terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O que pensa a mídia - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Passaporte forçado

Folha de S. Paulo

Medida contra a Covid é correta, mas vem do STF em meio a tensão com Bolsonaro

Jair Bolsonaro esperneou a fim de evitar que seu governo exigisse certificado de vacinação de viajantes que pretendam entrar no Brasil. Vociferou contra o dito passaporte, que chamou de "coleira", e mais uma vez contestou os benefícios da imunização contra a Covid-19.

Dedicou-se, como de hábito, a atacar princípios de razão, prudência e boa administração. Acabou sendo vencido duas vezes.

Pressionado pelos próprios ministros, permitiu a edição de uma portaria que exige testes negativos e certificados de vacinação de quem viaje para o Brasil por via aérea ou terrestre. Na falta do documento de imunização, quem pretenda entrar no país por aeroportos terá de se submeter a uma quarentena de cinco dias.

Os viajantes devem, além do mais, apresentar uma declaração escrita de que concordam com essas e outras políticas sanitárias. A portaria entraria em pleno vigor no sábado (11). Seus efeitos foram suspensos devido ao ataque de hackers a sites do Ministério da Saúde, o que impossibilitou o acesso aos certificados de vacinação.

De todo modo, era evidente a insuficiência da decisão, pois não se esclareceu como os turistas seriam triados nem como a quarentena seria cumprida e fiscalizada.

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, não se satisfez com tal precariedade e determinou, em decisão liminar, que o certificado de vacinação seja obrigatório, sem condições.

De modo indireto, Bolsonaro criticou as decisões de Barroso e de seu próprio governo. É frequente que o presidente procure passar a impressão de que nada tem a ver com a administração federal —o que, pelo bem ou pelo mal, muito frequentemente é verdade.

No que dependesse dele, afirmou, haveria apenas o teste PCR.

Na semana retrasada, outro ministro do STF, Alexandre de Moraes, determinou a abertura de um inquérito que vai tratar de mais um devaneio irresponsável de Bolsonaro —o mandatário associara a vacinação contra a Covid-19 ao "desenvolvimento" de Aids.

As decisões de Moraes e Barroso parecem ter motivado novos ataques ao Supremo, os quais Bolsonaro praticamente suspendera desde a ampla reação aos comícios golpistas do 7 de Setembro.

Com todas essas atitudes, Jair Bolsonaro reitera seu comportamento básico enquanto ocupante da cadeira presidencial.

Em resumo, dedicar-se à propaganda ideológica e ao conflito institucional desarrazoado, entregar-se à inoperância administrativa, tratar com descaso o bem-estar dos habitantes do país e fazer campanha eleitoreira permanente, tudo sob o inconformismo com quem procure limitar seus atos.

Bilhões eleitorais

Folha de S. Paulo

Elevar fundo orçamentário para campanhas será prêmio a partidos sem conteúdo

O ataque ao dinheiro do contribuinte não se esgotou na aprovação da emenda constitucional que promove um calote nos precatórios e amplia o teto para os gastos federais. No governo e no Congresso proliferam pressões por mais benesses a serem espetadas no Orçamento do ano eleitoral de 2022.

Entre as piores ideias está a de quase triplicar o fundo público destinado ao financiamento de campanhas —cujos recursos saltariam dos R$ 2,1 bilhões ora previstos no projeto da lei orçamentária para até descabidos R$ 5,7 bilhões.

Um texto que permitia o montante mais elevado chegou a ser aprovado pelos parlamentares em julho, mas acabou vetado no mês seguinte pelo presidente Jair Bolsonaro. O assunto permanece mal resolvido desde então.

O defensor mais ativo da propositura é o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). No domingo (12), em entrevista à Globonews, o deputado apontou que os congressistas deverão examinar o veto presidencial nos próximos dias. Mesmo que ele seja mantido, disse, uma solução terá de ser encontrada "dentro do Orçamento".

Vale dizer: outras áreas da administração ou da despesa pública terão de ser sacrificadas para que se obtenha o dinheiro desejado pelos políticos para o financiamento de suas estratégias eleitorais.

