quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

STF precisa por um fim ao orçamento secreto

Valor Econômico

O governo eleito colocou-se a reboque de Lira e parte do PT teme que a sentença do STF possa atrapalhar a relação

Dinheiro é poder e o orçamento da República é um poder maior, político, econômico e social. O orçamento secreto é subterfúgio que captura esta prerrogativa como poder paralelo, escondido do olhar do público. O Supremo Tribunal Federal inicia hoje julgamento da legalidade do instrumento criado pelo Congresso para que um grupo de parlamentares, em acordo com o governo de Jair Bolsonaro, dominasse um bom pedaço dos recursos dos contribuintes e o distribuísse segundo interesses partidários e privados. O STF deveria sepultá-lo.

As emendas do relator, nome fantasia do orçamento secreto, refletem o oportunismo de lideranças do Centrão e de Bolsonaro, e são parte importante do caos orçamentário desenhado por ambos. Tornou-se coadjuvante da penúria de dinheiro para o funcionamento da máquina pública, e meio de barganha com o governo eleito. Lula chamou-o na campanha eleitoral de “podridão”, de a “maior excrescência orçamentária política do país”, e algo pior que o mensalão, que abateu próceres de seu governo. Eleito, negocia como mantê-lo.

As emendas do relator ampliam o controle do orçamento pelo Congresso, depois que, em 2015, as emendas parlamentares tornaram-se obrigatórias. O ponto em comum das iniciativas foi a existência de Executivos fracos ou acuados - como o de Dilma Rousseff, antes do impeachment, e de Jair Bolsonaro, para evitar um impeachment.

O expediente é flagrantemente ilegal. Fere os princípios constitucionais da publicidade, moralidade, isonomia, impessoalidade e equidade. “Viola o princípio republicano e transgride os postulados informadores do regime de transparência no uso dos recursos financeiros do Estado”, disse a presidente do STF, Rosa Weber, ao suspendê-lo há um ano.

Câmara e Senado continuaram os repasses, argumentando, primeiro, que era impossível discriminar autores e beneficiários de milhões de reais transferidos em 2020 e 2021 e, depois, que alguma visibilidade só ocorreria nas emendas de 2022. Na essência, essas emendas seguem privilegiando um pequeno grupo de deputados e senadores escolhido pela cúpula do Congresso. Os beneficiários continuam ocultos, agora sob a figura do “usuário externo”, que não precisa ter cargo público, mas pode pleitear recursos.

Ao lado das emendas “PIX”, pelas quais parlamentares enviam verbas diretamente para prefeituras, sem finalidade específica - a bel-prazer do freguês -, as emendas do relator marcam o auge da apropriação de recursos públicos pelos partidos fisiológicos em proveito de si próprios. São um maná para intermediários de obras públicas e um estímulo para a corrupção. Um olhar superficial sobre a distribuição desses recursos mostra nepotismo - prefeituras de pais, filhos e parentes de diversos graus aquinhoados -, e desperdício com superfaturamento de obras e equipamentos, especialmente na Codevasf, dirigida por indicados do Centrão.

O governo teve de bloquear R$ 7,4 bilhões de emendas do relator em meio a gastos essenciais, mas estas despesas políticas são consideradas essenciais pela cúpula do Congresso e do Centrão. A PEC do governo eleito parece ser providencialmente a solução. A PEC de Transição, que mais uma vez fura o teto de gastos, poderia assumir o pagamento das emendas que o orçamento atual não comporta, já que, se aprovada, valeria imediatamente, já em dezembro.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, que quer ser reeleito e é um dos principais beneficiários do orçamento secreto, não abre mão dele e considera as emendas do relator “democráticas”, embora não sejam públicos nem seus autores nem os beneficiários. Lira foi muito claro ao definir as opções do próximo governo. “Ou são as emendas do relator ou o mensalão”, disse, indicando que o apoio a projetos do Executivo, logo a governabilidade, depende da escolha entre dois instrumentos anti-republicanos.

