quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Roberto DaMatta - Que o gênio da lâmpada esteja do nosso lado na Copa

O Globo

O esporte consegue reunir objetividade, desejo e vontade, numa combinação cujo ponto culminante é o inesperado

Como anotei aqui, a Copa do Mundo de futebol ocorre nas Arábias — a terra das Mil e Uma Noites, de camelos e desertos, burcas, califas, tapetes voadores e haréns idealizados nos filmes em tecnicolor de Hollywood...

Tudo isso que, num mundo globalizado e transparente, tem subsistido pelo puritanismo islâmico, pela opressão de gênero e por uma riqueza estonteante custeada pelo petróleo, hoje posto na lista que tem seu negrume.

Mas, diante dos inesperados desta Copa das Arábias, é impossível não invocar o gênio da lâmpada de Aladim, porque o futebol é o gênio do encantamento que nos confronta com os impensados e as deliciosas surpresas quando um país negro e pobre vence ou empata com as potências do planeta, revelando — como garante a fábula do gênio da lâmpada maravilhosa — que ninguém tem tudo todo o tempo nas mesmas proporções. E que a riqueza mágica dessa arte penosamente esculpida pelos pés que nos amarram ao chão liberta quando a lâmpada mágica é devidamente esfregada por algum Aladim. O gênio que glorifica o amor pela camisa e a tenacidade tornada arte, negando aos donos do mercado e do mundo uma eventual vitória.

A excitação do futebol tem mais a ver com compensação do que com emoções, subprodutos das regras que, numa Copa do Mundo, transformam times em totens de Estados nacionais e põem em campo pedaços de cruéis histórias coloniais e imperiais.

Futebol entre árabes era inimaginável para a minha geração. Gente que descobriu o futebol nos anos 1940 e — depois de roubá-lo dos brincalhões ingleses — tornou-se mestre na arte do pé na bola. Curioso que ninguém tenha observado essa contrariedade da teoria clássica da colonização, já que o futebol a inverte, provando como o colonizado pode ser melhor que o colonizador.

A Copa de 1950 foi a primeira depois da Segunda Guerra Mundial. Copa que hospedamos e para a qual construímos o maior estádio do mundo: o Maracanã, uma arena futebolística rival do Coliseu, com capacidade de abrigar 200 mil espectadores! No caso, alucinados “torcedores” pelo selecionado brasileiro, que, naquela edição, não jogava bola, mas a “comia”, carregando a terrível e maravilhosa responsabilidade de nos livrar da inferioridade de “povo mestiço, doente e inferior”, essa praga que jogamos a todo momento sobre nós mesmos.

Mas, como o futebol (e os esportes em geral) faz parte da vida — em certos momentos, com ela compete ou até mesmo consegue superá-la —, foi justo nessa Copa de 1950 que perdemos no último jogo para o Uruguai. Deixamos de ficar com a Taça Jules Rimet, que depois veio a ser lenitivamente nossa e, em seguida, foi devidamente afanada, tornando-se um troféu — como tantos outros — apaixonadamente conquistado e paradoxalmente perdido.

Coisas brasileiras que remetem à Arábia e ao Aladim, cujo gênio da lâmpada maravilhosa contraria expectativas, esse espírito dos milagres — isso que é o traço essencial das disputas e dos jogos, de concursos, eleições e competições em geral. Essa dimensão da vida social em que a excelência e o mérito substituem o nome de família e os dotes aristocráticos. No futebol, a prova do pudim não é a pompa vazia dos discursos malandros, mas é saber jogar e — eis o espanto — ficar rico suando a camisa e produzindo, fazendo gols e vencendo.

Neste nosso mundo em mudança e globalizado, é o esporte que consegue reunir objetividade, desejo e vontade numa combinação cujo ponto culminante é o inesperado. O súbito sublime ou mortal das loterias e surpresas que o gênio da lâmpada mágica encarna. E que tem vontade própria, independente do Aladim que o liberta por acaso.

Que o gênio da lâmpada esteja do nosso lado nesta nova etapa de uma Copa que, para nós, simboliza muito mais que um jogo de pé na bola.

 

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