Na
pandemia, o presidente Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse
modo de agir suscitou a reação da sociedade
A edição brasileira de novembro do Journal of Democracy publica o artigo A cartilha populista brasileira, de Amy Erica Smith. Ao analisar os efeitos da pandemia e a reação do governo Bolsonaro sobre o funcionamento das instituições democráticas, a professora de ciência política da Universidade Estadual de Iowa apresenta reflexões pertinentes. A resposta do presidente Jair Bolsonaro à crise sanitária deixou muito a desejar, mas suas evidentes deficiências parecem ter contribuído para uma maior resistência de outras lideranças e para uma reação da sociedade civil.
“Apesar
das consequências humanas trágicas e incomensuráveis da covid-19 no Brasil, a
doença está provocando um impacto mais ambíguo na saúde da democracia do País”,
diz Amy Erica Smith. “Ao evidenciar as fraquezas de Bolsonaro, a pandemia
parece ter favorecido um movimento de resistência por parte de outros
representantes eleitos.”
Segundo o artigo, “não é simplesmente que a incapacidade de Bolsonaro de conter o coronavírus fortalece o sistema de freios e contrapesos. Os acontecimentos dos últimos meses parecem ter revelado que algumas das ameaças de Bolsonaro eram vazias. (...) À luz desses não acontecimentos, o golpismo de Bolsonaro – ou seja, seu apoio ideológico aberto à intervenção militar – parece cada vez mais ser apenas jogo de cena, uma ameaça que ele faz como aceno a parte de sua base e intimidação da oposição”.
A
respeito do comportamento de Bolsonaro na pandemia, a professora de Iowa diz:
“Em vez de repressão autoritária, Bolsonaro escolheu uma estratégia mediada que
acentua a polarização política e a ‘guerra cultural’ nas redes sociais. Seus
objetivos são controlar a informação e promover uma narrativa alternativa da
pandemia”.
Como
exemplo, Amy Erica Smith cita a defesa que Jair Bolsonaro fez da
hidroxicloroquina. “O objetivo de sua gestão ao promover o remédio não parece
ser melhorar a saúde pública, mas encorajar os cidadãos a associar suas
lealdades afetivas e identidades políticas ao processamento de informações,
transformando o julgamento de fatos em questão de intuições e desejos
subjetivos.”
Em
vez de informar e oferecer orientações seguras para a população, o presidente
Bolsonaro optou pela desinformação, politizando as questões. Até mesmo a
competência constitucional relativa à saúde pública, compartilhada entre os
entes da Federação, foi transformada por Jair Bolsonaro em embate de forças
políticas. “Bolsonaro tratou a pandemia menos como uma crise de saúde pública e
mais como um desafio de relações públicas”, diz o artigo.
Ao
comentar a hostilidade presidencial às medidas de prevenção, que levou a um
“tipo peculiar de crise de governança”, a professora de Iowa recorre ao
conceito “carências do Executivo”, de David Pozen e Kim Lane Scheppele, em
contraste com os “excessos do Executivo”, quando o presidente excede os limites
legais às atribuições de seu cargo. Segundo o artigo, “no longo prazo, essa
tendência poderá não prejudicar as eleições democráticas, mas afetará a
capacidade dos cidadãos de monitorar e responsabilizar seus representantes
eleitos”.
Entre
os efeitos da pandemia, Amy Erica Smith destaca a reação da sociedade civil.
“Sem apoio governamental efetivo, grupos locais em comunidades pobres tiveram
que desenvolver redes de auxílio mútuo e regras informais sobre máscaras e
isolamento social. A imprensa registrou um florescimento desse tipo de
atividade entre associações de bairro, movimentos sociais, igrejas e até mesmo
gangues”, diz. Mesmo rejeitando a ideia de uma idealização das instituições
comunitárias, a professora de Iowa reconhece que “tais movimentos podem servir
de apoio a uma forma de democracia local, participativa e não oficial”.
Na
pandemia, Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo de agir
suscitou a reação da sociedade. Melhor seria que o governo cumprisse seu papel,
mas isso não impede de reconhecer que a sociedade reagiu. E essa reação, mesmo
com todas as limitações, é sempre um óbice aos populismos e autoritarismos.
