Rio mostrou como fazer um carnaval com competência
O Globo
Disciplina, organização e limpeza nos
desfiles de escolas e nos blocos tornaram a folia um sucesso
Depois de dois anos de recesso forçado pela
pandemia, e mesmo com as expectativas infladas pela retomada da folia, pode-se
dizer que o Rio saiu do carnaval deste ano com nota alta em todos os quesitos.
Até o último domingo, o país foi tomado por multidões eufóricas atrás de blocos
e trios elétricos, fazendo a alegria não só de foliões, mas também de
empresários, comerciantes, ambulantes, empreendedores, prefeitos, governadores,
de todos aqueles que dependem da festa de alguma forma. Ao contrário do que
supunham as expectativas pessimistas criadas em cima de um histórico de
derrapadas, desta vez a organização não decepcionou.
Os temidos problemas de infraestrutura — não só para os que desfilam, mas especialmente para os que sofrem o impacto direto dos cortejos — felizmente foram mínimos. No Rio, foi notável o trabalho do “bloco” da Companhia de Limpeza Urbana (Comlurb). A varrição entrava em cena tão logo os foliões saíam, impedindo que o lixo se acumulasse pelas ruas — um desafio e tanto se lembrarmos que, ao longo do mês, 355 blocos de rua tomaram a cidade, dois deles superando a marca do milhão de foliões (Cordão da Bola Preta e Fervo da Lud, ambos no Centro). Segundo a Riotur, 5 milhões saíram nos blocos.
Levando em conta o gigantismo dos
megablocos, o número menor de desfiles em relação a 2020 também contribuiu para
melhorar a organização e permitir que a infraestrutura montada desse conta da
demanda. O acompanhamento da polícia e o respeito às restrições de horário e
local possibilitaram que a população se planejasse, reduzindo o transtorno.
Os desfiles das escolas de samba do Rio e
de São Paulo foram de alto nível, com temas criativos e atuais, confirmando a
excelência das agremiações. A organização também passou no teste. No Sambódromo
carioca, onde reinou a Imperatriz Leopoldinense com um inventivo enredo sobre
Lampião, não causaria surpresa se o campeonato ficasse com Viradouro, Vila
Isabel, Beija-Flor ou Grande Rio, todas fortes concorrentes. Na festa
paulistana, saiu vitoriosa a Mocidade Alegre, que conquistou seu 11º título com
um cativante enredo sobre o primeiro samurai negro. Saíram ganhando o samba e a
cultura brasileira.
Claro que ainda há pontos a melhorar. Um
deles é a segurança. Por todo o país houve relatos de furtos de celulares e
golpes contra os foliões. As autoridades devem aproveitar as boas experiências,
como uso de drones, torres de observação e detectores de metais durante os
cortejos, e repeti-las. São úteis não só no carnaval, mas em qualquer evento
com multidões.
Não se pode perder de vista que o carnaval
é uma festa que faz girar a economia de cidades como Rio, Salvador, Recife,
Olinda, São Paulo e Belo Horizonte. Os desfiles de escolas de samba ou de
blocos são apenas o último ato de um roteiro que começa um ano antes e emprega
milhares de brasileiros, seja na confecção de fantasias e alegorias, seja na
preparação da infraestrutura para atender foliões e turistas.
O êxito do carnaval de 2023 foi um bálsamo.
Demonstra que organização e disciplina não são incompatíveis com ruas tomadas
pela alegria e pelo samba. Ao contrário, foi o profissionalismo que permitiu ao
Rio, entre outras cidades, cumprir o que previu editorial do GLOBO no início do
mês — e fazer o maior carnaval dos últimos tempos.
Projeto de trem-bala São Paulo-Rio precisa
ser examinado sem paixões
O Globo
Decisão da ANTT levanta suspeitas, mas
seria sensato elaborar um plano sério de incentivo à ferrovia no Brasil
A Agência Nacional de Transportes
Terrestres (ANTT) aceitou na semana passada o pedido de uma empresa privada, a
TAV Brasil, para retomar o projeto de uma linha ferroviária de alta velocidade
entre Rio e São Paulo. Dado o histórico da iniciativa desde que a ideia foi
lançada, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), é compreensível
a controvérsia. O assunto, no entanto, merece análise livre de paixões.
Como meio de transporte, trens são menos
nocivos ao ambiente que aviões. Emitem um quinto do carbono liberado por
aeronaves, levando em conta o número de passageiros transportados por
quilômetro. Também são menos poluentes que ônibus (menos da metade). Com o
mundo correndo para combater as mudanças climáticas, trens de alta velocidade
podem ser a melhor alternativa ambiental.
A primeira linha de trem-bala foi
inaugurada no Japão em 1964, ligando Tóquio a Osaka. Na década de 1980, a
França foi, com os famosos TGVs, o primeiro país da Europa a investir nas
ferrovias de alta velocidade, depois disseminadas pelo continente. Hoje o
primeiro no ranking global é a China, com 40.474 quilômetros de linhas em
operação. A Espanha, em segundo, tem 3.661 quilômetros, à frente do Japão.
Trens de alta velocidade são comuns em
países ricos, mas não exclusivamente. Além da China, a Turquia, outro país de
renda média como o Brasil, tem mais de mil quilômetros de linhas do tipo,
segundo a International Union of Railways. O pobre Marrocos, com renda per
capita bem inferior à brasileira, conta com 186 quilômetros.
Não é absurdo considerar trens de alta
velocidade como opção de transporte num país com as características do Brasil.
O que ninguém pode esquecer é a ficha corrida do projeto do trem-bala
brasileiro. Quando a ideia nasceu, em 2004, em vez de fazer um estudo realista
do ponto de vista do mercado, a missão foi atribuída ao Estado. À medida que o
tempo passava, a estimativa dos custos e dos subsídios necessários só
aumentava, sem que a demanda justificasse o investimento. Dez anos depois, a
então presidente Dilma Rousseff declarou que o assunto deixara de ser
prioridade, mas a estatal criada continuava a consumir milhões todo ano.
A discussão atual tem a vantagem de se dar
em torno de uma empresa privada, mas há inúmeras questões sem resposta, que
justificam as suspeitas. A TAV Brasil tem capital de meros R$ 100 mil e não
explicou como financiará os cerca de R$ 50 bilhões necessários à obra. Não há
notícia de parceria com companhias estrangeiras nem ideia de um projeto
executivo. Tudo o que se sabe é a intenção de construir uma linha de 380
quilômetros. Seria absurdo se ela não conectasse as regiões centrais das duas
metrópoles. De nada adiantará se o transporte da estação ao centro durar mais
que a viagem.
Falta muito para o projeto ter o mínimo de seriedade. Se o plano da empresa é buscar recursos públicos, é possível que o governo Lula se sinta tentado a cair na arapuca. Seria lamentável. O mais sensato seria elaborar um plano sério de incentivo à ferrovia no Brasil.
O perigo do arbítrio
Folha de S. Paulo
Cabe à Justiça decidir o que é ilegal nas
redes; mais regulação rumará à censura
Há sólido acúmulo de experiência histórica
a desrecomendar que regimes democráticos restrinjam a expressão dos cidadãos. O
alerta é útil quando o Brasil discute regular conteúdos dos meios digitais.
Sob a virtuosa intenção de prevenir a
repetição do vandalismo golpista de 8 de janeiro, autoridades
propugnam pelo endurecimento das regras da internet. A ideia, a
ser esmiuçada em proposta legislativa, é induzir as empresas proprietárias a
removerem conteúdo ilegal a despeito de ordem judicial.
Nesse ponto começam as dificuldades, que
transformam a tarefa de tentar banir as incitações subversivas dentro dos
marcos democráticos em algo próximo de uma aporia, um problema sem solução.
Nesses regimes, cabe só à Justiça decidir o
que é ilegal, percorridos o devido processo e o amplo contraditório. Cidadãos e
organizações privadas, em matéria discursiva, podem no máximo ter suas
interpretações particulares, sujeitas a variação e controvérsia legítima, sobre
o que viola as normas.
A fim de contornar essa barreira, os
legisladores poderão cogitar a criação de comitês administrativos para arbitrar
o conteúdo veiculado pelas plataformas. Abririam, nessa hipótese, uma porteira
para intromissões abusivas e censoras no direito à expressão.
Por isso a melhor fórmula que as sociedades
abertas encontraram para o dilema de discernir entre liberdade de exprimir-se,
de um lado, e o discurso de incitação ao crime, do outro, é punir aqueles casos
em que o autor tem condições de dar causa ao dano que promove.
Não se concebe, nesse modelo, facultar a um
órgão do Executivo decidir o que deveria sair do ar. É preciso que os
argumentos das partes tramitem no processo judicial regular. Previne-se a
repetição desses crimes pela aplicação da pena aos delinquentes, não pela
censura.
