EDITORIAIS
Passaporte forçado
Folha de S. Paulo
Medida contra a Covid é correta, mas vem do
STF em meio a tensão com Bolsonaro
Jair Bolsonaro esperneou a fim de evitar
que seu governo exigisse certificado de vacinação de viajantes que pretendam
entrar no Brasil. Vociferou contra o dito passaporte, que chamou de
"coleira", e mais uma vez contestou os benefícios da imunização
contra a Covid-19.
Dedicou-se, como de hábito, a atacar
princípios de razão, prudência e boa administração. Acabou sendo vencido duas
vezes.
Pressionado pelos próprios ministros, permitiu a
edição de uma portaria que exige testes negativos e
certificados de vacinação de quem viaje para o Brasil por via aérea ou
terrestre. Na falta do documento de imunização, quem pretenda entrar no país
por aeroportos terá de se submeter a uma quarentena de cinco dias.
Os viajantes devem, além do mais,
apresentar uma declaração escrita de que concordam com essas e outras políticas
sanitárias. A portaria entraria em pleno vigor no sábado (11). Seus efeitos
foram suspensos devido ao ataque de hackers a sites do Ministério da Saúde, o que
impossibilitou o acesso aos certificados de vacinação.
De todo modo, era evidente a insuficiência da decisão, pois não se esclareceu como os turistas seriam triados nem como a quarentena seria cumprida e fiscalizada.
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo
Tribunal Federal, não se satisfez com tal precariedade e determinou, em decisão
liminar, que o certificado
de vacinação seja obrigatório, sem condições.
De modo indireto, Bolsonaro criticou as
decisões de Barroso e de seu próprio governo. É frequente que o presidente
procure passar a impressão de que nada tem a ver com a administração federal —o
que, pelo bem ou pelo mal, muito frequentemente é verdade.
No que dependesse dele, afirmou, haveria
apenas o teste PCR.
Na semana retrasada, outro ministro do STF,
Alexandre de Moraes, determinou a abertura de um inquérito que vai tratar de
mais um devaneio irresponsável de Bolsonaro —o mandatário associara a vacinação
contra a Covid-19 ao "desenvolvimento" de Aids.
As decisões de Moraes e Barroso parecem ter
motivado novos ataques ao Supremo, os quais Bolsonaro praticamente suspendera
desde a ampla reação aos comícios golpistas do 7 de Setembro.
Com todas essas atitudes, Jair Bolsonaro
reitera seu comportamento básico enquanto ocupante da cadeira presidencial.
Em resumo, dedicar-se à propaganda
ideológica e ao conflito institucional desarrazoado, entregar-se à inoperância
administrativa, tratar com descaso o bem-estar dos habitantes do país e fazer
campanha eleitoreira permanente, tudo sob o inconformismo com quem procure
limitar seus atos.
Bilhões eleitorais
Folha de S. Paulo
Elevar fundo orçamentário para campanhas
será prêmio a partidos sem conteúdo
O ataque ao dinheiro do contribuinte não se
esgotou na aprovação da emenda constitucional que promove um calote nos
precatórios e amplia o teto para os gastos federais. No governo e no Congresso
proliferam pressões por mais benesses a serem espetadas no Orçamento do ano
eleitoral de 2022.
Entre as piores ideias está a de quase
triplicar o fundo público destinado ao financiamento de campanhas —cujos
recursos saltariam dos R$ 2,1 bilhões ora previstos no projeto da lei
orçamentária para até descabidos R$ 5,7 bilhões.
Um texto que permitia o montante mais
elevado chegou a ser aprovado pelos parlamentares em julho, mas acabou vetado
no mês seguinte pelo presidente Jair Bolsonaro. O assunto permanece mal
resolvido desde então.
O defensor mais ativo da propositura é o
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). No domingo (12), em entrevista à
Globonews, o deputado apontou que os congressistas deverão examinar o veto
presidencial nos próximos dias. Mesmo que ele seja mantido, disse, uma solução
terá de ser encontrada "dentro do Orçamento".
Vale dizer: outras áreas da administração
ou da despesa pública terão de ser sacrificadas para que se obtenha o dinheiro
desejado pelos políticos para o financiamento de suas estratégias eleitorais.
