É
preciso nova métrica do desenvolvimento humano, embutindo as “pressões
planetárias” no IDH
É
bem difícil saber quais poderiam ser esperanças minimamente realistas para a
década a se iniciar nesta sexta-feira. Mas nada parece superar a importância da
manutenção de uma governança global capaz de, ao menos, evitar conflito
nuclear. Por isto, não fosse o temor da expiração do tratado ‘New START’,
apenas duas semanas depois da posse de Joe Biden, não deveria ser outro o
motivo de maior celebração neste fim de ano.
Supondo
a permanência de tal mínimo de governança global, quais poderiam ser, então,
expectativas plausíveis sobre o futuro da humanidade, em meio às inevitáveis
pandemias a se somarem às outras consequências dos graves retrocessos ecológicos?
Seria razoável apostar em avanços do processo civilizador, comparáveis à média
dos últimos 200 anos? Ou, com extremo otimismo, dos últimos 70?
Boas respostas poderão emergir de debate sobre o trigésimo relatório do Pnud, intitulado “A próxima fronteira: desenvolvimento humano e o Antropoceno”. Tal “fronteira” seria o término das piores pressões dos humanos sobre o planeta, entre as quais se destacou, em 2020, a encrenca dos patógenos zoonóticos. Para sobreviver e prosperar, diz o Pnud, será necessário encontrar um caminho para o progresso respeitoso do entrelaçamento dos destinos dos humanos e da biosfera. Hoje, carbono e crescente dilapidação da biosfera estão minando, em vez de expandir, as oportunidades para os mais desfavorecidos.
Em
decorrência, torna-se imprescindível adotar uma nova métrica do desenvolvimento
humano, embutindo as “pressões planetárias” no IDH, mediante ajuste baseado na
média aritmética de dois fatores: emissões de dióxido de carbono per capita e
“pegada material” per capita. Esta “pegada” expressa o total de materiais
necessários ao atendimento da demanda nacional de bens e serviços, inclusive os
extraídos alhures. Por “materiais” entende-se essencialmente: biomassa,
combustíveis fósseis e minérios em geral.
Inevitavelmente,
países “mais desenvolvidos” se excedem nas emissões de carbono e na extração de
materiais, como se vê nas duas primeiras colunas da tabela. Consequentemente, o
Antropoceno exige a renovação do IDH, em versão agora acompanhado da letra ‘p’:
o IDHp. Este novo índice encurta bastante a distância entre os extremos: grupos
de países com desenvolvimento considerado “altíssimo” e “baixo”, como mostram
as outras duas colunas da tabela. De 0,385 (0,898 - 0,513), para 0,252 (0,760 -
0,508). Um hiato 34% menor, se métrica mais adequada ao Antropoceno substituir
a mais tradicional, adotada nos últimos trinta anos.
Alguns
casos ilustram melhor as implicações de tal mudança. A começar por países
riquíssimos, com imensas pegadas materiais, mas também petroditaduras, com
assombrosas emissões per capita.
A
pegada material de Luxemburgo chega a 105,6 toneladas per capita, engendrando
IDHp 46% inferior ao singelo IDH. No Qatar, a queda é de 31,5% porque as
emissões de dióxido de carbono per capita atingem 38 toneladas. No extremo
oposto, estão países como Filipinas, Sri Lanka e Costa Rica, com irrisórias
diferenças entre IDHp e IDH.
Evidentemente,
emissões e cargas per capita geram distorção favorável aos países mais
populosos. Enquanto o IDHp dos Estados Unidos é 22,5% inferior a seu IDH, esta
diferença é de apenas 11,8% para a China. O mesmo ocorre quando se compara
Canadá ou Austrália, à Índia ou Rússia.
Mesmo
assim, é forçoso indagar o quanto tão bem-vinda inovação do Pnud poderá ajudar
no monitoramento dos dezessete ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável),
assumidos, em 2015, pela adoção da Agenda 2030. Principalmente, devido às
dificuldades de se estabelecer algum alvo abrangente, capaz de dar unidade e
consistência a tantos objetivos. Os indicadores que vêm servindo para monitorar
os ODS precisam contar com alguma imagem mais sintética e emblemática, como foi
bem destacado pela revista Ciência & Cultura vol. 71, nº 1, no início de
2019.
Claro,
continua a ser das mais instigantes a ambição de se encontrar alguma fórmula
consensual que seja capaz de comunicar, de modo bem sucinto, os avanços de cada
país na direção do desenvolvimento sustentável. Em tal contexto, o surgimento
do IDHp é encorajador.
Caso
venha a ser mantido um mínimo de governança global, a troca do IDH pelo IDHp já
será um ótimo progresso rumo a 2030. Melhor ainda se também vier a ser
consolidado pelo IDH ajustado à desigualdade (IDHad), lançado em 2019.
Tomara
que o Pnud esteja trabalhando nisso.
*José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP:
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