada no tocante à violência contra mulheres. As delegacias especiais (1985), a Lei Maria da Penha (2006) e a própria tipificação do feminicídio (2015) demonstram que muita coisa mudou desde o infame caso em que Doca Street foi absolvido do assassinato da socialite Ângela Diniz sob o argumento estapafúrdio da “legítima defesa da honra”.

Mesmo assim, o machismo persiste. Dias atrás um juiz de família afirmou não estar “nem aí” para a Lei Maria da Penha. Mais que as estatísticas, esse tipo de atitude demonstra não se tratar de uma batalha legal ou jurídica. A violência contra a mulher é a expressão de uma estrutura desigual há gerações.

O desafio de reeducar homens e mulheres criados na cultura machista não será vencido apenas por meio da revolta nas redes sociais ou da ação militante. É preciso, antes de tudo, fazer cumprir a lei: quem mata uma mãe diante das filhas deve ser punido com rigor, ao mesmo tempo que se trata da saúde psíquica das meninas.

Além disso, é necessário criar mecanismos que respondam com rapidez às denúncias, amparem as mulheres na necessidade e detenham homens violentos antes dos crimes. Por fim, é essencial promover a cultura de igualdade para que, quando não houver amor, prevaleça o convívio civilizado.

Soberba tucana – Opinião | Folha de S. Paulo

Doria, com ida a Miami, e Covas, com alta salarial, não atentam para simbolismo

Descaso e soberba uniram os tucanos João Doria, governador de São Paulo, e Bruno Covas, prefeito da capital paulista, em erros políticos cometidos nos últimos dias.

Doria frustrou expectativas que ele próprio criara ao adiar a divulgação de dados relativos à eficácia da Coronavac, o imunizante contra a Covid-19 produzido em parceira com a chinesa Sinovac. Descobriu-se, ademais, que o governador havia viajado a Miami, com a mulher, para alguns dias de lazer.

Na mesma semana de Natal, Covas deu-se de presente um reajuste salarial de 46,8%, ao sancionar texto aprovado pela Câmara Municipal que beneficia ainda o vice-prefeito e os secretários municipais, além de elevar o teto para os vencimentos do funcionalismo.

É o governador quem tem mais a perder, sem dúvida, com a desatenção arrogante ao impacto simbólico de seus atos. Afinal, no afã de se fortalecer como postulante ao Planalto em 2022, ele busca se diferenciar do padrão de irresponsabilidade, despreparo e ausência de empatia de Jair Bolsonaro.

Ganhou valiosa oportunidade de assumir o papel de protagonista e equiparar-se aos governantes internacionais que agiram com presteza para dar início à vacinação —e também a chance de desfazer as impressões de oportunismo e individualismo que deixou em sua ainda curta trajetória na vida pública.

O empresário que abraçou a política já havia se desgastado ao abandonar o mandato de prefeito para concorrer ao governo do estado. Na campanha, em que pese a vitória, acumulou desconfianças sobre a retidão de suas convicções ao associar-se à maré bolsonarista.

A viagem desastrada a Miami foi devidamente explorada por Bolsonaro e repudiada até mesmo por correligionários. Na tentativa de minimizar os danos, o tucano divulgou um vídeo com um pedido pouco convincente de desculpas.

Sucessor de Doria no governo municipal, Covas tem decerto ambições menores —o que não autoriza a ligeireza com que tratou do próprio contracheque num cenário de pandemia, desemprego elevado e contas públicas em frangalhos.

Em outro momento poderiam soar razoáveis argumentos como a defasagem salarial acumulada desde 2012 e o reajuste ter sido inferior à inflação acumulada. Agora, a medida reduz a credibilidade de um prefeito que precisa pedir sacrifícios à população.

Elitismo e imodéstia são defeitos desde muito apontados pelos críticos do PSDB, nem sempre justamente. Desta vez, de fato, nomes que encabeçam a renovação do partido não se ajudaram.

Não é grátis – Opinião | Folha de S. Paulo

Justifica-se a revisão de benefícios no transporte de SP, promovida sem cuidado

As tarifas de transporte público de São Paulo e Rio ganharam o debate político nacional a partir de 2013, quando uma proposta de reajuste deu origem a manifestações de rua que se espalharam pelo país com múltiplas outras bandeiras e variados graus de violência.

Naquele ano, o governo Dilma Rousseff (PT) já pedira aos governadores e prefeitos que adiassem altas das passagens de ônibus e metrô, normalmente promovidas em janeiro, numa estratégia canhestra de controle da inflação. Em junho, quando a elevação foi enfim tentada, os mandatários recuaram diante da onda de protestos.

Mesmo que o passado recente não fosse tão explosivo, seria recomendável mais cuidado que o tomado pelo governador paulista, João Doria, e o prefeito da capital, Bruno Covas, ao anunciarem o fim da gratuidade no transporte municipal e intermunicipal para os idosos de 60 a 64 anos.

Os dois tucanos tomaram a providência no apagar das luzes de um ano marcado pelos sacrifícios impostos à população pela pandemia. Pior, poucas semanas após o desfecho da eleição paulistana, vencida por Covas sem que o tema tivesse sido devidamente exposto à sociedade durante a campanha.

A medida, em si, é correta. Passa da hora, aliás, de uma revisão mais ampla da política de descontos e gratuidades para os deslocamentos na capital, que nem sempre segue critérios sociais adequados.