As emendas obrigatórias sacramentam a balcanização dos recursos orçamentários que, sem orientação do Executivo, se distanciam das prioridades nacionais e atendem interesses paroquiais de coronéis regionais com assento no Congresso. Criam caciques do orçamento e parlamentares de primeira e de segunda classe. O governo eleito, ao propor PEC de R$ 198 bilhões, colocou-se a reboque de Lira. Para não afrontá-lo, o PT aceitou não lançar candidatura própria ao comando da Câmara, topou buscar formas de manter o orçamento secreto e parte da legenda teme que a sentença do STF possa atrapalhar a relação. É uma ironia da história - ou o reinício de uma longa amizade.

Congresso deveria adotar leis para maior transparência

O Globo

Não adianta acabar com orçamento secreto se poder de destinar verbas opacas for transferido ao Executivo

As emendas do relator do Orçamento no Congresso, conhecidas pela sigla RP9 e apelidadas de orçamento secreto, são o exemplo mais descarado da troca de favores entre o governo e o Parlamento, do toma lá dá cá que segue a lógica perversa “darei meu voto se me deres dinheiro ou cargos”. Obviamente, não o único. Na história do presidencialismo de coalizão brasileiro, diferentes mecanismos já foram adotados para o Executivo obter apoio parlamentar e conseguir governar. Está nessa relação a origem dos maiores escândalos de corrupção do país, como mensalão e petrolão.

A discussão sobre o orçamento secreto no Supremo Tribunal Federal abre uma oportunidade. Mas seria um absurdo retirar o poder de destinar recursos de modo opaco dos caciques do Congresso apenas para que ele caia novamente nas mãos do presidente da República e de seus ministros. Para acabar com os acordos espúrios, o Brasil precisa dar um passo na direção da boa governança, estabelecendo a mais absoluta transparência nas negociações entre Executivo e Legislativo.

Prefeitos, governadores e o presidente são geralmente eleitos sem maioria no Legislativo. Montar uma coalizão é pré-requisito para governar. Na ausência de partidos sólidos e acordos com base em ideias e programas, verbas e cargos viram moeda de troca. O problema não está em atender ao interesse dos aliados. Negociações são inerentes à democracia. O problema está na falta de transparência que permite conduzir negócios escusos com dinheiro público, sob a proteção do sigilo.

É verdade que muito já evoluiu, com a adoção de critérios mais republicanos na execução das emendas individuais, de novas leis e a maior fiscalização dos órgãos de controle. Mas ainda resta muito a fazer num país em que proliferam nichos propensos a negociatas. Ninguém cai do céu em cargos da máquina pública. Há sempre “padrinhos”. Governadores, presidente e líderes partidários sabem bem quem ganha o quê e por quê. Ainda que a negociação fosse aberta, os indicados raramente têm qualificação, e obras recebem recursos segundo a lógica política, não prioridades sociais e econômicas. Em caso de irregularidades, os prejuízos são bem maiores.

O fim da excrescência do orçamento secreto, se confirmado, deveria servir de estímulo para que o Congresso crie mecanismos transparentes e eficazes para as negociações com o Executivo. Para começar, toda emenda parlamentar deveria ser identificada no Portal da Transparência pelo nome do beneficiado — como as individuais —, além de apresentar justificativas técnicas emitidas por organismos independentes.

Além disso, qualquer pedido de parlamentar — de verbas a cargos, incluindo execução de emendas — deveria ser registrado publicamente e acompanhado de declaração assinada, garantindo que seu autor não se beneficiará do dinheiro nem das indicações. As demandas por cargos, verbas e respectivos beneficiários, assim como estudos técnicos e qualificações que os embasem, deveriam ser públicos. Ninguém deveria poder assumir cargo no Estado sem o procedimento burocrático que os americanos chamam de vetting, para evitar conflitos de interesses.