Lira qualificou de "demagogia" a oposição ao aumento do fundo, com o argumento de que as doações de empresas a candidaturas estão proibidas no Brasil. Convém examinar com atenção a tese.

Não se ignora que eleições custam dinheiro. A discussão deve se dar em torno dos montantes adequados —e o oficialmente previsto hoje repete os níveis vigentes nos pleitos de 2018 e 2020, sendo razoável uma correção pela inflação.

O valor ambicionado pelos congressistas se encontra muito acima dos padrões internacionais de financiamento público, como mostrou pesquisa do Movimento Transparência Partidária em 25 países, entre ricos e emergentes.

É por demais conveniente, para seus autores, a alegação de que só com a ampliação dos recursos será possível impedir a velha prática do caixa dois. Se for aceita tal assertiva carente de fundamentação, qualquer cifra poderá ser validada.

Fundos bilionários são, isso sim, um incentivo a burocracias que operam partidos sem conteúdo programático nem inserção na sociedade. O país já conta em demasia com legendas dessa natureza.

As causas da impunidade

O Estado de S. Paulo.

A Justiça cumpre seu papel quando reconhece nulidades processuais. O problema é a produção insistente de nulidades por parte de agentes públicos que atuam à margem da lei

Produção insistente de nulidades processuais por agentes públicos é um problema.

Nos últimos tempos, cresceu a percepção de que a impunidade voltou a ganhar terreno. Não é apenas a constatação de que o combate à corrupção não é prioridade no governo de Jair Bolsonaro, mas a impressão de que houve um arrefecimento nessa batalha por parte do próprio Poder Judiciário. Por exemplo, levantamento do Estado mostrou que, no âmbito de operações que investigavam escândalos de corrupção, a Justiça anulou recentemente condenações que somavam 277 anos e 9 meses de prisão.

Cada caso tem suas especificidades, sendo arriscado fazer diagnósticos gerais a partir desses números. De toda forma, eles mostram que a percepção da população sobre a impunidade tem algum respaldo na realidade. De forma recorrente, os tribunais têm reconhecido nulidades em processos penais envolvendo grandes escândalos de corrupção.

No entanto, – e aqui está o aspecto muitas vezes esquecido –, decisões reconhecendo nulidades processuais não são a causa da impunidade. O Judiciário cumpre perfeitamente o seu papel constitucional quando, após verificar que a lei processual não foi cumprida, impede que ilegalidades produzam efeitos. Nulidades são exatamente isto: um mecanismo civilizatório para que atos investigativos e processuais fora dos limites legais não gerem consequências sobre os cidadãos. Trata-se de importante proteção do indivíduo ante o abuso do poder estatal.

Não é, portanto, a Justiça que fica mal com esse conjunto de condenações anuladas, como se os tribunais tivessem agido indevidamente. Quem fica rigorosamente mal são os órgãos policiais, o Ministério Público e os juízes que acompanharam os respectivos inquéritos e processos onde ocorreram tais nulidades. Foram eles que, tendo a missão de defender a lei, praticaram ou foram coniventes com atos contrários à lei, que depois ensejaram nulidades. No Estado Democrático de Direito, não cabe combater supostas ações ilegais praticando novas ilegalidades.

A lei deve ser defendida dentro da lei. Também vale para a Polícia, o Ministério Público e magistrados a máxima de que os fins não justificam os meios. Precisamente por isso, existe, no regime republicano, a figura das nulidades. Além de ferir direitos e garantias individuais, permitir que um ato ilegal (nulo) produzisse efeitos estimularia novas ilegalidades.

É preocupante, não há dúvida, esse conjunto de condenações anuladas. Longos trabalhos investigativos foram declarados inúteis. Mas há uma circunstância agravante. Esse padrão de comportamento – órgãos estatais que atuam fora da lei, acarretando nulidades processuais – tem sido recorrente ao longo dos anos. Veja-se, por exemplo, o histórico de operações policiais anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em razão de flagrantes ilegalidades: Castelo de Areia, Satiagraha e Boi Barrica. Muitas vezes, erros já identificados pela Justiça foram repetidos nas operações seguintes.