Lira qualificou de "demagogia" a
oposição ao aumento do fundo, com o argumento de que as doações de empresas a
candidaturas estão proibidas no Brasil. Convém examinar com atenção a tese.
Não se ignora que eleições custam dinheiro.
A discussão deve se dar em torno dos montantes adequados —e o oficialmente
previsto hoje repete os níveis vigentes nos pleitos de 2018 e 2020, sendo
razoável uma correção pela inflação.
O valor ambicionado pelos congressistas se
encontra muito acima dos padrões internacionais de financiamento público, como
mostrou pesquisa do Movimento Transparência Partidária em 25 países, entre
ricos e emergentes.
É por demais conveniente, para seus
autores, a alegação de que só com a ampliação dos recursos será possível
impedir a velha prática do caixa dois. Se for aceita tal assertiva carente de
fundamentação, qualquer cifra poderá ser validada.
Fundos bilionários são, isso sim, um
incentivo a burocracias que operam partidos sem conteúdo programático nem
inserção na sociedade. O país já conta em demasia com legendas dessa natureza.
As causas da impunidade
O Estado de S. Paulo.
A Justiça cumpre seu papel quando reconhece nulidades processuais. O problema é a produção insistente de nulidades por parte de agentes públicos que atuam à margem da lei
Produção insistente de nulidades
processuais por agentes públicos é um problema.
Nos últimos tempos, cresceu a percepção de
que a impunidade voltou a ganhar terreno. Não é apenas a constatação de que o
combate à corrupção não é prioridade no governo de Jair Bolsonaro, mas a
impressão de que houve um arrefecimento nessa batalha por parte do próprio
Poder Judiciário. Por exemplo, levantamento do Estado mostrou que, no âmbito de
operações que investigavam escândalos de corrupção, a Justiça anulou
recentemente condenações que somavam 277 anos e 9 meses de prisão.
Cada caso tem suas especificidades, sendo
arriscado fazer diagnósticos gerais a partir desses números. De toda forma,
eles mostram que a percepção da população sobre a impunidade tem algum respaldo
na realidade. De forma recorrente, os tribunais têm reconhecido nulidades em
processos penais envolvendo grandes escândalos de corrupção.
No entanto, – e aqui está o aspecto muitas
vezes esquecido –, decisões reconhecendo nulidades processuais não são a causa
da impunidade. O Judiciário cumpre perfeitamente o seu papel constitucional
quando, após verificar que a lei processual não foi cumprida, impede que
ilegalidades produzam efeitos. Nulidades são exatamente isto: um mecanismo
civilizatório para que atos investigativos e processuais fora dos limites
legais não gerem consequências sobre os cidadãos. Trata-se de importante
proteção do indivíduo ante o abuso do poder estatal.
Não é, portanto, a Justiça que fica mal com
esse conjunto de condenações anuladas, como se os tribunais tivessem agido
indevidamente. Quem fica rigorosamente mal são os órgãos policiais, o
Ministério Público e os juízes que acompanharam os respectivos inquéritos e
processos onde ocorreram tais nulidades. Foram eles que, tendo a missão de
defender a lei, praticaram ou foram coniventes com atos contrários à lei, que
depois ensejaram nulidades. No Estado Democrático de Direito, não cabe combater
supostas ações ilegais praticando novas ilegalidades.
A lei deve ser defendida dentro da lei.
Também vale para a Polícia, o Ministério Público e magistrados a máxima de que
os fins não justificam os meios. Precisamente por isso, existe, no regime
republicano, a figura das nulidades. Além de ferir direitos e garantias
individuais, permitir que um ato ilegal (nulo) produzisse efeitos estimularia
novas ilegalidades.
É preocupante, não há dúvida, esse conjunto
de condenações anuladas. Longos trabalhos investigativos foram declarados
inúteis. Mas há uma circunstância agravante. Esse padrão de comportamento –
órgãos estatais que atuam fora da lei, acarretando nulidades processuais – tem
sido recorrente ao longo dos anos. Veja-se, por exemplo, o histórico de
operações policiais anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em razão
de flagrantes ilegalidades: Castelo de Areia, Satiagraha e Boi Barrica. Muitas
vezes, erros já identificados pela Justiça foram repetidos nas operações
seguintes.
