O Globo
O esporte consegue reunir objetividade,
desejo e vontade, numa combinação cujo ponto culminante é o inesperado
Como anotei aqui, a Copa do Mundo de
futebol ocorre nas Arábias — a terra das Mil e Uma Noites, de camelos e
desertos, burcas, califas, tapetes voadores e haréns idealizados nos filmes em
tecnicolor de Hollywood...
Tudo isso que, num mundo globalizado e
transparente, tem subsistido pelo puritanismo islâmico, pela opressão de gênero
e por uma riqueza estonteante custeada pelo petróleo, hoje posto na lista que
tem seu negrume.
Mas, diante dos inesperados desta Copa das Arábias, é impossível não invocar o gênio da lâmpada de Aladim, porque o futebol é o gênio do encantamento que nos confronta com os impensados e as deliciosas surpresas quando um país negro e pobre vence ou empata com as potências do planeta, revelando — como garante a fábula do gênio da lâmpada maravilhosa — que ninguém tem tudo todo o tempo nas mesmas proporções. E que a riqueza mágica dessa arte penosamente esculpida pelos pés que nos amarram ao chão liberta quando a lâmpada mágica é devidamente esfregada por algum Aladim. O gênio que glorifica o amor pela camisa e a tenacidade tornada arte, negando aos donos do mercado e do mundo uma eventual vitória.
A excitação do futebol tem mais a ver com
compensação do que com emoções, subprodutos das regras que, numa Copa do Mundo,
transformam times em totens de Estados nacionais e põem em campo pedaços de
cruéis histórias coloniais e imperiais.
Futebol entre árabes era inimaginável para
a minha geração. Gente que descobriu o futebol nos anos 1940 e — depois de
roubá-lo dos brincalhões ingleses — tornou-se mestre na arte do pé na bola.
Curioso que ninguém tenha observado essa contrariedade da teoria clássica da
colonização, já que o futebol a inverte, provando como o colonizado pode ser
melhor que o colonizador.
A Copa de 1950 foi a primeira depois da
Segunda Guerra Mundial. Copa que hospedamos e para a qual construímos o maior
estádio do mundo: o Maracanã, uma arena futebolística rival do Coliseu, com
capacidade de abrigar 200 mil espectadores! No caso, alucinados “torcedores”
pelo selecionado brasileiro, que, naquela edição, não jogava bola, mas a
“comia”, carregando a terrível e maravilhosa responsabilidade de nos livrar da
inferioridade de “povo mestiço, doente e inferior”, essa praga que jogamos a
todo momento sobre nós mesmos.
Mas, como o futebol (e os esportes em
geral) faz parte da vida — em certos momentos, com ela compete ou até mesmo
consegue superá-la —, foi justo nessa Copa de 1950 que perdemos no último jogo
para o Uruguai. Deixamos de ficar com a Taça Jules Rimet, que depois veio a ser
lenitivamente nossa e, em seguida, foi devidamente afanada, tornando-se um
troféu — como tantos outros — apaixonadamente conquistado e paradoxalmente
perdido.
Coisas brasileiras que remetem à Arábia e
ao Aladim, cujo gênio da lâmpada maravilhosa contraria expectativas, esse
espírito dos milagres — isso que é o traço essencial das disputas e dos jogos,
de concursos, eleições e competições em geral. Essa dimensão da vida social em
que a excelência e o mérito substituem o nome de família e os dotes
aristocráticos. No futebol, a prova do pudim não é a pompa vazia dos discursos
malandros, mas é saber jogar e — eis o espanto — ficar rico suando a camisa e
produzindo, fazendo gols e vencendo.
Neste nosso mundo em mudança e globalizado,
é o esporte que consegue reunir objetividade, desejo e vontade numa combinação
cujo ponto culminante é o inesperado. O súbito sublime ou mortal das loterias e
surpresas que o gênio da lâmpada mágica encarna. E que tem vontade própria,
independente do Aladim que o liberta por acaso.
Que o gênio da lâmpada esteja do nosso lado
nesta nova etapa de uma Copa que, para nós, simboliza muito mais que um jogo de
pé na bola.
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