A cada decisão do STJ a respeito de nulidades processuais, tinha-se a esperança de que, nas futuras investigações, delegados federais e procuradores atuariam dentro dos limites estabelecidos pela lei e recordados pela Corte. No entanto, o conjunto de operações anuladas revela outra realidade. Renovam-se as operações e os processos, mas parece que as práticas permanecem as mesmas.

Em vez de um aprendizado, com uma atuação dos órgãos estatais em maior conformidade com a lei, o que se viu foi a promoção de verdadeira campanha difamatória contra as nulidades, como se elas fossem as responsáveis pela impunidade. Por exemplo, nas famosas Dez Medidas Anticorrupção, o pacote de propostas legislativas patrocinado por membros do Ministério Público, pretendeu-se, em absurda inversão de valores, reduzir o escopo das nulidades, com o objetivo de que atos ilegais (nulos) produzissem efeitos.

O problema não é a Justiça reconhecer as nulidades, quando elas existem. A grande catástrofe, verdadeiro retrocesso civilizatório, é essa produção insistente de nulidades por parte de agentes públicos que atuam à margem da lei.

Uma indignidade persistente

O Estado de S. Paulo

Acabar com lixões, ao que parece, não rende votos. Só isso explica o descaso absoluto de prefeitos que simplesmente ignoram as leis

As obras para acabar de uma vez com os lixões no Brasil, em geral, são invisíveis para a maioria da população. Logo, não rendem votos. Só isso é capaz de explicar o desinteresse de administradores públicos – prefeitos, notadamente – em dar fim a uma indignidade que há longas décadas mantém uma porção do País aprisionada no atraso.

Desde a década de 1980, ano após ano, os prazos legais para acabar com os lixões no Brasil vêm sendo descumpridos sem cerimônia. Desculpas para o descaso com uma mazela histórica, há várias. Pouquíssimas, no entanto, são aceitáveis tendo em vista os riscos sanitários e ambientais que os lixões representam. A Lei n.º 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, definiu que os lixões deveriam ter sido completamente extintos até 2014. Transcorridos sete anos da meta legal, mais da metade dos municípios do País (51,5%) ainda descarta o lixo de maneira inadequada, sem qualquer tipo de tratamento. O dado, referente a 2020, consta no relatório Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2021, publicado recentemente pela Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).

Há mais de dois anos, este jornal alertou para o reiterado descumprimento dos prazos legais para acabar com os aterros clandestinos (ver editorial A novela dos lixões, publicado em 18/4/2019). Dados daquela época também já indicavam que metade das cidades brasileiras não descartava nem tratava o lixo urbano corretamente, o que mostra um quadro de absoluta inação do poder público. Nada foi feito nesse período para acabar com os lixões. A Política Nacional dos Resíduos Sólidos, ao que parece, é mais uma lei que virou letra morta no pitoresco país onde há leis que “pegam” ou “não pegam”. “O segmento (de tratamento do lixo urbano) avança a passos muito lentos, a despeito de todo o arcabouço legal para acabar com os lixões no Brasil”, disse ao jornal Valor o presidente da Abrelpe, Carlos Silva Filho. É inexplicável, sob qualquer perspectiva racional, tamanho descaso com um problema tão sério e tão longevo.

No ano passado, cada brasileiro gerou, em média, 390 quilos de resíduos sólidos urbanos (RSUS). Quase a metade do total de RSUS gerados no País em 2020 (cerca de 83 milhões de toneladas) veio da Região Sudeste (49,7%). A Região Nordeste foi responsável por 24,7% da produção de RSUS. As Regiões Sul, Centro-oeste e Norte geraram, respectivamente 10,8%, 7,5% e 7,4% dos RSUS coletados. A destinação dada a todo esse lixo mostra bem a discrepância que há entre as regiões do País quando se trata de geração e descarte de lixo urbano. Embora seja a maior geradora de RSUS do Brasil, por razões óbvias, a Região Sudeste é a que apresenta o melhor porcentual de disposição adequada do lixo (73,4%). Melhor, no entanto, não significa ideal. Na Região Norte, a pior do País no que concerne ao tratamento do lixo, apenas 35,6% dos RSUS têm disposição final considerada adequada.