Para legisladores republicanos, tais regras não mudariam nada. Mas, entre os fisiológicos, a vigilância da sociedade serviria como freio. Transparência é o mínimo que os eleitos devem àqueles que os elegeram.

Depois de ‘revogaço’, será preciso ter plano para desarmar a população

O Globo

Lei abrandada por Bolsonaro tem sido usada para fornecer armamento de guerra ao crime organizado

Reportagem do GLOBO mostrou que atiradores certificados pelo Exército têm se aproveitado das brechas na lei para comprar armas e desviá-las a organizações criminosas. Registros de Caçador, Atirador Desportivo ou Colecionador (CAC) em nome de laranjas ou documentos falsificados têm sido empregados para municiar quadrilhas com armas pesadas, como fuzis, inacessíveis a cidadãos comuns antes do governo Jair Bolsonaro.

No ano passado, a Polícia Civil de São Paulo identificou um esquema criminoso mantido pelo atirador certificado Vanderson Oliveira Cardoso. Segundo as investigações, ele comprou pelo menos 24 armas no primeiro semestre de 2021 e revendeu metade — 11 fuzis e uma pistola — a bandidos, lucrando mais de R$ 400 mil. Usando um parente como laranja, falsificou o próprio registro e enviou o documento fraudado à Taurus. Sem maiores checagens, a empresa despachou o armamento pelo Correio. Depois de identificar o crime, a polícia sustou entregas pendentes.

Desde que assumiu o governo, Bolsonaro editou uma série de atos normativos que facilitaram o acesso de civis a armas e munições. Não só em quantidade. Uma portaria publicada pelo Exército em 2019 passou a permitir que CACs comprassem fuzis, arma de guerra antes restrita às forças de segurança. Um decreto do presidente autorizou que atiradores comprassem até 30. Em setembro, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pôs um basta à farra, determinando que a compra de armas de uso restrito só poderia ser autorizada “no interesse da segurança pública ou da defesa nacional”.

A despeito do freio imposto pelo Supremo à política armamentista de Bolsonaro, é visível o efeito do afrouxamento da legislação. Segundo levantamento dos institutos Igarapé e Sou da Paz, em agosto deste ano as armas registradas em nome de CACs chegaram a 1 milhão, o triplo do que havia antes do governo Bolsonaro.

É ilusão crer que essas armas estão nas mãos de cidadãos de bem, embora tenham registros em órgãos oficiais idôneos. Quanto mais armamento, mais difícil controlá-lo. A todo momento, surgem notícias de CACs usando permissão legal para comprar armas de guerra e revendê-las a traficantes ou milicianos. As leis do Estado são usadas para municiar as organizações criminosas. Um absurdo.

A equipe de transição para o novo governo anunciou um “revogaço” das decisões que facilitaram a compra, o porte e o transporte de armas e munições. A ideia é bem-vinda, mas resolve apenas parte da questão. As autorizações já concedidas, especialmente ao longo dos últimos quatro anos, puseram nas ruas um arsenal poderoso. Parte das armas vai parar nas mãos de bandidos em consequência de assaltos, desvios, fraudes ou CACs mal-intencionados. O mal já foi consumado. O novo governo precisará de um plano sensato para lidar com o problema. Um país politicamente dividido e cidadãos armados formam uma combinação explosiva.

Emendas abertas

Folha de S. Paulo

STF deve impor transparência, mas sem interferir em prerrogativas do Legislativo

Parece haver consenso entre os ministros do Supremo Tribunal Federal sobre a necessidade de impor maior transparência às bilionárias emendas orçamentárias sob controle da cúpula do Congresso.

Ano passado, o tribunal exigiu que fossem amplamente divulgados os patrocinadores e beneficiários das obscuras emendas de relator do Orçamento, mas os parlamentares até hoje não cumpriram a decisão integralmente.

Embora tenham criado um sistema para dar publicidade às informações, ainda há lacunas injustificáveis que mantém sob segredo os responsáveis por cerca de um terço dos valores manejados por meio desse instrumento.