A Bolsa destoou da crise – Opinião | O Estado de S. Paulo
Mercado
de capitais poderá avançar em 2021, se ninguém assustar o investidor
Com mais de 1,5 milhão de novos investidores e recorde na oferta de ações, a Bolsa brasileira (B3) cresceu em 2020 como se o Brasil tivesse atravessado uma fase de prosperidade e criação de empregos. O mercado de capitais foi de longe o setor com melhor desempenho, um resultado até espantoso diante dos principais indicadores da economia real. O Produto Interno Bruto (PIB) do ano deve ter sido 4,40% menor que o de 2019, segundo projeção do mercado. A desocupação oscilou na vizinhança de 13% da força de trabalho e o desastre econômico e social só foi atenuado com muito gasto público emergencial e muito estímulo ao crédito. Mas o setor financeiro festeja e aposta em mais números positivos em 2021.
Boas
notícias da Bolsa, no próximo ano, dependerão de importantes fatores
extramercado, dizem analistas prudentes. Os donos do capital deverão seguir com
muito cuidado a gestão das contas públicas e as condições de solvência do
governo. Já estiveram atentos neste ano e em certos momentos preferiram outros
destinos, mas, de modo geral, predominaram as condições favoráveis aos negócios
na B3.
Juros
baixos e menor rendimento das tradicionais contas de poupança atraíram
aplicadores nacionais. O número de investidores pessoas físicas chegou a 3,2
milhões, praticamente duplicando. Esse público chegou ao fim do ano com R$ 424
bilhões aplicados em ações. O ingresso desses investidores foi a grande
surpresa de 2020, observou o presidente da B3, Gilson Finkelsztain, em
entrevista publicada pelo Estado.
A
boa disposição dos investidores, especialmente dos nacionais, garantiu demanda
para a grande oferta adicional de ações. Com 28 aberturas de capital e um
volume considerável de emissões de empresas já atuantes na Bolsa, R$ 117
bilhões em papéis foram lançados em 2020. Em 2019 as emissões haviam atingido
R$ 90 bilhões. Bancos de investimento estimam lançamentos de R$ 140 bilhões em
2021.
Mudanças
importantes ocorreram dos dois lados do mercado. Empresas menores que as
tradicionais estrelas da Bolsa entraram no jogo, buscando nova forma de
financiamento. Descrita por analistas como democratização, a novidade se
completou com a chegada de grande número de pessoas físicas em busca de
rendimento maior que o das contas de poupança e de novas oportunidades de negócios.
Novos
lançamentos de papéis, programados por grandes companhias e também por empresas
menores e sem tradição no mercado, são esperados para os próximos meses. Com
maior participação que em 2020, investidores estrangeiros deverão reforçar a
demanda dessas e de outras ações, garantindo, se as expectativas forem
confirmadas, mais um ano de prosperidade na B3.
O
capital estrangeiro começou a voltar ao Brasil e a outros emergentes no
trimestre final de 2020, depois de se mostrar muito arisco durante vários
meses. Ações baratas e dólar valorizado favoreceram essa volta, mas outros
fatores contribuíram para maior aceitação do risco. A expectativa de um breve
início da vacinação contra a covid-19, começando pelo mundo rico, reforçou as
apostas numa recuperação econômica mais firme. Grandes bolsas, como a de Nova
York, reagiram rapidamente às notícias de avanços nas pesquisas de vacinas.
Parte da valorização recente da B3 foi reflexo dessa reação.
Mais
capital estrangeiro poderá contribuir para a consolidação de um mercado de
ações mais amplo e mais democratizado no Brasil. Poderá também normalizar o
mercado de câmbio, eliminando as fortes oscilações do dólar.
A
vacinação poderá mudar sensivelmente as perspectivas internacionais. Mas boas
notícias do exterior serão insuficientes para eliminar os desajustes
brasileiros. O País chega a 2021 com enorme buraco nas contas oficiais, dívida
pública próxima de 100% do PIB, baixo potencial de crescimento e um presidente
distante dos problemas nacionais, pouco empenhado até mesmo em cuidar da
vacinação. Esse presidente estará no radar dos investidores, afetando a
movimentação de bilhões de dólares e, se nada mudar, agravando o descompasso
entre o Brasil e o mundo.