Nessa análise, deve-se ter em mente que o benefício de uns é pago por outros —mais exatamente por todos os contribuintes, ricos e pobres. O que as empresas de ônibus e as estatais responsáveis pelo transporte sobre trilhos deixam de arrecadar com tarifas precisa ser compensado com dinheiro da prefeitura e do governo estadual.

A primeira gasta mais de R$ 3 bilhões anuais em subsídios ao sistema de ônibus; seriam R$ 8,6 bilhões, calculados em 2019, se houvesse o passe livre pleiteado nas jornadas de 2013. No ano passado, o metrô recebeu cerca de R$ 600 milhões da administração paulista.

A subvenção ao transporte coletivo é plenamente justificada. Tratando-se de dinheiro público escasso, entretanto, precisa dar prioridade aos mais necessitados —e o parâmetro mais importante, portanto, deve ser o da renda.

Covas e Doria fariam melhor se apresentassem políticas mais completas de mobilidade urbana, com beneficiários bem selecionados, custos transparentes e desincentivo ao uso do automóvel particular. Ações furtivas e mal explicadas acabam por turvar o debate político e dificultar sua aprovação.

Acordo amigável do Brexit terá um alto custo para britânicos – Opinião | Valor Econômico

A queda de Trump tende a restringir experiências separatistas como esta

O Brexit foi finalizado no apagar das luzes de 2020, quatro anos e meio depois da histórica votação que encerrou a participação do Reino Unido de mais de quatro décadas na União Europeia. Simbolicamente, foi o primeiro divórcio formal a desmentir a presunção otimista de que as relações econômicas internacionais seriam orientadas por acordos de comércio amplos, marcantes da globalização.

A separação marca também, com alguma esperança, o fim do populismo que levou os britânicos a optarem contra sua própria economia. Donald Trump foi mandado embora do comando da maior economia do mundo e talvez não haja mais espaço para outros que tentaram segui-lo, como Boris Johnson, o premiê do Reino Unido.

O Brexit é uma experiência reveladora sobre o que se pode ganhar ou perder pondo fim à tendência de globalização e formação de blocos político-econômicos. É prematuro fazer um balanço final, apenas desenhar tendências. O cálculo simples de que o PIB do Reino Unido encolherá 4% e a renda per capita um pouco mais, é um ponto de partida de que o Reino Unido ficará pior do que antes. E caso não houvesse um acordo de saída, a queda seria de 6%. Sintomaticamente, não há qualquer estimativa que aponte os ganhos do rompimento, em qualquer prazo.

Demagogos como Johnson e Nigel Farage prometeram ganhos com a reconquista da soberania inglesa. O principal deles seria o controle total sobre a migração, sobre a qual os tratados da UE previam mobilidade total entre europeus. O país ganhou controle sobre fluxos migratórios, mas a União Europeia tem idêntico poder do outro lado do Canal. Sem contar os passaportes, que serão reinstituídos para os cidadãos do Reino Unido, nenhum profissional especializado britânico - médicos, engenheiros, arquitetos etc - poderá exercer seu ofício na Europa sem se habilitar e se enquadrar nos requisitos nacionais do país em que escolher atuar. Não se pode chamar isso de progresso, e menos ainda de trunfo.

Em grandes linhas, o acordo com a UE afastou dois fantasmas. O primeiro, o de uma separação sem acordo, catastrófica para o lado mais fraco, o Reino Unido. O segundo, a possibilidade de radicalismo do bloco europeu no tratamento de um trânsfuga. Na maior parte dos casos, os britânicos asseguraram o mesmo tratamento tarifário que tinham antes, mas com condicionantes que podem se voltar contra eles no futuro, dependendo do grau que darão à “independência” que almejam.

Pelo acerto, o Reino Unido poderá determinar regras ambientais, sanitárias, trabalhistas, regulatórias que quiserem. Mas enfrentarão a discordância dos países do continente se procurarem obter inadequadas vantagens competitivas. Os britânicos conseguiram impedir que a corte de Justiça do bloco julgue contenciosos, porém não escaparão de árbitros independentes que ditarão retaliações e limites ao que a legislação britânica possa determinar. A ausência de tarifas foi um ganho.

Mesmo esse ganho é relativo, no entanto. O serviços - de cargas transcontinentais por vias aéreas e terrestres, até o principal, os financeiros que dão lugar mundial à City - mal foram contemplados, ou o foram de maneira desvantajosa aos britânicos. Ainda não há entendimento sobre a equivalência das regras normativas de instituições financeiras entre a ilha e o continente. É possível que bancos ingleses tenham de se adequar às leis de cada país em que decidirem operar, assim como os profissionais liberais terão de fazer.

Custos e dificuldades aumentarão também na agricultura. O Reino Unido importa 75% dos alimentos que consome e o sistema de vigilância sanitário e alfandegário trará mais restrições do que antes. No caso da indústria farmacêutica, testes de segurança e qualidade terão de ser validados no país e na UE.

O acordo foi feito sem animosidades, no final, embora seu resultado seja em grande parte o perseguido pelos líderes europeus: criar fortes desincentivos para quem resolvesse abandonar o bloco. Isso segue a lógica do poder econômico: o Reino Unido depende mais da UE, que consome 40% de suas exportações, do que o contrário - apenas 15% das vendas da UE vão para lá.

Em balanço do acordo, Martin Wolf, principal comentarista econômico do Financial Times, disse que o desenlace foi relativamente favorável no caso das manufaturas, no qual o Reino Unido tem desvantagem competitiva, e bem pior no caso dos serviços, onde tem vantagens competitivas. Cabe aos populistas dourar a pílula. A queda de Trump tende a restringir experiências separatistas como esta.

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