STF precisa por um fim ao orçamento secreto
Valor Econômico
O governo eleito colocou-se a reboque de
Lira e parte do PT teme que a sentença do STF possa atrapalhar a relação
Dinheiro é poder e o orçamento da República
é um poder maior, político, econômico e social. O orçamento secreto é
subterfúgio que captura esta prerrogativa como poder paralelo, escondido do
olhar do público. O Supremo Tribunal Federal inicia hoje julgamento da
legalidade do instrumento criado pelo Congresso para que um grupo de
parlamentares, em acordo com o governo de Jair Bolsonaro, dominasse um bom
pedaço dos recursos dos contribuintes e o distribuísse segundo interesses
partidários e privados. O STF deveria sepultá-lo.
As emendas do relator, nome fantasia do
orçamento secreto, refletem o oportunismo de lideranças do Centrão e de Bolsonaro,
e são parte importante do caos orçamentário desenhado por ambos. Tornou-se
coadjuvante da penúria de dinheiro para o funcionamento da máquina pública, e
meio de barganha com o governo eleito. Lula chamou-o na campanha eleitoral de
“podridão”, de a “maior excrescência orçamentária política do país”, e algo
pior que o mensalão, que abateu próceres de seu governo. Eleito, negocia como
mantê-lo.
As emendas do relator ampliam o controle do orçamento pelo Congresso, depois que, em 2015, as emendas parlamentares tornaram-se obrigatórias. O ponto em comum das iniciativas foi a existência de Executivos fracos ou acuados - como o de Dilma Rousseff, antes do impeachment, e de Jair Bolsonaro, para evitar um impeachment.
O expediente é flagrantemente ilegal. Fere
os princípios constitucionais da publicidade, moralidade, isonomia,
impessoalidade e equidade. “Viola o princípio republicano e transgride os
postulados informadores do regime de transparência no uso dos recursos
financeiros do Estado”, disse a presidente do STF, Rosa Weber, ao suspendê-lo
há um ano.
Câmara e Senado continuaram os repasses,
argumentando, primeiro, que era impossível discriminar autores e beneficiários
de milhões de reais transferidos em 2020 e 2021 e, depois, que alguma
visibilidade só ocorreria nas emendas de 2022. Na essência, essas emendas
seguem privilegiando um pequeno grupo de deputados e senadores escolhido pela
cúpula do Congresso. Os beneficiários continuam ocultos, agora sob a figura do
“usuário externo”, que não precisa ter cargo público, mas pode pleitear
recursos.
Ao lado das emendas “PIX”, pelas quais
parlamentares enviam verbas diretamente para prefeituras, sem finalidade
específica - a bel-prazer do freguês -, as emendas do relator marcam o auge da
apropriação de recursos públicos pelos partidos fisiológicos em proveito de si
próprios. São um maná para intermediários de obras públicas e um estímulo para
a corrupção. Um olhar superficial sobre a distribuição desses recursos mostra
nepotismo - prefeituras de pais, filhos e parentes de diversos graus
aquinhoados -, e desperdício com superfaturamento de obras e equipamentos,
especialmente na Codevasf, dirigida por indicados do Centrão.
O governo teve de bloquear R$ 7,4 bilhões
de emendas do relator em meio a gastos essenciais, mas estas despesas políticas
são consideradas essenciais pela cúpula do Congresso e do Centrão. A PEC do
governo eleito parece ser providencialmente a solução. A PEC de Transição, que
mais uma vez fura o teto de gastos, poderia assumir o pagamento das emendas que
o orçamento atual não comporta, já que, se aprovada, valeria imediatamente, já
em dezembro.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, que
quer ser reeleito e é um dos principais beneficiários do orçamento secreto, não
abre mão dele e considera as emendas do relator “democráticas”, embora não
sejam públicos nem seus autores nem os beneficiários. Lira foi muito claro ao
definir as opções do próximo governo. “Ou são as emendas do relator ou o
mensalão”, disse, indicando que o apoio a projetos do Executivo, logo a
governabilidade, depende da escolha entre dois instrumentos anti-republicanos.