O julgamento das ações que questionam a constitucionalidade das emendas de relator, cujo início está marcado para esta quarta (7), oferece uma oportunidade para que a determinação do STF seja respeitada sem mais subterfúgios.

A transparência é essencial para que os órgãos de fiscalização e controle possam fazer seu trabalho, responsabilizando parlamentares que praticarem desvios.

Os partidos que levaram o assunto ao tribunal questionam também a falta de critérios na distribuição do dinheiro, aspecto que distingue as emendas de relator de outros dispositivos que asseguram a participação dos congressistas no processo orçamentário.

As emendas individuais e as patrocinadas por bancadas estaduais são reguladas pela Constituição, que limita seu alcance e obriga o governo a executar as despesas previstas sem procrastinação. O mesmo já não ocorre com as emendas de relator, que seguem normas internas do Legislativo e não são impositivas para o Executivo.

A ausência de critérios isonômicos na divisão da verba manipulada faz com que esse modelo de emenda seja utilizado para azeitar as relações entre o Executivo e o Legislativo —ao permitir que deputados comprometidos com o governo sejam favorecidos.

Não há dúvida sobre a necessidade de acabar com o segredo que encobre o mecanismo atualmente, mas interferir na definição dos critérios adotados pelos congressistas para a distribuição do dinheiro é um passo que os ministros do STF deveriam evitar.

A Constituição assegura ao Legislativo a prerrogativa de definir prioridades na alocação dos recursos disponíveis, e cabe aos parlamentares definir os instrumentos necessários para exercê-la.

Se os critérios para apropriação de despesas requerem aprimoramento para evitar a pulverização de recursos escassos, estimular a cooperação com o Executivo e coibir desvios, trata-se de uma discussão a ser feita no âmbito político —e não no plenário do Supremo.

Sobe e desce da miséria

Folha de S. Paulo

Auxílio gera guinadas na pobreza extrema; melhora duradoura depende da economia

Em 2020, quando se experimentava o pior do impacto da pandemia sobre a atividade econômica, o percentual de brasileiros vivendo na miséria recuou ao menor patamar da série histórica do Banco Mundial, iniciada em 1981.

Já no ano passado, enquanto o Produto Interno Bruto do país se recuperava, as taxas de pobreza e extrema pobreza foram as maiores já medidas pelo IBGE, em levantamentos a partir de 2012.

A explicação óbvia para movimentos tão bruscos e aparentemente paradoxais é a intervenção do governo —mais precisamente o auxílio emergencial de R$ 600 mensais instituído em 2020 para minorar os danos sociais da Covid-19 e descontinuado em 2021.

As mesmas reviravoltas nas condições de vida das famílias mais carentes ajudam a entender, aliás, a ofensiva tardia e atabalhoada de Jair Bolsonaro (PL) para restabelecer o valor do benefício, agora chamado Auxílio Brasil, durante a campanha frustrada à reeleição.

Pela métrica do Banco Mundial, a fatia da população na extrema pobreza caiu a 1,95% no ano retrasado, ante 5,39% no pré-pandemia. Já o IBGE, com outra metodologia, apontou que os miseráveis passaram de 5,7% para 8,4% em 2021.

Os critérios mudam de uma instituição para outra, mas não as trajetórias. É cristalino que o auxílio então temporário, mesmo com falhas consideráveis em sua concepção, proporcionou ganhos inéditos na baixa renda. Depois, a interrupção do pagamento foi agravada pela escalada da inflação.

Ainda não se conhecem dados mais atualizados, mas é razoável estimar que hoje, após a volta dos R$ 600 ao mês e a queda expressiva do desemprego ao longo deste 2022, as taxas de pobreza e extrema pobreza sejam menores.

Os números evidenciam a importância do programa de seguridade, mas será ilusório imaginar que desembolsos ilimitados bastarão para pôr fim às chagas sociais do país.