A hora do saneamento – Opinião | O Estado de S. Paulo
É
necessário que o Congresso aprove os vetos da Presidência ao Novo Marco
O cenário do saneamento no Brasil é triplamente adverso. Primeiro, porque a cobertura está abaixo da média de outros países com o mesmo estágio de desenvolvimento. Cerca de 35 milhões de brasileiros não são servidos por água potável e quase metade da população não dispõe de coleta de esgoto.
Segundo,
porque o País tem investido bem abaixo da meta para atingir a universalização
até 2033, estabelecida em 2013 pelo Plano Nacional de Saneamento (Plansab), de
R$ 24,9 bilhões por ano. Na prática, o Brasil investiu apenas metade disso.
Para piorar, os investimentos vêm caindo: entre 2014 e 2018 a redução foi de
12,3%.
Em
terceiro lugar, há indícios de que a própria meta do Plansab esteja defasada.
Um estudo da ABCON-KPMG estima que o investimento médio deveria ser de R$ 37,4
bilhões por ano, montante quase 40% maior do que o previsto pelo Plansab, e 2,6
vezes maior do que o investido em 2018.
Os
dados constam de um diagnóstico do Instituto Trata Brasil sobre Investimentos
em Saneamento, que, por sinal, registra um quarto fator agravante:
as disparidades regionais. Em média, os Estados com os melhores índices de
cobertura (em geral no Sudeste, Sul e Centro-Oeste) são os que estão investindo
mais e os com menor cobertura (Norte e Nordeste) estão investindo menos.
De
acordo com os indicadores da ABCON, apenas três unidades da Federação (São
Paulo, Paraná e Distrito Federal) apresentam patamar de investimentos
compatíveis com a meta da universalização em 2033. Sete Estados investem abaixo
do previsto (entre 50% e 90% do necessário) e 17 investem muito abaixo (menos
de 50% do necessário).
Felizmente,
o Novo Marco do Saneamento aprovado neste ano facilitou, entre outras coisas,
as parcerias, concessões e investimentos privados. Estima-se que os
investimentos devem crescer em média 4,1 vezes em relação aos aportes atuais.
Entre os 24 Estados com investimentos insatisfatórios, 8 já têm estudos ou
projetos de parcerias e/ou concessões em andamento. Os restantes precisam
urgentemente de providências para aumentar os investimentos.
A
esse respeito, não é possível exagerar a necessidade de o Congresso aprovar os
vetos da Presidência da República ao Novo Marco. Sem eles, os contratos atuais
das estatais poderão ser renovados por mais 30 anos sem licitação. Não por mera
coincidência, a maior resistência vem justamente de bancadas do Norte e
Nordeste, que, em escandalosa oposição ao bem-estar de suas populações, se mostram
mais empenhadas em preservar os privilégios corporativos das empresas públicas
que têm falhado fragorosamente na missão de prover a universalização do
saneamento.
Garantir
mais concorrência na celebração dos contratos não só é um meio para buscar a
maior eficiência possível nos serviços, como atrairá mais investimentos
privados, permitindo que os investimentos públicos sejam canalizados às regiões
e populações mais carentes e menos atrativas para o mercado.
Um estudo do
Ipea identificou que, dos 5.570 municípios nacionais, 961 –
essencialmente no Norte e no Nordeste – apresentam alto grau de
vulnerabilidade. Esses municípios – em geral com menos de 50 mil habitantes, na
zona rural e com populações de baixa renda – exigem que se dê prioridade máxima
nas condições de acesso aos recursos públicos. Somados a outros mil municípios
em condições precárias, eles totalizam mais de 35 milhões de pessoas.
Segundo
a pesquisa, além da alocação em novas obras, o Poder Público – em especial nestes
municípios – deve objetivar cada vez mais o aumento da inclusão e a construção
de infraestrutura física para acesso ao que é prioritário, de modo a inovar na
gestão e acelerar medidas em andamento. Em resumo, trata-se de fortalecer a
gestão local, capacitando seus prestadores de serviços e arranjo institucional;
apoiando iniciativas que aumentem a eficácia dos investimentos e a
autossuficiência da manutenção e operação dos sistemas; e promovendo ações
integradas entre os três níveis da administração e entre políticas de temas
correlatos ao saneamento, como gestão da água, do solo urbano e do meio
ambiente.