As emendas obrigatórias sacramentam a balcanização dos recursos orçamentários que, sem orientação do Executivo, se distanciam das prioridades nacionais e atendem interesses paroquiais de coronéis regionais com assento no Congresso. Criam caciques do orçamento e parlamentares de primeira e de segunda classe. O governo eleito, ao propor PEC de R$ 198 bilhões, colocou-se a reboque de Lira. Para não afrontá-lo, o PT aceitou não lançar candidatura própria ao comando da Câmara, topou buscar formas de manter o orçamento secreto e parte da legenda teme que a sentença do STF possa atrapalhar a relação. É uma ironia da história - ou o reinício de uma longa amizade.
O Globo
Não adianta acabar com orçamento secreto se
poder de destinar verbas opacas for transferido ao Executivo
As emendas do relator do Orçamento no
Congresso, conhecidas pela sigla RP9 e apelidadas de orçamento secreto, são o
exemplo mais descarado da troca de favores entre o governo e o Parlamento, do
toma lá dá cá que segue a lógica perversa “darei meu voto se me deres dinheiro
ou cargos”. Obviamente, não o único. Na história do presidencialismo de
coalizão brasileiro, diferentes mecanismos já foram adotados para o Executivo
obter apoio parlamentar e conseguir governar. Está nessa relação a origem dos
maiores escândalos de corrupção do país, como mensalão e petrolão.
A discussão sobre o orçamento secreto no Supremo Tribunal Federal abre uma oportunidade. Mas seria um absurdo retirar o poder de destinar recursos de modo opaco dos caciques do Congresso apenas para que ele caia novamente nas mãos do presidente da República e de seus ministros. Para acabar com os acordos espúrios, o Brasil precisa dar um passo na direção da boa governança, estabelecendo a mais absoluta transparência nas negociações entre Executivo e Legislativo.
Prefeitos, governadores e o presidente são
geralmente eleitos sem maioria no Legislativo. Montar uma coalizão é
pré-requisito para governar. Na ausência de partidos sólidos e acordos com base
em ideias e programas, verbas e cargos viram moeda de troca. O problema não
está em atender ao interesse dos aliados. Negociações são inerentes à
democracia. O problema está na falta de transparência que permite conduzir
negócios escusos com dinheiro público, sob a proteção do sigilo.
É verdade que muito já evoluiu, com a
adoção de critérios mais republicanos na execução das emendas individuais, de
novas leis e a maior fiscalização dos órgãos de controle. Mas ainda resta muito
a fazer num país em que proliferam nichos propensos a negociatas. Ninguém cai
do céu em cargos da máquina pública. Há sempre “padrinhos”. Governadores,
presidente e líderes partidários sabem bem quem ganha o quê e por quê. Ainda
que a negociação fosse aberta, os indicados raramente têm qualificação, e obras
recebem recursos segundo a lógica política, não prioridades sociais e
econômicas. Em caso de irregularidades, os prejuízos são bem maiores.
O fim da excrescência do orçamento secreto,
se confirmado, deveria servir de estímulo para que o Congresso crie mecanismos
transparentes e eficazes para as negociações com o Executivo. Para começar,
toda emenda parlamentar deveria ser identificada no Portal da Transparência
pelo nome do beneficiado — como as individuais —, além de apresentar
justificativas técnicas emitidas por organismos independentes.
Além disso, qualquer pedido de parlamentar
— de verbas a cargos, incluindo execução de emendas — deveria ser registrado
publicamente e acompanhado de declaração assinada, garantindo que seu autor não
se beneficiará do dinheiro nem das indicações. As demandas por cargos, verbas e
respectivos beneficiários, assim como estudos técnicos e qualificações que os embasem,
deveriam ser públicos. Ninguém deveria poder assumir cargo no Estado sem o
procedimento burocrático que os americanos chamam de vetting, para evitar
conflitos de interesses.
Para legisladores republicanos, tais regras
não mudariam nada. Mas, entre os fisiológicos, a vigilância da sociedade
serviria como freio. Transparência é o mínimo que os eleitos devem àqueles que
os elegeram.
