Valor Econômico
Mais de 25% das mortes por chuvas nos
últimos dez anos no Brasil ocorreram no primeiro semestre de 2022
Em 2008, a prefeitura de Londres preparava a capital para o inevitável - os impactos climáticos. Em 2080 imaginava-se que o volume de água do Tâmisa poderia ter picos de água 40% maiores. Os planejadores mapearam estações de metrô, hospitais, aeroportos, mercados e escolas e estudaram o que aconteceria em cenários de enxurradas. A cidade tem uma barreira contra as enchentes do rio, mas que não é a prova de chuvas torrenciais repentinas, e o sistema de drenagem vitoriano também não dá conta se o volume de água for violento. Alguns estudos recentes indicam que 17% da cidade enfrenta risco médio ou alto de inundação.
Não precisou chegar 2080. Em julho de 2021
a cidade sucumbiu a dois dias de eventos climáticos extremos. Dois hospitais
inundaram e recusaram pacientes que não estivessem em estado grave. Moradores
foram resgatados em botes. Bombeiros receberam mais de mil chamadas em poucas
horas e evacuaram cem casas de um bairro mais atingido. Carros ficaram debaixo
d’água. Uma das cidades mais ricas do mundo viveu o caos comum a metrópoles de
terceiro mundo e ficou evidente que, mesmo ali, não há preparo suficiente para
os impactos das mudanças climáticas. Não houve registros de mortes.
No Brasil, morre gente todos os anos por
deslizamentos de terra e enxurradas, o desastre natural que mais mata no país.
Mais de 25% das mortes por chuvas nos últimos dez anos ocorreram no primeiro
semestre de 2022, mostram artigos de pesquisadores do Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, o Cemaden. Foram 494 pessoas a
perderem a vida em Petrópolis e na Grande Recife. Na tarde de 15 de fevereiro
de 2022, Petrópolis registrou as chuvas mais fortes desde 1932. Morreram 234
pessoas. Em 25 de maio de 2022, 130 pessoas perderam a vida com a tempestade
que caiu sobre a Grande Recife. “É preciso monitorar as condições que levam a
desastres e emitir alertas para salvar vidas”, diz o climatologista José
Marengo, que trabalha há 20 anos com adaptação climática e esteve a frente de
capítulos de relatórios do Painel Intergovernamental de Mudança Climática, o
IPCC, nessa temática.
O Brasil avançou muito em termos
tecnológicos. Não só na criação do Cemaden, em 2011, mas em avisos de chuvas
intensas por celular, mensagens de texto, redes sociais. “Tudo isso tem que ser
usado, mas é preciso emitir alertas de desastres para proteger a população, diz
ele. Podem ser sirenes ou carros de som ou o que for mais eficaz para tirar as
pessoas de casa. Isso não basta, contudo.
“Toda tecnologia que temos não serve se a
pessoa não acredita na ciência e em sistemas de prevenção de chuva. Se é
retirada de casa em uma ameaça de desastre, mas volta escondida para pegar
roupas e morre. Ou se não quer sair de casa porque teme que a geladeira, que
poupou anos para comprar, possa ser roubada”, continua Marengo, um dos
fundadores do Cemaden e coordenador-geral de pesquisa e desenvolvimento. “Se
esses eventos serão mais frequentes e fortes no futuro, a população tem que ser
treinada para respeitar o alerta, ser preparada para isso, sair de casa e ir a
um lugar seguro, e não voltar”, continua. “Tem que se criar a percepção
cultural no Brasil de que o alerta de desastre existe para ser respeitado. Se o
clima está mudando, não há outra forma. Não temos como combater isso. Temos que
nos adaptar.”
Nos Estados Unidos, quando há alerta de
furacão, as pessoas sabem o que têm que fazer. Protegem portas e janelas,
tentam evitar que seu patrimônio seja destruído, mas saem de casa. Vão para
abrigos seguros. No caso de tornados, que são muito mais rápidos, costumam
buscar refúgio em espaços no subsolo até que o fenômeno vá embora. São
treinados para agir assim. As sirenes disparam no Chile e no Japão quando tem
um terremoto e há risco de tsunami. Em Lima, no Peru, todos têm uma pequena
mochila na sala com cópia de documentos, uma água, alguma comida enlatada.
“Quando há terremoto, saem todos com sua mochila, que tem o básico”, conta
Marengo, que é peruano, vive há muitos anos no Brasil, mas vê as mochilas
sempre que visita os familiares. No Brasil, acredita, “há que haver uma melhor
governança do sistema. Porque a cada ano vêm extremos de chuva e morre gente”.
Ele completa: “É coisa de horas. É melhor sair de casa e ter um alerta falso,
do que ficar e viver um alerta verdadeiro”.
Mais de 8 milhões de brasileiros vivem em
áreas de risco de deslizamentos e inundações. É uma face da desigualdade, como
bem lembrou Edu Lyra, o fundador e CEO da Gerando Falcões, analisando a
tragédia do litoral norte de São Paulo. “Temos que tornar as cidades, sobretudo
as favelas, resilientes às mudanças climáticas. Caso contrário o Brasil irá
enterrar, ano a ano, milhares e milhares de pessoas pobres que vivem em locais
de risco e beira de encostas”, disse ao Valor.
Ele propõe que a reconstrução se inicie por
“um grande pacto” que junte poder público e sociedade civil, “com uma agenda de
20 anos a frente para que a gente não carregue o peso moral de não ter feito a
coisa certa, no tempo certo”.
Encontrar um lugar seguro para a moradia
desses 8 milhões não é nada fácil, custará muito e levará tempo. Por isso os
climatologistas dizem que é preciso criar um sistema imediato de alerta de
desastres que salve vidas. É preciso incorporar o conceito de adaptação no
planejamento da infraestrutura, no desenho das cidades, na produção de
alimentos, na saúde. É isso que o governo Lula pretende fazer, segundo adiantou
a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, ao divulgar que é
preciso atualizar e implementar o plano nacional de adaptação que o Brasil tem
desde 2016 e foi esquecido em alguma gaveta no governo Bolsonaro.
Estratégias de adaptação não
necessariamente precisam ser apenas obras caras e desafiadoras, como construir
barreiras cada vez mais altas e fortes para conter o avanço do mar. Tem que se
planejar pela lente do clima. O avanço do mar sobre a costa irá empurrar
esgotos hoje lançados no oceano de volta para as cidades. Se as inundações são
inevitáveis, as centrais de energia dos hospitais não podem ficar no subsolo -
lição aprendida nos Estados Unidos com a passagem do devastador furacão Katrina
em 2005. No Nordeste, adaptação à seca tem a construção de cisternas como
política que deu resultado. A Embrapa desenvolve variedades resistentes a
temperaturas altas e condições de estresse hídrico. “O Brasil é muito solidário
no pós-desastre. Mas é preciso pensar na prevenção. Estamos atrasados nisso”,
diz Marengo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário