terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Carlos Andreazza - Adeus, capitão

O Globo

Li que o governador do Rio quer que a Sapucaí volte à administração do estado. Não tentei compreender os argumentos que justificariam a mudança, na hipótese de que não seja jogada de Cláudio Castro com vista à disputa a prefeito da capital em 2024. Ele sabe que a gestão do teatro é fundamental à constituição da persona carioca de Eduardo Paes — que, justiça se faça, gosta genuinamente da festa. (Em que pese a paixão, que não raro nos turva o juízo, Paes não precisava encenar apreensão — não precisava daquele “ufa” em rede social — sobre a possibilidade de sua escola cair. A Portela é inimputável.)

É tudo uma piada, seja como for. A Sapucaí é dos bicheiros. Aos governos cabendo o ônus de pagar as contas. Quem manda é o capitão — e não aquele cujo degredo a Imperatriz celebrou. Você já leu o livro-reportagem “Porões da contravenção”, de Chico Otavio e do saudoso Aloy Jupiara? (Castor já não está, a fonte dos Andrades secou recentemente, mas a Mocidade — ainda — não cai. A coisa opera por critérios outros.)

São os personagens da obra, e seus herdeiros, que mandam. Foi para atender às demandas dos chefões no passado que se concertaram os mercenários do escritório miliciano do crime; para atender às demandas daqueles cujas escolas apadrinhadas ora cantam contra a opressão.

É complexo. Mas também simples: prefeito e governador apitam nada. São apenas as novas versões de um Estado que progressivamente entregou o carnaval das escolas de samba. São apenas as novas versões representantes de um Estado tomado pelo crime organizado, o carnaval das escolas de samba sendo apenas a ponta. Claro que não poderia ser sério.

Ainda assim, irrita.

Ouvi, de um boneco de ventríloquo dos bicheiros, que a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) está muito incomodada com a tal outra liga, Liga RJ, que controla os desfiles do grupo de acesso. Falou-se até em intervenção da Liesa, para finalmente dar estrutura — organização padrão Grupo Especial — ao que chamam de Série Ouro.

Só mesmo no Brasil, particularmente no Rio, para um ajuntamento como a Liesa falar desde a condição de agente moralizador. É esculacho. Escutei — uma condenação mesmo, por gente acostumada a ter tribunais próprios — que o Império Serrano (agremiação pela qual torço) foi rebaixado, neste 2023, em decorrência da falta de estrutura da segunda divisão de que ascendeu; e que a liga que cuida do troço seria desprovida de credibilidade, sabendo-se, com antecedência, a escola que subirá.

Nós todos, que sabíamos qual escola cairia — que sabemos qual cairá, em 2024 — na disputa dissimulada pela Liesa, temos de ouvir isso. Normalmente nos calamos. Vou falar.

A Liesa está certa sobre a Liga RJ. A ver se está correta sobre si. Os fatos resolvem a parada. A turma se tem na conta de prover estrutura de primeira ao carnaval, capaz mesmo de sanear outros grupos, como se não estivesse sob seus cuidados a Cidade do Samba que pegou fogo.

Foi sob a estrutura exemplar da Liesa que carro alegórico desgovernado esmagou uma jornalista dentro da passarela, em 2017. Ela morreria tempos depois. Carros potencialmente assassinos desfilam todos os anos.

A Liga RJ, mais pobrinha, copia o modelo da Liesa, com a diferença de reunir fauna de atividades profissionais mais amplas. A Liesa é elitista. Mas a lógica é a mesma; não à toa, na dispersão de um desfile da Liga RJ em 2022, morreu uma menina atropelada por alegoria.

Qual a credibilidade da Liesa? Como pode se atribuir credibilidade, com o histórico de viradas de mesa que tem? Não faz muito, anulou-se o rebaixamento para que a Grande Rio não caísse.

A responsabilidade é do poder público. É responsabilidade do poder público que algo como a Liesa vá festejar 40 anos, como se grande prestadora de serviços à sociedade, quando há muito, houvesse coragem, deveríamos ter avançado para o fim de sua capitania sobre o carnaval.

Não dá, em 2023, nunca deu, para o carnaval ser erguido sobre o trânsito de dinheiros vivos. (Ou seremos seletivos em matéria de capitão?) Há dinheiro público também. Dinheiro público igualmente para todas. Os dinheiros vivos, então, fazendo a diferença para que umas se imponham às outras. A isso se presta o Estado. Essa é a gestão privada da obscura Liesa, legitimada por governos há décadas.

E há a questão do julgamento do concurso, administrado pela cúpula de meia dúzia de escolas que compõe parte interessada. Pergunto: o mesmo desfile da Imperatriz, belíssimo, se apresentado pela Tuiuti, seria campeão? Teria voltado entre as seis melhores?

É farsa ofensiva que alguém fale em credibilidade de disputa em que, de 12 agremiações, pelo menos dez não possam cair. Melhor seria fechar o grupo, sem rebaixamentos, e que o resto vá brincar, pulando de bala do Fubá, na Nova Intendente.

 

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