Depois de ‘revogaço’, será preciso ter
plano para desarmar a população
O Globo
Lei abrandada por Bolsonaro tem sido usada
para fornecer armamento de guerra ao crime organizado
Reportagem do GLOBO mostrou que atiradores
certificados pelo Exército têm se aproveitado das brechas na lei para comprar
armas e desviá-las a organizações criminosas. Registros de Caçador, Atirador
Desportivo ou Colecionador (CAC) em nome de laranjas ou documentos falsificados
têm sido empregados para municiar quadrilhas com armas pesadas, como fuzis,
inacessíveis a cidadãos comuns antes do governo Jair Bolsonaro.
No ano passado, a Polícia Civil de São
Paulo identificou um esquema criminoso mantido pelo atirador certificado
Vanderson Oliveira Cardoso. Segundo as investigações, ele comprou pelo menos 24
armas no primeiro semestre de 2021 e revendeu metade — 11 fuzis e uma pistola —
a bandidos, lucrando mais de R$ 400 mil. Usando um parente como laranja, falsificou
o próprio registro e enviou o documento fraudado à Taurus. Sem maiores
checagens, a empresa despachou o armamento pelo Correio. Depois de identificar
o crime, a polícia sustou entregas pendentes.
Desde que assumiu o governo, Bolsonaro
editou uma série de atos normativos que facilitaram o acesso de civis a armas e
munições. Não só em quantidade. Uma portaria publicada pelo Exército em 2019
passou a permitir que CACs comprassem fuzis, arma de guerra antes restrita às
forças de segurança. Um decreto do presidente autorizou que atiradores
comprassem até 30. Em setembro, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)
pôs um basta à farra, determinando que a compra de armas de uso restrito só
poderia ser autorizada “no interesse da segurança pública ou da defesa
nacional”.
A despeito do freio imposto pelo Supremo à
política armamentista de Bolsonaro, é visível o efeito do afrouxamento da
legislação. Segundo levantamento dos institutos Igarapé e Sou da Paz, em agosto
deste ano as armas registradas em nome de CACs chegaram a 1 milhão, o triplo do
que havia antes do governo Bolsonaro.
É ilusão crer que essas armas estão nas
mãos de cidadãos de bem, embora tenham registros em órgãos oficiais idôneos.
Quanto mais armamento, mais difícil controlá-lo. A todo momento, surgem
notícias de CACs usando permissão legal para comprar armas de guerra e
revendê-las a traficantes ou milicianos. As leis do Estado são usadas para
municiar as organizações criminosas. Um absurdo.
A equipe de transição para o novo governo anunciou um “revogaço” das decisões que facilitaram a compra, o porte e o transporte de armas e munições. A ideia é bem-vinda, mas resolve apenas parte da questão. As autorizações já concedidas, especialmente ao longo dos últimos quatro anos, puseram nas ruas um arsenal poderoso. Parte das armas vai parar nas mãos de bandidos em consequência de assaltos, desvios, fraudes ou CACs mal-intencionados. O mal já foi consumado. O novo governo precisará de um plano sensato para lidar com o problema. Um país politicamente dividido e cidadãos armados formam uma combinação explosiva.
Emendas abertas
Folha de S. Paulo
STF deve impor transparência, mas sem
interferir em prerrogativas do Legislativo
Parece haver consenso entre os ministros do
Supremo Tribunal Federal sobre a necessidade de impor maior transparência às
bilionárias emendas orçamentárias sob controle da cúpula do Congresso.
Ano passado, o tribunal
exigiu que fossem amplamente divulgados os patrocinadores e beneficiários das
obscuras emendas de relator do Orçamento, mas os parlamentares
até hoje não cumpriram a decisão integralmente.
Embora tenham criado um sistema para dar
publicidade às informações, ainda há lacunas injustificáveis que mantém sob
segredo os responsáveis por cerca de um terço dos valores manejados por meio
desse instrumento.
O julgamento
das ações que questionam a constitucionalidade das emendas de relator,
cujo início está marcado para esta quarta (7), oferece uma oportunidade para
que a determinação do STF seja respeitada sem mais subterfúgios.