A cada decisão do STJ a respeito de
nulidades processuais, tinha-se a esperança de que, nas futuras investigações,
delegados federais e procuradores atuariam dentro dos limites estabelecidos
pela lei e recordados pela Corte. No entanto, o conjunto de operações anuladas
revela outra realidade. Renovam-se as operações e os processos, mas parece que
as práticas permanecem as mesmas.
Em vez de um aprendizado, com uma atuação
dos órgãos estatais em maior conformidade com a lei, o que se viu foi a
promoção de verdadeira campanha difamatória contra as nulidades, como se elas
fossem as responsáveis pela impunidade. Por exemplo, nas famosas Dez Medidas
Anticorrupção, o pacote de propostas legislativas patrocinado por membros do
Ministério Público, pretendeu-se, em absurda inversão de valores, reduzir o
escopo das nulidades, com o objetivo de que atos ilegais (nulos) produzissem
efeitos.
O problema não é a Justiça reconhecer as
nulidades, quando elas existem. A grande catástrofe, verdadeiro retrocesso
civilizatório, é essa produção insistente de nulidades por parte de agentes
públicos que atuam à margem da lei.
Uma indignidade persistente
O Estado de S. Paulo
Acabar com lixões, ao que parece, não rende
votos. Só isso explica o descaso absoluto de prefeitos que simplesmente ignoram
as leis
As obras para acabar de uma vez com os
lixões no Brasil, em geral, são invisíveis para a maioria da população. Logo,
não rendem votos. Só isso é capaz de explicar o desinteresse de administradores
públicos – prefeitos, notadamente – em dar fim a uma indignidade que há longas
décadas mantém uma porção do País aprisionada no atraso.
Desde a década de 1980, ano após ano, os
prazos legais para acabar com os lixões no Brasil vêm sendo descumpridos sem
cerimônia. Desculpas para o descaso com uma mazela histórica, há várias.
Pouquíssimas, no entanto, são aceitáveis tendo em vista os riscos sanitários e
ambientais que os lixões representam. A Lei n.º 12.305/2010, que instituiu a
Política Nacional de Resíduos Sólidos, definiu que os lixões deveriam ter sido
completamente extintos até 2014. Transcorridos sete anos da meta legal, mais da
metade dos municípios do País (51,5%) ainda descarta o lixo de maneira
inadequada, sem qualquer tipo de tratamento. O dado, referente a 2020, consta
no relatório Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2021, publicado
recentemente pela Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e
Resíduos Especiais (Abrelpe).
Há mais de dois anos, este jornal alertou
para o reiterado descumprimento dos prazos legais para acabar com os aterros
clandestinos (ver editorial A novela dos lixões, publicado em 18/4/2019). Dados
daquela época também já indicavam que metade das cidades brasileiras não
descartava nem tratava o lixo urbano corretamente, o que mostra um quadro de
absoluta inação do poder público. Nada foi feito nesse período para acabar com
os lixões. A Política Nacional dos Resíduos Sólidos, ao que parece, é mais uma
lei que virou letra morta no pitoresco país onde há leis que “pegam” ou “não
pegam”. “O segmento (de tratamento do lixo urbano) avança a passos muito
lentos, a despeito de todo o arcabouço legal para acabar com os lixões no
Brasil”, disse ao jornal Valor o presidente da Abrelpe, Carlos Silva Filho. É
inexplicável, sob qualquer perspectiva racional, tamanho descaso com um
problema tão sério e tão longevo.
No ano passado, cada brasileiro gerou, em
média, 390 quilos de resíduos sólidos urbanos (RSUS). Quase a metade do total
de RSUS gerados no País em 2020 (cerca de 83 milhões de toneladas) veio da
Região Sudeste (49,7%). A Região Nordeste foi responsável por 24,7% da produção
de RSUS. As Regiões Sul, Centro-oeste e Norte geraram, respectivamente 10,8%,
7,5% e 7,4% dos RSUS coletados. A destinação dada a todo esse lixo mostra bem a
discrepância que há entre as regiões do País quando se trata de geração e
descarte de lixo urbano. Embora seja a maior geradora de RSUS do Brasil, por
razões óbvias, a Região Sudeste é a que apresenta o melhor porcentual de
disposição adequada do lixo (73,4%). Melhor, no entanto, não significa ideal.
Na Região Norte, a pior do País no que concerne ao tratamento do lixo, apenas
35,6% dos RSUS têm disposição final considerada adequada.
Mas que não haja ilusões. A expressiva
diferença entre as formas de destinação do lixo urbano entre as regiões é
apenas um problema dentro de outro problema, muito mais sério e abrangente. O
relatório da Abrelpe destaca que, a despeito da proibição legal de descartes a
céu aberto, existente há décadas, os lixões estão presentes em todo o País e
causam poluição ambiental e danos à saúde de nada menos do que 77,5 milhões de
pessoas.
Os danos à saúde da população –e à saúde
financeira do Estado – causados pelos lixões são ainda mais severos quando se
observa que a este problema se soma a falta de saneamento básico e acesso à
água tratada para milhões de brasileiros, sem falar nos danos causados ao meio
ambiente. Espera-se que o novo Marco Legal do Saneamento (Lei n.º 14.026/2020),
já em vigor, ajude a tirar os rincões do Brasil de uma realidade insalubre que
não condiz nem com os avanços do século 20, que dirá do século 21.
Mas enquanto prefeitos não forem punidos
por descumprirem as leis, os lixões seguirão sem receber a devida atenção e
milhões de brasileiros mais carentes ainda viverão como se fossem cidadãos de
segunda classe.
Ataque a dados do SUS mostra que o Estado é
vulnerável
O Globo
O ataque criminoso aos sistemas do
Ministério da Saúde, que derrubou a plataforma ConecteSUS, usada por milhões de
brasileiros para comprovar a vacinação contra a Covid-19, mostrou a vulnerabilidade
a que estão expostos dados que deveriam ser protegidos pelo Estado. O
ministério tentou tranquilizar os cidadãos dizendo que “todos os dados foram
recuperados com sucesso”, como se isso não fosse o esperado.
O custo para a população não se limita à
integridade dos dados. O ataque afetou também as notificações de casos de
Covid-19, impedindo que se acompanhasse a evolução da doença. As novas regras
para viajantes — que entrariam em vigor no sábado — tiveram de ser adiadas. A
apresentação de passaporte sanitário ficou prejudicada. Na Bahia, onde o
documento é exigido no transporte intermunicipal, passageiros foram impedidos
de viajar. O problema afetou também a imunização, pois postos pedem a carteira
de vacinação ou o passaporte do ConecteSUS.
O ataque, em investigação pelo Gabinete de
Segurança Institucional (GSI) e pela Polícia Federal, comprova mais uma vez a
fragilidade da segurança digital do Estado brasileiro, em especial na proteção
a informações privadas. Mesmo que, como sustenta o governo, os dados não tenham
sido capturados, o risco ficou evidente.
Ele já estava patente no megavazamento de
dados de brasileiros revelado em janeiro. Mais de 220 milhões de registros com
todo tipo de informação pessoal — nome, CPF, endereço, telefone, declarações de
Imposto de Renda etc. — foram furtados e passaram a ser negociados em
criptomoedas no ambiente sem lei da internet profunda. É o tipo de crime que
não tem remédio, pois, quando se toma conhecimento dele, os dados já se
tornaram públicos.
O megavazamento não foi o primeiro no
Brasil nem no exterior. Centenas de episódios vêm acontecendo no mundo todo,
com exposição de mais de 10 bilhões de contas nos últimos anos, de acordo com
relatos. Houve tentativas de ataque ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) durante a apuração das eleições municipais de 2020, mas os invasores não
conseguiram derrubar o sistema, tampouco influir nos resultados do pleito.
O país dispõe de legislação moderna para
tratar do assunto, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que dá ao cidadão o
poder de decidir sobre o uso de seus dados e prevê multa de até R$ 50 milhões a
empresas que descuidem da proteção das informações. Mas ter uma legislação
ajustada aos tempos atuais não basta. É preciso que governo e empresas garantam
essa proteção.
E que a polícia investigue e puna os
crimes. A especialista em segurança digital Josephine Wolff, da Universidade
Tufts, em Boston, afirma que, mais importante do que aumentar a segurança dos
sistemas, é entender a motivação dos criminosos e agir para detê-los nas fases
finais, quando tentam lucrar com o crime. Capacitar a força policial para esse
tipo de investigação é essencial.