O escandaloso reajuste no salário dos prefeitos – Opinião | O Globo
Apesar
da crise fiscal, apesar das necessidades criadas pela pandemia, a prioridade
deles é outra
O
aumento salarial para os prefeitos de pelo menos seis capitais, a começar pelos
47% concedidos a Bruno Covas (PSDB), de São Paulo, comprova que os interesses
das castas e corporações políticas são mais resistentes que titânio, ósmio ou
irídio. Não importa que o mundo e o país enfrentem a maior pandemia em um
século, com efeitos desastrosos nas contas públicas e na vida da população. Não
importa que a crise fiscal tenha deixado o Estado brasileiro à beira da
bancarrota. Nada disso parece ter a menor importância diante da permissão legal
para elevar o próprio salário.
Com
reajuste aprovado pelos vereadores, Covas sancionou o aumento em seus próprios
vencimentos. De R$ 24,1 mil, passa a receber R$ 35,4 mil. Prevalecesse uma
visão minimamente ética do governo, não haveria dinheiro nos cofres públicos
para aumentar salários de servidores, tampouco de governantes. As prioridades
deveriam ser outras, a saúde em primeiro lugar. Mas a seriedade administrativa
parece ter ficado nos palanques depois da vitória eleitoral.
Uma
vez elevado o salário do prefeito, várias categorias de servidores também se
beneficiam por reajustes em cascata. No caso de São Paulo, 5 mil servidores da
elite do serviço público pegarão carona no aumento de Covas, inflando o custo
real do reajuste para R$ 500 milhões ao ano, pelas contas do gabinete do
vereador Paulo Police Neto (PSD). São recursos que deveriam ter outro destino
diante do avanço do novo coronavírus, que forçou o estado e a cidade de São
Paulo a endurecerem as medidas de contenção.
Naturalmente,
São Paulo não está sozinha na onda de reajustes natalinos. Tucano como Covas,
Arthur Virgílio, se não vetar, passará a administração de Manaus a David
Almeida (Avante) com o salário do prefeito e do vice reajustados em 50%. Em
Salvador, o aumento foi mais modesto. A Câmara elevou em 1,08% a remuneração do
prefeito, do vice e estendeu a medida aos secretários. Mas o percentual
disfarça o custo real da benesse para os cofres municipais. Caberá ao eleito
Bruno Reis (DEM) administrar o impacto do efeito em cascata nas contas do
município. Em Curitiba, o prefeito reeleito Rafael Greca (DEM) já deve saber o
preço para os cofres públicos do aumento linear de 3,14% aprovado pelos
vereadores para todos os servidores públicos, aposentados e pensionistas.
Estava
com razão o ministro da Economia, Paulo Guedes, quando defendeu que o Congresso
incluísse, no pacote de ajuda a estados e municípios para compensar os efeitos
da pandemia, o congelamento dos salários do funcionalismo durante mais um ano.
Não conseguiu. Bolsonaro vetou os aumentos distribuídos por deputados e
senadores, mas abriu exceção para sua base eleitoral, os policiais. Era um
prenúncio do que está acontecendo.
Os
mesmos políticos que, quando precisam, vão de pires nas mãos a Brasília atrás
de dinheiro esquecem a penúria fiscal quando se trata de defender os próprios
interesses e as corporações do funcionalismo.
Violência contra mulher persiste, apesar de avanços na legislação – Opinião | O Globo
Feminicídio
brutal contra juíza demonstra que questão transcende as conquistas legais ou
jurídicas
O
assassinato brutal da juíza Viviane Vieira do Amaral pelo ex-marido, o
engenheiro Paulo José Arronenzi, chamou atenção pela brutalidade: inconformado
com o divórcio, Arronenzi desferiu 16 facadas nela diante das três filhas que
vinham passar com ele a noite de Natal. Tristemente, não se trata de caso
isolado.
Tipificado
como crime por uma lei de 2015, o feminicídio registra mais casos a cada ano:
929 em 2016, 1.075 em 2017, 1.229 em 2018 e 1.326 no ano passado, de acordo com
o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De 13,5% do total de homicídios cujas
vítimas são mulheres, passaram a 35,5%.
É
verdade que há um tanto de ilusão estatística nesses números, pois o número
total de homicídios de mulheres caiu em proporção à população (entre 2015 e
2019, de 4,6 para 3,5 por 100 mil). Mesmo assim, ainda que os crimes tenham
apenas passado a ser classificados corretamente, os dados revelam uma realidade
inaceitável, tornada ainda mais grave pela pandemia.
Neste
ano, simultaneamente a um aumento nas ligações telefônicas denunciando
violência doméstica, houve queda nos registros policiais de ameaças, lesões
corporais e estupros. É como se, nas quarentenas, muitas mulheres tivessem
passado a viver como reféns daqueles com quem se viram forçadas a conviver.
Sofrem a violência, mas se veem impossibilitadas de recorrer aos mecanismos
para coibi-la.
Em
comparação com outros países, o Brasil dispõe de legislação avançada no tocante
à violência contra mulheres. As delegacias especiais (1985), a Lei Maria da
Penha (2006) e a própria tipificação do feminicídio (2015) demonstram que muita
coisa mudou desde o infame caso em que Doca Street foi absolvido do assassinato
da socialite Ângela Diniz sob o argumento estapafúrdio da “legítima defesa da
honra”.
Mesmo
assim, o machismo persiste. Dias atrás um juiz de família afirmou não estar
“nem aí” para a Lei Maria da Penha. Mais que as estatísticas, esse tipo de
atitude demonstra não se tratar de uma batalha legal ou jurídica. A violência
contra a mulher é a expressão de uma estrutura desigual há gerações.
O
desafio de reeducar homens e mulheres criados na cultura machista não será
vencido apenas por meio da revolta nas redes sociais ou da ação militante. É
preciso, antes de tudo, fazer cumprir a lei: quem mata uma mãe diante das
filhas deve ser punido com rigor, ao mesmo tempo que se trata da saúde psíquica
das meninas.
Além
disso, é necessário criar mecanismos que respondam com rapidez às denúncias,
amparem as mulheres na necessidade e detenham homens violentos antes dos
crimes. Por fim, é essencial promover a cultura de igualdade para que, quando
não houver amor, prevaleça o convívio civilizado.
Soberba tucana – Opinião | Folha de S. Paulo
Doria,
com ida a Miami, e Covas, com alta salarial, não atentam para simbolismo
Descaso
e soberba uniram os tucanos João Doria, governador de São Paulo, e Bruno Covas,
prefeito da capital paulista, em erros políticos cometidos nos últimos dias.
Doria
frustrou expectativas que ele próprio criara ao adiar a divulgação de dados
relativos à eficácia da Coronavac, o imunizante contra a Covid-19 produzido em
parceira com a chinesa Sinovac. Descobriu-se, ademais, que o governador havia viajado
a Miami, com a mulher, para alguns dias de lazer.
Na
mesma semana de Natal, Covas deu-se de presente um reajuste
salarial de 46,8%, ao sancionar texto aprovado pela Câmara Municipal
que beneficia ainda o vice-prefeito e os secretários municipais, além de elevar
o teto para os vencimentos do funcionalismo.
É
o governador quem tem mais a perder, sem dúvida, com a desatenção arrogante ao
impacto simbólico de seus atos. Afinal, no afã de se fortalecer como postulante
ao Planalto em 2022, ele busca se diferenciar do padrão de irresponsabilidade,
despreparo e ausência de empatia de Jair Bolsonaro.
Ganhou
valiosa oportunidade de assumir o papel de protagonista e equiparar-se aos
governantes internacionais que agiram com presteza para dar início à vacinação
—e também a chance de desfazer as impressões de oportunismo e individualismo
que deixou em sua ainda curta trajetória na vida pública.
O
empresário que abraçou a política já havia se desgastado ao abandonar o mandato
de prefeito para concorrer ao governo do estado. Na campanha, em que pese a
vitória, acumulou desconfianças sobre a retidão de suas convicções ao
associar-se à maré bolsonarista.
A
viagem desastrada a Miami foi devidamente explorada por Bolsonaro e repudiada
até mesmo por correligionários. Na tentativa de minimizar os danos, o tucano
divulgou um vídeo com um pedido pouco
convincente de desculpas.
Sucessor
de Doria no governo municipal, Covas tem decerto ambições menores —o que não
autoriza a ligeireza com que tratou do próprio contracheque num cenário de
pandemia, desemprego elevado e contas públicas em frangalhos.
Em
outro momento poderiam soar razoáveis argumentos como a defasagem salarial
acumulada desde 2012 e o reajuste ter sido inferior à inflação acumulada.
Agora, a medida reduz a credibilidade de um prefeito que precisa pedir
sacrifícios à população.
Elitismo
e imodéstia são defeitos desde muito apontados pelos críticos do PSDB, nem
sempre justamente. Desta vez, de fato, nomes que encabeçam a renovação do
partido não se ajudaram.
Não é grátis – Opinião | Folha de S. Paulo
Justifica-se
a revisão de benefícios no transporte de SP, promovida sem cuidado
As
tarifas de transporte público de São Paulo e Rio ganharam o debate político
nacional a partir de 2013, quando uma proposta de reajuste deu origem a
manifestações de rua que se espalharam pelo país com múltiplas outras bandeiras
e variados graus de violência.
Naquele
ano, o governo Dilma Rousseff (PT) já pedira aos governadores e prefeitos que
adiassem altas das passagens de ônibus e metrô, normalmente promovidas em
janeiro, numa estratégia canhestra de controle da inflação. Em junho, quando a
elevação foi enfim tentada, os mandatários recuaram diante da onda de
protestos.
Mesmo
que o passado recente não fosse tão explosivo, seria recomendável mais cuidado
que o tomado pelo governador paulista, João Doria, e o prefeito da capital,
Bruno Covas, ao anunciarem o fim da
gratuidade no transporte municipal e intermunicipal para os idosos de 60 a 64
anos.
Os
dois tucanos tomaram a providência no apagar das luzes de um ano marcado pelos
sacrifícios impostos à população pela pandemia. Pior, poucas semanas após o
desfecho da eleição paulistana, vencida por Covas sem que o tema tivesse sido
devidamente exposto à sociedade durante a campanha.
A
medida, em si, é correta. Passa da hora, aliás, de uma revisão mais ampla da
política de descontos e gratuidades para os deslocamentos na capital, que nem
sempre segue critérios sociais adequados.
Nessa
análise, deve-se ter em mente que o benefício de uns é pago por outros —mais
exatamente por todos os contribuintes, ricos e pobres. O que as empresas de
ônibus e as estatais responsáveis pelo transporte sobre trilhos deixam de
arrecadar com tarifas precisa ser compensado com dinheiro da prefeitura e do
governo estadual.
A
primeira gasta mais de R$ 3 bilhões anuais em subsídios ao sistema de ônibus;
seriam R$ 8,6 bilhões, calculados em 2019, se houvesse o passe livre pleiteado
nas jornadas de 2013. No ano passado, o metrô recebeu cerca de R$ 600 milhões
da administração paulista.
A
subvenção ao transporte coletivo é plenamente justificada. Tratando-se de
dinheiro público escasso, entretanto, precisa dar prioridade aos mais
necessitados —e o parâmetro mais importante, portanto, deve ser o da renda.
Covas
e Doria fariam melhor se apresentassem políticas mais completas de mobilidade
urbana, com beneficiários bem selecionados, custos transparentes e desincentivo
ao uso do automóvel particular. Ações furtivas e mal explicadas acabam por
turvar o debate político e dificultar sua aprovação.
Acordo amigável do Brexit terá um alto custo para britânicos – Opinião | Valor Econômico
A
queda de Trump tende a restringir experiências separatistas como esta
O
Brexit foi finalizado no apagar das luzes de 2020, quatro anos e meio depois da
histórica votação que encerrou a participação do Reino Unido de mais de quatro
décadas na União Europeia. Simbolicamente, foi o primeiro divórcio formal a
desmentir a presunção otimista de que as relações econômicas internacionais
seriam orientadas por acordos de comércio amplos, marcantes da globalização.