A transparência é essencial para que os
órgãos de fiscalização e controle possam fazer seu trabalho, responsabilizando
parlamentares que praticarem desvios.
Os partidos que levaram o assunto ao
tribunal questionam também a falta de critérios na distribuição do dinheiro,
aspecto que distingue as emendas de relator de outros dispositivos que asseguram
a participação dos congressistas no processo orçamentário.
As emendas individuais e as patrocinadas
por bancadas estaduais são reguladas pela Constituição, que limita seu alcance
e obriga o governo a executar as despesas previstas sem procrastinação. O mesmo
já não ocorre com as emendas de relator, que seguem normas internas do
Legislativo e não são impositivas para o Executivo.
A ausência de critérios isonômicos na
divisão da verba manipulada faz com que esse modelo de emenda seja utilizado
para azeitar as relações entre o Executivo e o Legislativo —ao permitir que
deputados comprometidos com o governo sejam favorecidos.
Não há dúvida sobre a necessidade de acabar
com o segredo que encobre o mecanismo atualmente, mas interferir na definição
dos critérios adotados pelos congressistas para a distribuição do dinheiro é um
passo que os ministros do STF deveriam evitar.
A Constituição assegura ao Legislativo a
prerrogativa de definir prioridades na alocação dos recursos disponíveis, e
cabe aos parlamentares definir os instrumentos necessários para exercê-la.
Se os critérios para apropriação de
despesas requerem aprimoramento para evitar a pulverização de recursos
escassos, estimular a cooperação com o Executivo e coibir desvios, trata-se de
uma discussão a ser feita no âmbito político —e não no plenário do Supremo.
Sobe e desce da miséria
Folha de S. Paulo
Auxílio gera guinadas na pobreza extrema;
melhora duradoura depende da economia
Em 2020, quando se experimentava o pior do
impacto da pandemia sobre a atividade econômica, o percentual de brasileiros
vivendo na miséria recuou ao
menor patamar da série histórica do Banco Mundial, iniciada em 1981.
Já no ano passado, enquanto o Produto
Interno Bruto do país se recuperava, as taxas de pobreza e extrema pobreza
foram as maiores já medidas pelo IBGE, em levantamentos a partir de 2012.
A explicação óbvia para movimentos tão
bruscos e aparentemente paradoxais é a intervenção do governo —mais
precisamente o auxílio emergencial de R$ 600 mensais instituído em 2020 para
minorar os danos sociais da Covid-19 e descontinuado em 2021.
As mesmas reviravoltas nas condições de
vida das famílias mais carentes ajudam a entender, aliás, a ofensiva tardia e
atabalhoada de Jair Bolsonaro (PL) para restabelecer o valor do benefício,
agora chamado Auxílio Brasil, durante a campanha frustrada à reeleição.
Pela métrica do Banco Mundial, a fatia da
população na extrema pobreza caiu a 1,95% no ano retrasado, ante 5,39% no
pré-pandemia. Já o IBGE, com outra metodologia, apontou que
os miseráveis passaram de 5,7% para 8,4% em 2021.
Os critérios mudam de uma instituição para
outra, mas não as trajetórias. É cristalino que o auxílio então temporário,
mesmo com falhas consideráveis em sua concepção, proporcionou ganhos inéditos
na baixa renda. Depois, a interrupção do pagamento foi agravada pela escalada
da inflação.
Ainda não se conhecem dados mais
atualizados, mas é razoável estimar que hoje, após a volta dos R$ 600 ao mês e
a queda expressiva do desemprego ao longo deste 2022, as taxas de pobreza e
extrema pobreza sejam menores.
Os números evidenciam a importância do
programa de seguridade, mas será ilusório imaginar que desembolsos ilimitados
bastarão para pôr fim às chagas sociais do país.
Uma transferência de renda que passa da
casa da centena de bilhões em um ano tem, sem dúvida, um grande efeito imediato
na redução da miséria. Para uma melhora mais duradoura, entretanto, é essencial
que o emprego se mantenha em alta e o poder de compra da população seja
preservado.