Uma transferência de renda que passa da casa da centena de bilhões em um ano tem, sem dúvida, um grande efeito imediato na redução da miséria. Para uma melhora mais duradoura, entretanto, é essencial que o emprego se mantenha em alta e o poder de compra da população seja preservado.

O desequilíbrio orçamentário, cedo ou tarde, resulta em mais juros, retração econômica e perda de vagas no mercado de trabalho. Em cenários assim, não há despesa assistencial que baste.

O Judiciário e o golpismo nas redes

O Estado de S. Paulo

As eleições acabaram. Não há mais razão para o Judiciário seguir com o papel de interventor das redes sociais, o que só alimenta o imaginário golpista. A resposta deve ser só a lei

O País viveu momentos de especial apreensão neste ano, com investidas inéditas contra o sistema eleitoral e o regime democrático, o que exigiu vigilância extraordinária do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ainda não se pode dizer que tudo voltou à normalidade – bloqueios nas estradas e manifestantes na frente de quartéis contra os resultados das eleições são sintomas de um fenômeno maior, que tem tudo para tensionar o funcionamento das instituições democráticas por vários anos –, mas é preciso reconhecer que a eleição acabou. Não há mais razão para o Judiciário seguir com o papel de interventor das redes sociais, o que só alimenta o imaginário golpista.

Em primeiro lugar, o bolsonarismo não foi vítima nestas eleições. O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores não apenas difundiram desinformação e desconfiança contra o sistema eleitoral, como descumpriram em patamar inédito a legislação eleitoral. Desafiaram inúmeras decisões judiciais, instigando a população contra elas, em perversa manipulação: a aplicação absolutamente corriqueira da jurisprudência do TSE foi muitas vezes apresentada como violação da liberdade de expressão.

O comportamento bolsonarista exigiu, assim, cuidados especiais. Foram ataques inéditos contra a democracia, em relação aos quais não havia remédio previamente estabelecido. O Congresso foi omisso em regular as redes sociais. E muitas vezes as próprias empresas proprietárias das plataformas digitais foram coniventes com o uso ilegal de seus perfis. Ainda que não seja – a lei vale para todos –, em muitas situações o mundo digital pareceu ser um mundo sem lei. O Judiciário não podia se omitir.

No entanto, passadas as eleições, é hora de as águas voltarem ao seu leito normal. O TSE não tem atribuição para ser o interventor do debate público nas redes sociais. Se, em circunstâncias excepcionais, foi necessário bloquear perfis com comportamentos suspeitos – que colocavam em risco a paz e o bom funcionamento do processo eleitoral –, agora as circunstâncias são outras.

Em abril de 2019, em outro caso – era um inquérito criminal no âmbito do STF –, o ministro Alexandre de Moraes voltou atrás numa decisão sua, revogando a censura imposta aos sites da revista Crusoé e de O Antagonista. Na ocasião, dissemos neste espaço que “não cabe à Justiça determinar o que é e o que não é verdadeiro, ordenando retirar – ordenando censurar, repita-se – o que considera que não corresponde aos fatos” (O STF decreta censura, 17/4/2019).

A decisão de Alexandre de Moraes que violou a liberdade de expressão durou poucos dias. De forma muito correta – pode-se dizer, corajosa –, o próprio ministro do STF reconheceu seu erro e suspendeu a ordem restritiva. Desde então, a decisão que decretou a censura foi frequentemente citada por bolsonaristas como exemplo da violação das liberdades que eles estariam sofrendo por parte de Alexandre de Moraes. Na verdade, o caso mostra justamente o oposto. Ao constatar seu erro, o magistrado teve a grandeza de retificar imediatamente, restaurando a liberdade de expressão.