Mas que não haja ilusões. A expressiva diferença entre as formas de destinação do lixo urbano entre as regiões é apenas um problema dentro de outro problema, muito mais sério e abrangente. O relatório da Abrelpe destaca que, a despeito da proibição legal de descartes a céu aberto, existente há décadas, os lixões estão presentes em todo o País e causam poluição ambiental e danos à saúde de nada menos do que 77,5 milhões de pessoas.

Os danos à saúde da população –e à saúde financeira do Estado – causados pelos lixões são ainda mais severos quando se observa que a este problema se soma a falta de saneamento básico e acesso à água tratada para milhões de brasileiros, sem falar nos danos causados ao meio ambiente. Espera-se que o novo Marco Legal do Saneamento (Lei n.º 14.026/2020), já em vigor, ajude a tirar os rincões do Brasil de uma realidade insalubre que não condiz nem com os avanços do século 20, que dirá do século 21.

Mas enquanto prefeitos não forem punidos por descumprirem as leis, os lixões seguirão sem receber a devida atenção e milhões de brasileiros mais carentes ainda viverão como se fossem cidadãos de segunda classe.

Ataque a dados do SUS mostra que o Estado é vulnerável

O Globo

O ataque criminoso aos sistemas do Ministério da Saúde, que derrubou a plataforma ConecteSUS, usada por milhões de brasileiros para comprovar a vacinação contra a Covid-19, mostrou a vulnerabilidade a que estão expostos dados que deveriam ser protegidos pelo Estado. O ministério tentou tranquilizar os cidadãos dizendo que “todos os dados foram recuperados com sucesso”, como se isso não fosse o esperado.

O custo para a população não se limita à integridade dos dados. O ataque afetou também as notificações de casos de Covid-19, impedindo que se acompanhasse a evolução da doença. As novas regras para viajantes — que entrariam em vigor no sábado — tiveram de ser adiadas. A apresentação de passaporte sanitário ficou prejudicada. Na Bahia, onde o documento é exigido no transporte intermunicipal, passageiros foram impedidos de viajar. O problema afetou também a imunização, pois postos pedem a carteira de vacinação ou o passaporte do ConecteSUS.

O ataque, em investigação pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e pela Polícia Federal, comprova mais uma vez a fragilidade da segurança digital do Estado brasileiro, em especial na proteção a informações privadas. Mesmo que, como sustenta o governo, os dados não tenham sido capturados, o risco ficou evidente.

Ele já estava patente no megavazamento de dados de brasileiros revelado em janeiro. Mais de 220 milhões de registros com todo tipo de informação pessoal — nome, CPF, endereço, telefone, declarações de Imposto de Renda etc. — foram furtados e passaram a ser negociados em criptomoedas no ambiente sem lei da internet profunda. É o tipo de crime que não tem remédio, pois, quando se toma conhecimento dele, os dados já se tornaram públicos.

O megavazamento não foi o primeiro no Brasil nem no exterior. Centenas de episódios vêm acontecendo no mundo todo, com exposição de mais de 10 bilhões de contas nos últimos anos, de acordo com relatos. Houve tentativas de ataque ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante a apuração das eleições municipais de 2020, mas os invasores não conseguiram derrubar o sistema, tampouco influir nos resultados do pleito.

O país dispõe de legislação moderna para tratar do assunto, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que dá ao cidadão o poder de decidir sobre o uso de seus dados e prevê multa de até R$ 50 milhões a empresas que descuidem da proteção das informações. Mas ter uma legislação ajustada aos tempos atuais não basta. É preciso que governo e empresas garantam essa proteção.

E que a polícia investigue e puna os crimes. A especialista em segurança digital Josephine Wolff, da Universidade Tufts, em Boston, afirma que, mais importante do que aumentar a segurança dos sistemas, é entender a motivação dos criminosos e agir para detê-los nas fases finais, quando tentam lucrar com o crime. Capacitar a força policial para esse tipo de investigação é essencial.