A
separação marca também, com alguma esperança, o fim do populismo que levou os
britânicos a optarem contra sua própria economia. Donald Trump foi mandado
embora do comando da maior economia do mundo e talvez não haja mais espaço para
outros que tentaram segui-lo, como Boris Johnson, o premiê do Reino Unido.
O
Brexit é uma experiência reveladora sobre o que se pode ganhar ou perder pondo
fim à tendência de globalização e formação de blocos político-econômicos. É
prematuro fazer um balanço final, apenas desenhar tendências. O cálculo simples
de que o PIB do Reino Unido encolherá 4% e a renda per capita um pouco mais, é
um ponto de partida de que o Reino Unido ficará pior do que antes. E caso não
houvesse um acordo de saída, a queda seria de 6%. Sintomaticamente, não há
qualquer estimativa que aponte os ganhos do rompimento, em qualquer prazo.
Demagogos
como Johnson e Nigel Farage prometeram ganhos com a reconquista da soberania
inglesa. O principal deles seria o controle total sobre a migração, sobre a
qual os tratados da UE previam mobilidade total entre europeus. O país ganhou
controle sobre fluxos migratórios, mas a União Europeia tem idêntico poder do
outro lado do Canal. Sem contar os passaportes, que serão reinstituídos para os
cidadãos do Reino Unido, nenhum profissional especializado britânico - médicos,
engenheiros, arquitetos etc - poderá exercer seu ofício na Europa sem se
habilitar e se enquadrar nos requisitos nacionais do país em que escolher
atuar. Não se pode chamar isso de progresso, e menos ainda de trunfo.
Em
grandes linhas, o acordo com a UE afastou dois fantasmas. O primeiro, o de uma
separação sem acordo, catastrófica para o lado mais fraco, o Reino Unido. O
segundo, a possibilidade de radicalismo do bloco europeu no tratamento de um
trânsfuga. Na maior parte dos casos, os britânicos asseguraram o mesmo
tratamento tarifário que tinham antes, mas com condicionantes que podem se
voltar contra eles no futuro, dependendo do grau que darão à “independência”
que almejam.
Pelo
acerto, o Reino Unido poderá determinar regras ambientais, sanitárias,
trabalhistas, regulatórias que quiserem. Mas enfrentarão a discordância dos
países do continente se procurarem obter inadequadas vantagens competitivas. Os
britânicos conseguiram impedir que a corte de Justiça do bloco julgue
contenciosos, porém não escaparão de árbitros independentes que ditarão
retaliações e limites ao que a legislação britânica possa determinar. A
ausência de tarifas foi um ganho.
Mesmo
esse ganho é relativo, no entanto. O serviços - de cargas transcontinentais por
vias aéreas e terrestres, até o principal, os financeiros que dão lugar mundial
à City - mal foram contemplados, ou o foram de maneira desvantajosa aos
britânicos. Ainda não há entendimento sobre a equivalência das regras
normativas de instituições financeiras entre a ilha e o continente. É possível
que bancos ingleses tenham de se adequar às leis de cada país em que decidirem
operar, assim como os profissionais liberais terão de fazer.
Custos
e dificuldades aumentarão também na agricultura. O Reino Unido importa 75% dos
alimentos que consome e o sistema de vigilância sanitário e alfandegário trará
mais restrições do que antes. No caso da indústria farmacêutica, testes de
segurança e qualidade terão de ser validados no país e na UE.
O
acordo foi feito sem animosidades, no final, embora seu resultado seja em
grande parte o perseguido pelos líderes europeus: criar fortes desincentivos
para quem resolvesse abandonar o bloco. Isso segue a lógica do poder econômico:
o Reino Unido depende mais da UE, que consome 40% de suas exportações, do que o
contrário - apenas 15% das vendas da UE vão para lá.
Em balanço do acordo, Martin Wolf, principal comentarista econômico do Financial Times, disse que o desenlace foi relativamente favorável no caso das manufaturas, no qual o Reino Unido tem desvantagem competitiva, e bem pior no caso dos serviços, onde tem vantagens competitivas. Cabe aos populistas dourar a pílula. A queda de Trump tende a restringir experiências separatistas como esta.
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