O inaceitável é deixar informações
essenciais como as da Saúde à mercê de criminosos. Não se trata apenas da
possível exposição de dados privados, mas também do prejuízo à população.
Perder ainda que temporariamente dados sobre notificação de doenças e vacinação
durante a mais letal pandemia em cem anos não é pouco. Que o governo ao menos
saiba extrair do episódio as lições necessárias para aperfeiçoar a segurança de
seus sistemas.
Morte de meninos na Baixada expõe omissão
do Estado diante do crime
O Globo
Ao mesmo tempo que o esclarecimento do
assassinato dos meninos Lucas Matheus, de 9 anos, Alexandre da Silva, de 11, e
Fernando Henrique, de 12, moradores de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, dá
uma resposta às famílias das crianças, expõe de forma contundente a capitulação
do Estado diante das organizações criminosas que controlam territórios do Rio e
de outros estados. Segundo a polícia, eles foram mortos por terem furtado uma
gaiola de passarinho de um traficante.
Os três meninos desapareceram na manhã de
27 de dezembro do ano passado, na comunidade do Castelar. A polícia demorou a
entrar no caso e só mostrou mais agilidade depois de inúmeros protestos das
famílias, inconformadas com o desaparecimento. Ao cabo de quase um ano de
investigações, a polícia prendeu na quinta-feira 33 pessoas, entre elas cinco
suspeitos de envolvimento na morte dos garotos.
As investigações revelaram uma história
escabrosa. Por furtarem a gaiola de passarinho de um traficante, os meninos
foram sentenciados à morte pelo “tribunal do tráfico”. Primeiro, foram
espancados e torturados. Segundo a polícia, os corpos foram jogados num rio
próximo à comunidade. Apesar das buscas, eles nunca foram encontrados.
Nessa história de anomia, em que a lei não
é sequer coadjuvante, chefes da facção criminosa que controlam a venda de
drogas na comunidade mandaram executar os envolvidos no crime — não por
condenar a barbárie, mas porque o caso atraiu a polícia ao local, prejudicando
os negócios ilícitos. Um dos suspeitos foi preso pela polícia antes de ser
morto. “Otário, deu sorte, porque ia morrer na nossa mão. Por isso ele se
entregou”, disse um dos criminosos, de acordo com escuta feita pelos
investigadores. Na terra sem lei, Anderson de Jesus, pai de Lucas Matheus, se
juntou a uma facção rival para vingar a morte do filho. Acabou preso pela
polícia no fim de novembro.
Espera-se que os responsáveis pelas mortes
dos meninos sejam julgados e punidos exemplarmente por tamanha atrocidade. Mas
a questão vai muito além das condenações. O desfecho do caso expõe a
incompetência do Brasil para proteger suas crianças — não bastasse negar-lhes
saúde e educação — e a falência das políticas de segurança pública, que
permitem a facções criminosas usurpar territórios e impor suas leis nefastas.
Os tais “tribunais do tráfico” são uma excrescência, um acinte à sociedade e às
autoridades. Por que moradores de comunidades não vivem sob as mesmas leis que
vigoram para a maioria dos brasileiros?
É claro que esse problema chegou a tal
ponto que não será resolvido de uma hora para outra. Mas é preciso querer
resolvê-lo. É inadmissível que traficantes de drogas e milicianos se apropriem
de áreas públicas e privadas para impor nesses territórios um poder paralelo. O
país e o estado do Rio precisam ter um plano eficaz para combater essas
organizações, reduzir seu poder de fogo. Quantas crianças mais serão vítimas da
perversidade dessas quadrilhas e da inconcebível omissão do Estado?
Novo marco ferroviário pode corrigir
déficit histórico
Valor Econômico
Caso o projeto passe na Câmara, deverá se
juntar ao marco legal do saneamento como uma das escassas iniciativas positivas
do governo Bolsonaro
Começam a recuperar espaço no país os
projetos privados para a construção e exploração do transporte ferroviário.