O inaceitável é deixar informações essenciais como as da Saúde à mercê de criminosos. Não se trata apenas da possível exposição de dados privados, mas também do prejuízo à população. Perder ainda que temporariamente dados sobre notificação de doenças e vacinação durante a mais letal pandemia em cem anos não é pouco. Que o governo ao menos saiba extrair do episódio as lições necessárias para aperfeiçoar a segurança de seus sistemas.

Morte de meninos na Baixada expõe omissão do Estado diante do crime

O Globo

Ao mesmo tempo que o esclarecimento do assassinato dos meninos Lucas Matheus, de 9 anos, Alexandre da Silva, de 11, e Fernando Henrique, de 12, moradores de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, dá uma resposta às famílias das crianças, expõe de forma contundente a capitulação do Estado diante das organizações criminosas que controlam territórios do Rio e de outros estados. Segundo a polícia, eles foram mortos por terem furtado uma gaiola de passarinho de um traficante.

Os três meninos desapareceram na manhã de 27 de dezembro do ano passado, na comunidade do Castelar. A polícia demorou a entrar no caso e só mostrou mais agilidade depois de inúmeros protestos das famílias, inconformadas com o desaparecimento. Ao cabo de quase um ano de investigações, a polícia prendeu na quinta-feira 33 pessoas, entre elas cinco suspeitos de envolvimento na morte dos garotos.

As investigações revelaram uma história escabrosa. Por furtarem a gaiola de passarinho de um traficante, os meninos foram sentenciados à morte pelo “tribunal do tráfico”. Primeiro, foram espancados e torturados. Segundo a polícia, os corpos foram jogados num rio próximo à comunidade. Apesar das buscas, eles nunca foram encontrados.

Nessa história de anomia, em que a lei não é sequer coadjuvante, chefes da facção criminosa que controlam a venda de drogas na comunidade mandaram executar os envolvidos no crime — não por condenar a barbárie, mas porque o caso atraiu a polícia ao local, prejudicando os negócios ilícitos. Um dos suspeitos foi preso pela polícia antes de ser morto. “Otário, deu sorte, porque ia morrer na nossa mão. Por isso ele se entregou”, disse um dos criminosos, de acordo com escuta feita pelos investigadores. Na terra sem lei, Anderson de Jesus, pai de Lucas Matheus, se juntou a uma facção rival para vingar a morte do filho. Acabou preso pela polícia no fim de novembro.

Espera-se que os responsáveis pelas mortes dos meninos sejam julgados e punidos exemplarmente por tamanha atrocidade. Mas a questão vai muito além das condenações. O desfecho do caso expõe a incompetência do Brasil para proteger suas crianças — não bastasse negar-lhes saúde e educação — e a falência das políticas de segurança pública, que permitem a facções criminosas usurpar territórios e impor suas leis nefastas. Os tais “tribunais do tráfico” são uma excrescência, um acinte à sociedade e às autoridades. Por que moradores de comunidades não vivem sob as mesmas leis que vigoram para a maioria dos brasileiros?

É claro que esse problema chegou a tal ponto que não será resolvido de uma hora para outra. Mas é preciso querer resolvê-lo. É inadmissível que traficantes de drogas e milicianos se apropriem de áreas públicas e privadas para impor nesses territórios um poder paralelo. O país e o estado do Rio precisam ter um plano eficaz para combater essas organizações, reduzir seu poder de fogo. Quantas crianças mais serão vítimas da perversidade dessas quadrilhas e da inconcebível omissão do Estado?

Novo marco ferroviário pode corrigir déficit histórico

Valor Econômico

Caso o projeto passe na Câmara, deverá se juntar ao marco legal do saneamento como uma das escassas iniciativas positivas do governo Bolsonaro

Começam a recuperar espaço no país os projetos privados para a construção e exploração do transporte ferroviário. Abandonados há quase um século, estão de volta agora sob o novo Marco Legal Ferroviário, chamado pelo governo de Programa de Autorizações Ferroviárias (Pró Trilhos). Por meio das autorizações do governo federal, o setor privado poderá construir vias férreas, sem passar pelo atual sistema de concessões e suas regras rígidas e burocracias, desde que tenham a viabilidade atestada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O objetivo é aumentar a competição e baratear o transporte.