Ainda que sejam contextos diferentes – as decisões da Justiça Eleitoral bloqueando perfis de redes sociais não se baseiam em juízo de verdade sobre o conteúdo publicado –, relembrar o caso de 2019 pode ser didático neste momento. A revogação de decisões não diminui a autoridade de um tribunal, tampouco desqualifica o magistrado. Ao contrário, trata-se de importante manifestação de que o critério da decisão não é a vontade do juiz, mas a lei. No caso do bloqueio dos perfis, mais do que admitir um erro, trata-se de reconhecer que as circunstâncias já não exigem as restrições.

O bolsonarismo continuará tensionando as instituições democráticas e distorcendo o debate público. Eles agem como quem são. A reação do Judiciário deve ser muito diferente. A Justiça aplica a lei, dentro do estritamente necessário. Essa é a melhor resposta da Justiça: a reafirmação firme e serena da lei.

Estados pagam pela demagogia federal

O Estado de S. Paulo

Governadores tentam reconstituir o ICMS para superar as perdas bilionárias causadas aos Estados pelas bondades eleitorais de Bolsonaro, que feriram o princípio federativo

As bondades eleitorais falharam, a demagogia fracassou e o presidente Jair Bolsonaro foi derrotado, mas governos estaduais continuam pagando o preço de uma desastrosa jogada populista. Com apoio de congressistas também atraídos por soluções fáceis e erradas, o presidente da República promoveu a desoneração fiscal de combustíveis, energia elétrica e telecomunicações. Para agradar a consumidores, taxistas e caminhoneiros, decidiu-se aprovar, em Brasília, uma redução de alíquotas do tributo estadual mais importante, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Numa evidente violação do princípio federativo, autoridades federais cortaram dezenas de bilhões de reais da arrecadação estadual, privando os Estados de recursos essenciais para serviços como educação, segurança e saúde.

Efeitos efêmeros e ilusórios dessas medidas apareceram, durante alguns meses, nos preços de combustíveis e nos indicadores de inflação. Durante algum tempo, o presidente pôde alardear seu esforço anti-inflacionário, como se fosse possível combater o desajuste dos preços com medidas voluntaristas e de curto alcance.

A fantasia logo se dissipou, porque permaneceram, no mercado internacional e no Brasil, as causas do encarecimento de bens e serviços. A ilusão acabou, mas permaneceu a perda causada aos Estados e também aos municípios, porque a estes é destinada uma parcela da arrecadação do ICMS. Permaneceu para governadores e prefeitos o desafio de cumprir seu papel com menos dinheiro. Para as populações sobraram os danos ocasionados pelo ataque aos cofres estaduais e municipais.

Sem grandes alternativas para normalizar suas finanças, governos de alguns Estados – Pará, Piauí, Paraná e Sergipe – encaminharam às Assembleias propostas de elevação de tributos. Divulgado depois dessa iniciativa, um trabalho do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados (Comsefaz) deu uma primeira indicação das mudanças necessárias para restabelecer a arrecadação. A recomposição da receita poderá ser alcançada, de acordo com esse estudo, se os Estados aumentarem a alíquota média do ICMS de 17,5% para 21,5% a partir de 2023. Essa alíquota média, ou padrão, proporciona cerca de um terço da receita anual do ICMS.

Outras medidas, como a redução ou a eliminação de benefícios setoriais, também podem reforçar a arrecadação, mas dependerão do exame das condições e das possibilidades de cada Estado.

É muito difícil, de fato, pensar em formas adequadas de compensar os estragos causados pela ação demagógica do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados no Congresso. Durante mais de meio século, governos estaduais ajustaram o ICMS a suas políticas de desenvolvimento e de atenção a necessidades setoriais e sociais. Algumas dessas ações, como a concessão de facilidades fiscais para atrair investimentos industriais e reduzir as desigualdades entre regiões, ocasionaram disputas políticas e judiciais e foram criticadas como causadoras de distorções e de má alocação de recursos. Algumas dessas críticas eram bem fundamentadas, mas, apesar disso, as estratégias de desenvolvimento regional produziram algum resultado.

Sem grande sucesso, houve tentativas de eliminar por meio de leis federais a guerra fiscal entre Estados. Mas, ao longo dessas disputas e tentativas de apaziguamento, o princípio federativo foi mantido.