Abandonados há quase um século, estão de volta agora sob o novo Marco Legal
Ferroviário, chamado pelo governo de Programa de Autorizações Ferroviárias (Pró
Trilhos). Por meio das autorizações do governo federal, o setor privado poderá
construir vias férreas, sem passar pelo atual sistema de concessões e suas
regras rígidas e burocracias, desde que tenham a viabilidade atestada pela
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O objetivo é aumentar a
competição e baratear o transporte.
Consta que uma das últimas iniciativas
privadas no setor ferroviário em regime semelhante foi o da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, chamada de a Ferrovia do Diabo pelos desafios de engenharia que
apresentou, construída por empresários americanos no início do século passado
para transportar a borracha extraída das florestas da Amazônia brasileira e
boliviana.
A Madeira-Mamoré deixou de operar em 1972,
mas o transporte ferroviário já havia sido colocado de lado desde a década de
1950, pelo governo de Juscelino Kubitschek e seguintes, que privilegiaram as
rodovias. O resultado é que a malha ferroviária brasileira cobre menos de 30
mil quilômetros atualmente, dos quais 8 mil quilômetros estão em uso, 15 mil
quilômetros são subutilizados e 7 mil quilômetros, abandonados, segundo dados
do diretor da FGV Transportes, Marcus Quintella (Estadão, 10/12). Para se
comparar, os Estados Unidos, com extensão um pouco superior e adepto do sistema
de autorização desde sempre, possuem uma malha de 293 mil quilômetros de
trilhos.
Ainda segundo Quintella, as ferrovias
respondem apenas por 15% da matriz de transporte de cargas brasileira, enquanto
as rodovias chegam a cerca de 65%. Minérios e carvão mineral são 80% da carga
transportada pelas ferrovias; os produtos agrícolas, 14%; os produtos
siderúrgicos por 3%; e derivados de petróleo, álcool, carga geral e
contêineres, outros 3%.
A expectativa é que, com o regime de
autorizações, as ferrovias possam passar a representar 40% do transporte de
cargas, contribuindo para reduzir o frete entre 30% a 40%. Uma ideia do
potencial do interesse do mercado pode ser dimensionada pelas primeiras
autorizações concedidas pelo governo. Na semana passada foi autorizada a
construção e exploração de nove trechos de ferrovias, que somam 3,5 mil
quilômetros, pouco mais de 10% da malha atual. Segundo informou o governo, há
um total de 47 pedidos de autorizações, 36 dos quais somam quase 8 mil
quilômetros de novas linhas férreas em 14 Estados, ou seja, mais de 25% da
malha.
As iniciativas representam também a
realização de investimentos com os quais o governo claramente não teria
condições de arcar diante do quadro de aperto fiscal. Apenas os nove trechos
privados já autorizados vão implicar R$ 51,96 bilhões em gastos.
Para que tudo dê certo, é preciso que a
aprovação do novo marco legal das ferrovias avance no Congresso para dar
segurança jurídica aos investidores. O Pró-Trilhos foi criado pela Medida
Provisória nº 1.065/21, aprovada em 30 de agosto. O Senado a transformou no
Projeto de Lei 3754/2021, aprovado no início de outubro. Que buscou
convergência com o PLS 261 de 2018, de autoria do senador licenciado José
Serra, que tinha o mesmo objetivo de autorizar a construção de ferrovias
privadas. A votação na Câmara está prevista para esta semana.
Uma questão relevante foi superada na
proposta do Senado ao tratar do direito de passagem, o acesso de terceiros a
malhas alheias, mediante pagamento e caso haja ociosidade, regra que valerá
para as concessões e não para o novo regime de autorizações. Empresas que atuam
em regime de concessão poderão requerer a migração para a autorização. O texto
também proíbe a recusa injustificada de transporte de cargas, salvo por saturação
da linha ou incapacidade técnica. Outros pontos importantes para a segurança
jurídica abrangem a desapropriação das áreas como utilidade pública, licenças
ambientais; e exploração imobiliária e comercial das estações e faixa de
domínio.
Aparentemente, a Câmara dos Deputados tende a aprovar a proposta enviada pelo Senado. Caso o projeto passe, deverá se juntar ao Marco Legal do Saneamento como uma das escassas iniciativas positivas do governo de Jair Bolsonaro na área econômica.
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