Consta que uma das últimas iniciativas privadas no setor ferroviário em regime semelhante foi o da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, chamada de a Ferrovia do Diabo pelos desafios de engenharia que apresentou, construída por empresários americanos no início do século passado para transportar a borracha extraída das florestas da Amazônia brasileira e boliviana.

A Madeira-Mamoré deixou de operar em 1972, mas o transporte ferroviário já havia sido colocado de lado desde a década de 1950, pelo governo de Juscelino Kubitschek e seguintes, que privilegiaram as rodovias. O resultado é que a malha ferroviária brasileira cobre menos de 30 mil quilômetros atualmente, dos quais 8 mil quilômetros estão em uso, 15 mil quilômetros são subutilizados e 7 mil quilômetros, abandonados, segundo dados do diretor da FGV Transportes, Marcus Quintella (Estadão, 10/12). Para se comparar, os Estados Unidos, com extensão um pouco superior e adepto do sistema de autorização desde sempre, possuem uma malha de 293 mil quilômetros de trilhos.

Ainda segundo Quintella, as ferrovias respondem apenas por 15% da matriz de transporte de cargas brasileira, enquanto as rodovias chegam a cerca de 65%. Minérios e carvão mineral são 80% da carga transportada pelas ferrovias; os produtos agrícolas, 14%; os produtos siderúrgicos por 3%; e derivados de petróleo, álcool, carga geral e contêineres, outros 3%.

A expectativa é que, com o regime de autorizações, as ferrovias possam passar a representar 40% do transporte de cargas, contribuindo para reduzir o frete entre 30% a 40%. Uma ideia do potencial do interesse do mercado pode ser dimensionada pelas primeiras autorizações concedidas pelo governo. Na semana passada foi autorizada a construção e exploração de nove trechos de ferrovias, que somam 3,5 mil quilômetros, pouco mais de 10% da malha atual. Segundo informou o governo, há um total de 47 pedidos de autorizações, 36 dos quais somam quase 8 mil quilômetros de novas linhas férreas em 14 Estados, ou seja, mais de 25% da malha.

As iniciativas representam também a realização de investimentos com os quais o governo claramente não teria condições de arcar diante do quadro de aperto fiscal. Apenas os nove trechos privados já autorizados vão implicar R$ 51,96 bilhões em gastos.

Para que tudo dê certo, é preciso que a aprovação do novo marco legal das ferrovias avance no Congresso para dar segurança jurídica aos investidores. O Pró-Trilhos foi criado pela Medida Provisória nº 1.065/21, aprovada em 30 de agosto. O Senado a transformou no Projeto de Lei 3754/2021, aprovado no início de outubro. Que buscou convergência com o PLS 261 de 2018, de autoria do senador licenciado José Serra, que tinha o mesmo objetivo de autorizar a construção de ferrovias privadas. A votação na Câmara está prevista para esta semana.

Uma questão relevante foi superada na proposta do Senado ao tratar do direito de passagem, o acesso de terceiros a malhas alheias, mediante pagamento e caso haja ociosidade, regra que valerá para as concessões e não para o novo regime de autorizações. Empresas que atuam em regime de concessão poderão requerer a migração para a autorização. O texto também proíbe a recusa injustificada de transporte de cargas, salvo por saturação da linha ou incapacidade técnica. Outros pontos importantes para a segurança jurídica abrangem a desapropriação das áreas como utilidade pública, licenças ambientais; e exploração imobiliária e comercial das estações e faixa de domínio.

Aparentemente, a Câmara dos Deputados tende a aprovar a proposta enviada pelo Senado. Caso o projeto passe, deverá se juntar ao Marco Legal do Saneamento como uma das escassas iniciativas positivas do governo de Jair Bolsonaro na área econômica.

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