Até atos defensáveis em outras circunstâncias foram realizados de forma errada, nos últimos anos, pelo poder federal. Havia argumentos ponderáveis a favor da redução do ICMS sobre combustíveis e energia elétrica. Mas essa alteração só seria realizável de forma adequada como parte de um redesenho mais amplo e bem calculado – nunca de forma improvisada e demagógica, como se viu. Mas quem poderia, no Executivo federal, propor essa mudança planejada, funcional e economicamente benéfica? Não seria, com certeza, o titular da Economia, Paulo Guedes, um raro exemplo de ministro capaz de chefiar essa área por quatro anos sem jamais formular um projeto de política econômica.

Mais do que palavras

O Estado de S. Paulo

Não basta a Tarcisio afirmar que não é bolsonarista ‘raiz’; suas ações precisam deixar isso claro

É bem-vinda a declaração do governador eleito de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), de que nunca foi um “bolsonarista raiz”. Mas só falar não basta: serão suas ações, mais do que suas palavras, que revelarão em que medida o futuro governador está disposto a se distanciar de práticas e condutas nocivas ao País. O “bolsonarismo raiz”, definitivamente, não fez bem ao Brasil e deve ficar longe de São Paulo.

Tarcísio de Freitas também expressou uma visão crítica da guerra ideológica e cultural incentivada pelo presidente Jair Bolsonaro nos últimos quatro anos, bem como da postura beligerante e de permanente confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF). “Não vou fazer o que erramos no governo federal, tensionar com Poderes. Vamos conversar com ministros do STF”, disse o governador eleito em entrevista à CNN Brasil.

Se há algo que contaminou o ambiente político, social e econômico do País nos últimos quatro anos foram os constantes ataques bolsonaristas ao Supremo, à imprensa e a qualquer instituição que não se curvasse ao autoritarismo de Bolsonaro. Na lógica bolsonarista, afrontar e desrespeitar as instituições virou motivo de orgulho e apreço por parte do presidente da República − em uma completa inversão de valores, considerando que o único poder do presidente é aquele que lhe cabe como ocupante temporário de um cargo institucional.

De novo, porém, cabe lembrar ao governador eleito que somente falar não basta. Nesse sentido, a escolha de alguém como o deputado federal Capitão Derrite (PL-SP) para comandar a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo vai na contramão do que disse Tarcísio de Freitas. Capitão Derrite é representante fiel do tal “bolsonarismo raiz”, ideologia que considera a truculência policial um valor positivo.

A Secretaria de Segurança Pública é cargo estratégico, pois seu ocupante toma decisões capazes de interferir diretamente na vida de toda a população. E o bolsonarismo extremista não tem contribuição a dar para a melhoria e a profissionalização das polícias e das políticas de segurança pública. Exemplo disso é a oposição ferrenha e irresponsável que bolsonaristas radicais fazem ao uso de câmeras nas fardas de policiais militares − uma iniciativa comprovadamente bem-sucedida, que reduz a letalidade policial.

Ao contrário do que apregoam seus críticos, as câmeras fortalecem o combate ao crime e ajudam a tornar ainda mais rigorosa a aplicação da lei, ao mesmo tempo que protegem a vida de policiais e de civis. Algo que o próprio Tarcísio de Freitas, sensatamente, já dá sinais de compreender, como se viu na mesma entrevista à CNN.

Compreende-se que Tarcisio de Freitas se sinta obrigado a quitar sua dívida com Bolsonaro, pois foi o presidente que o transformou de burocrata desconhecido em candidato vencedor no Estado mais rico do País. Mas entregar a segurança dos paulistas nas mãos de quem festeja a morte de suspeitos por policiais, caso do sr. Derrite, mostra que o governador eleito, se não é adepto do “bolsonarismo raiz”, tem sido incapaz de dissociar-se dessa ideologia destrutiva.

 

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