O desequilíbrio orçamentário, cedo ou
tarde, resulta em mais juros, retração econômica e perda de vagas no mercado de
trabalho. Em cenários assim, não há despesa assistencial que baste.
O Judiciário e o golpismo nas redes
O Estado de S. Paulo
As eleições acabaram. Não há mais razão
para o Judiciário seguir com o papel de interventor das redes sociais, o que só
alimenta o imaginário golpista. A resposta deve ser só a lei
O País viveu momentos de especial apreensão
neste ano, com investidas inéditas contra o sistema eleitoral e o regime
democrático, o que exigiu vigilância extraordinária do Poder Judiciário, em
especial do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE). Ainda não se pode dizer que tudo voltou à normalidade – bloqueios nas
estradas e manifestantes na frente de quartéis contra os resultados das
eleições são sintomas de um fenômeno maior, que tem tudo para tensionar o
funcionamento das instituições democráticas por vários anos –, mas é preciso
reconhecer que a eleição acabou. Não há mais razão para o Judiciário seguir com
o papel de interventor das redes sociais, o que só alimenta o imaginário
golpista.
Em primeiro lugar, o bolsonarismo não foi
vítima nestas eleições. O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores não
apenas difundiram desinformação e desconfiança contra o sistema eleitoral, como
descumpriram em patamar inédito a legislação eleitoral. Desafiaram inúmeras
decisões judiciais, instigando a população contra elas, em perversa
manipulação: a aplicação absolutamente corriqueira da jurisprudência do TSE foi
muitas vezes apresentada como violação da liberdade de expressão.
O comportamento bolsonarista exigiu, assim,
cuidados especiais. Foram ataques inéditos contra a democracia, em relação aos
quais não havia remédio previamente estabelecido. O Congresso foi omisso em
regular as redes sociais. E muitas vezes as próprias empresas proprietárias das
plataformas digitais foram coniventes com o uso ilegal de seus perfis. Ainda
que não seja – a lei vale para todos –, em muitas situações o mundo digital
pareceu ser um mundo sem lei. O Judiciário não podia se omitir.
No entanto, passadas as eleições, é hora de
as águas voltarem ao seu leito normal. O TSE não tem atribuição para ser o
interventor do debate público nas redes sociais. Se, em circunstâncias
excepcionais, foi necessário bloquear perfis com comportamentos suspeitos – que
colocavam em risco a paz e o bom funcionamento do processo eleitoral –, agora
as circunstâncias são outras.
Em abril de 2019, em outro caso – era um
inquérito criminal no âmbito do STF –, o ministro Alexandre de Moraes voltou
atrás numa decisão sua, revogando a censura imposta aos sites da revista Crusoé
e de O Antagonista. Na ocasião, dissemos neste espaço que “não cabe à Justiça
determinar o que é e o que não é verdadeiro, ordenando retirar – ordenando
censurar, repita-se – o que considera que não corresponde aos fatos” (O STF
decreta censura, 17/4/2019).
A decisão de Alexandre de Moraes que violou
a liberdade de expressão durou poucos dias. De forma muito correta – pode-se
dizer, corajosa –, o próprio ministro do STF reconheceu seu erro e suspendeu a
ordem restritiva. Desde então, a decisão que decretou a censura foi
frequentemente citada por bolsonaristas como exemplo da violação das liberdades
que eles estariam sofrendo por parte de Alexandre de Moraes. Na verdade, o caso
mostra justamente o oposto. Ao constatar seu erro, o magistrado teve a grandeza
de retificar imediatamente, restaurando a liberdade de expressão.
Ainda que sejam contextos diferentes – as
decisões da Justiça Eleitoral bloqueando perfis de redes sociais não se baseiam
em juízo de verdade sobre o conteúdo publicado –, relembrar o caso de 2019 pode
ser didático neste momento. A revogação de decisões não diminui a autoridade de
um tribunal, tampouco desqualifica o magistrado. Ao contrário, trata-se de
importante manifestação de que o critério da decisão não é a vontade do juiz,
mas a lei. No caso do bloqueio dos perfis, mais do que admitir um erro,
trata-se de reconhecer que as circunstâncias já não exigem as restrições.
O bolsonarismo continuará tensionando as instituições
democráticas e distorcendo o debate público. Eles agem como quem são. A reação
do Judiciário deve ser muito diferente. A Justiça aplica a lei, dentro do
estritamente necessário. Essa é a melhor resposta da Justiça: a reafirmação
firme e serena da lei.
Estados pagam pela demagogia federal
O Estado de S. Paulo
Governadores tentam reconstituir o ICMS
para superar as perdas bilionárias causadas aos Estados pelas bondades
eleitorais de Bolsonaro, que feriram o princípio federativo
As bondades eleitorais falharam, a
demagogia fracassou e o presidente Jair Bolsonaro foi derrotado, mas governos
estaduais continuam pagando o preço de uma desastrosa jogada populista. Com
apoio de congressistas também atraídos por soluções fáceis e erradas, o
presidente da República promoveu a desoneração fiscal de combustíveis, energia
elétrica e telecomunicações. Para agradar a consumidores, taxistas e
caminhoneiros, decidiu-se aprovar, em Brasília, uma redução de alíquotas do
tributo estadual mais importante, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços (ICMS). Numa evidente violação do princípio federativo, autoridades
federais cortaram dezenas de bilhões de reais da arrecadação estadual, privando
os Estados de recursos essenciais para serviços como educação, segurança e
saúde.
Efeitos efêmeros e ilusórios dessas medidas
apareceram, durante alguns meses, nos preços de combustíveis e nos indicadores
de inflação. Durante algum tempo, o presidente pôde alardear seu esforço
anti-inflacionário, como se fosse possível combater o desajuste dos preços com
medidas voluntaristas e de curto alcance.
A fantasia logo se dissipou, porque
permaneceram, no mercado internacional e no Brasil, as causas do encarecimento
de bens e serviços. A ilusão acabou, mas permaneceu a perda causada aos Estados
e também aos municípios, porque a estes é destinada uma parcela da arrecadação
do ICMS. Permaneceu para governadores e prefeitos o desafio de cumprir seu
papel com menos dinheiro. Para as populações sobraram os danos ocasionados pelo
ataque aos cofres estaduais e municipais.
Sem grandes alternativas para normalizar suas
finanças, governos de alguns Estados – Pará, Piauí, Paraná e Sergipe –
encaminharam às Assembleias propostas de elevação de tributos. Divulgado depois
dessa iniciativa, um trabalho do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos
Estados (Comsefaz) deu uma primeira indicação das mudanças necessárias para
restabelecer a arrecadação. A recomposição da receita poderá ser alcançada, de
acordo com esse estudo, se os Estados aumentarem a alíquota média do ICMS de
17,5% para 21,5% a partir de 2023. Essa alíquota média, ou padrão, proporciona
cerca de um terço da receita anual do ICMS.
Outras medidas, como a redução ou a
eliminação de benefícios setoriais, também podem reforçar a arrecadação, mas
dependerão do exame das condições e das possibilidades de cada Estado.
É muito difícil, de fato, pensar em formas
adequadas de compensar os estragos causados pela ação demagógica do presidente
Jair Bolsonaro e de seus aliados no Congresso. Durante mais de meio século,
governos estaduais ajustaram o ICMS a suas políticas de desenvolvimento e de
atenção a necessidades setoriais e sociais. Algumas dessas ações, como a
concessão de facilidades fiscais para atrair investimentos industriais e
reduzir as desigualdades entre regiões, ocasionaram disputas políticas e
judiciais e foram criticadas como causadoras de distorções e de má alocação de
recursos. Algumas dessas críticas eram bem fundamentadas, mas, apesar disso, as
estratégias de desenvolvimento regional produziram algum resultado.
Sem grande sucesso, houve tentativas de eliminar
por meio de leis federais a guerra fiscal entre Estados. Mas, ao longo dessas
disputas e tentativas de apaziguamento, o princípio federativo foi mantido.
Até atos defensáveis em outras
circunstâncias foram realizados de forma errada, nos últimos anos, pelo poder
federal. Havia argumentos ponderáveis a favor da redução do ICMS sobre
combustíveis e energia elétrica. Mas essa alteração só seria realizável de
forma adequada como parte de um redesenho mais amplo e bem calculado – nunca de
forma improvisada e demagógica, como se viu. Mas quem poderia, no Executivo
federal, propor essa mudança planejada, funcional e economicamente benéfica?
Não seria, com certeza, o titular da Economia, Paulo Guedes, um raro exemplo de
ministro capaz de chefiar essa área por quatro anos sem jamais formular um projeto
de política econômica.
Mais do que palavras
O Estado de S. Paulo
Não basta a Tarcisio afirmar que não é
bolsonarista ‘raiz’; suas ações precisam deixar isso claro
É bem-vinda a declaração do governador eleito
de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), de que nunca foi um
“bolsonarista raiz”. Mas só falar não basta: serão suas ações, mais do que suas
palavras, que revelarão em que medida o futuro governador está disposto a se
distanciar de práticas e condutas nocivas ao País. O “bolsonarismo raiz”,
definitivamente, não fez bem ao Brasil e deve ficar longe de São Paulo.
Tarcísio de Freitas também expressou uma
visão crítica da guerra ideológica e cultural incentivada pelo presidente Jair
Bolsonaro nos últimos quatro anos, bem como da postura beligerante e de
permanente confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF). “Não vou fazer o que
erramos no governo federal, tensionar com Poderes. Vamos conversar com
ministros do STF”, disse o governador eleito em entrevista à CNN Brasil.
Se há algo que contaminou o ambiente
político, social e econômico do País nos últimos quatro anos foram os
constantes ataques bolsonaristas ao Supremo, à imprensa e a qualquer
instituição que não se curvasse ao autoritarismo de Bolsonaro. Na lógica
bolsonarista, afrontar e desrespeitar as instituições virou motivo de orgulho e
apreço por parte do presidente da República − em uma completa inversão de
valores, considerando que o único poder do presidente é aquele que lhe cabe
como ocupante temporário de um cargo institucional.
De novo, porém, cabe lembrar ao governador
eleito que somente falar não basta. Nesse sentido, a escolha de alguém como o
deputado federal Capitão Derrite (PL-SP) para comandar a Secretaria de
Segurança Pública de São Paulo vai na contramão do que disse Tarcísio de
Freitas. Capitão Derrite é representante fiel do tal “bolsonarismo raiz”,
ideologia que considera a truculência policial um valor positivo.
A Secretaria de Segurança Pública é cargo
estratégico, pois seu ocupante toma decisões capazes de interferir diretamente
na vida de toda a população. E o bolsonarismo extremista não tem contribuição a
dar para a melhoria e a profissionalização das polícias e das políticas de
segurança pública. Exemplo disso é a oposição ferrenha e irresponsável que
bolsonaristas radicais fazem ao uso de câmeras nas fardas de policiais
militares − uma iniciativa comprovadamente bem-sucedida, que reduz a letalidade
policial.
Ao contrário do que apregoam seus críticos,
as câmeras fortalecem o combate ao crime e ajudam a tornar ainda mais rigorosa
a aplicação da lei, ao mesmo tempo que protegem a vida de policiais e de civis.
Algo que o próprio Tarcísio de Freitas, sensatamente, já dá sinais de
compreender, como se viu na mesma entrevista à CNN.
Compreende-se que Tarcisio de Freitas se
sinta obrigado a quitar sua dívida com Bolsonaro, pois foi o presidente que o
transformou de burocrata desconhecido em candidato vencedor no Estado mais rico
do País. Mas entregar a segurança dos paulistas nas mãos de quem festeja a
morte de suspeitos por policiais, caso do sr. Derrite, mostra que o governador
eleito, se não é adepto do “bolsonarismo raiz”, tem sido incapaz de
dissociar-se dessa ideologia destrutiva.
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