Muito mais efetivo do que qualquer
tentativa de regular o que se diz nas redes será as autoridades investigativas
e de persecução penal chegarem aos mandantes da depredação de 8 de janeiro. Já
passa da hora de dar fim a prisões preventivas que carecem de justificativa e
processar os envolvidos.
Seria de todo modo inútil proibir a
circulação de ideias estúpidas, porque elas encontrariam escaninhos
alternativos para se disseminar. É melhor
deixar que a luz do Sol e o debate público as estiolem.
Perde-se, ademais, o foco do que faz
sentido regulamentar. No caso das redes digitais, fica em segundo plano a
grande distorção assentada no poder desproporcional de mercado das chamadas big
techs.
A legitimidade que o Estado não tem para
intrometer-se na expressão dos cidadãos ele a tem assegurada para defender os
pilares da concorrência na economia.
Aposta de baixo risco
Folha de S. Paulo
Lula tem pouco a perder ao sugerir proposta
de paz, mas deve conter megalomania
A política externa dos dois primeiros
mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sempre dividiu opiniões. Para
apoiadores, o petista presidiu o período de maior prestígio internacional do
Brasil; já críticos apontavam megalomania em iniciativas inatingíveis para a
musculatura política do país.
Com a devida dosimetria, ambas as
assertivas são corretas. O boom das commodities dos anos 2000 favoreceu a
posição brasileira e ajudou a
inserir o país no conceito então emergente de Sul Global.
Grosso modo, trata-se de parcerias fora da
esfera ocidental, liderada pelos Estados Unidos. Daí surgiram iniciativas como
o Brics, com Rússia, Índia, China e África do Sul, que faziam sentido à época.
Grassava, contudo, um certo
antiamericanismo pueril, o apoio a ditaduras esquerdistas amigas e propostas
nas quais o Brasil acabou isolado —como o malfadado acordo nuclear com o Irã.
Desde que assumiu o poder pela terceira
vez, Lula busca
recolocar o Brasil no radar. Condições objetivas existem: o exílio
voluntário do país sob o obscurantismo de Jair Bolsonaro (PL) traz uma vantagem
agora, e o peso relativo brasileiro nas questões climáticas municia o petista
de saída.
Fiel a seu estilo, ele palpitou sobre o
maior problema geopolítico atual, a guerra na Ucrânia, mas de forma a não se
comprometer.
Em vez de um elaborado plano, inexequível
porque nem a agressora Rússia nem a agredida Ucrânia estão em um ponto de
desgaste que as obrigue a negociação, Lula simplesmente disse que todos deveria
sentar-se a uma mesa comandada por países neutros.
Como diz o Itamaraty, é uma proposta
inicial, não alguma panaceia tropical a ser ofertada aos beligerantes. Até por
isso, foi elogiada
tanto em Moscou quanto em Kiev.
Além do estágio do conflito iniciado há um
ano, a questão mais imediata é a China, país que, como a Índia e o Brasil,
seria partícipe natural do tal "clube da paz".
Antagonista de Washington, Pequim é vista
como parcial devido à aliança com Moscou —e até mesmo o vago plano de paz
apresentado pelos chineses foi prontamente rejeitado no Ocidente.
Isso dito, ao contrário do que ocorreu no fiasco de 2010 com o Irã, o custo político de a ideia brasileira não prosperar é baixíssimo. E qualquer avanço que possa levar o nome do mandatário brasileiro, ainda que de forma indireta, terá sido um sucesso inaudito.
O Brasil não está sob ditadura judicial
O Estado de S. Paulo.
Não há prisões políticas nem ditadura do
STF, como alegam bolsonaristas. Há lei no País, seja para corrigir eventuais
erros processuais, seja para punir crimes praticados no 8 de Janeiro
O bolsonarismo despreza os direitos
humanos, é contrário à figura do juiz de garantias, propõe eliminar a audiência
de custódia e defende a impunidade para crimes praticados por policiais no
exercício da profissão. Ao longo dos últimos anos, tem sido o grande
catalisador das principais ideias equivocadas sobre o sistema de Justiça. No
entanto, quando seus aliados estão envolvidos em problemas com a Justiça, a
equação se inverte. O devido processo legal e a imparcialidade do juiz
tornam-se prioridades. Existentes desde os inquéritos das manifestações
antidemocráticas, as críticas bolsonaristas contra o Supremo Tribunal Federal
(STF) subiram de patamar depois do 8 de Janeiro. Teria sido instaurada, nada
menos, que uma “ditadura judicial” no País.
“No Brasil, temos presos políticos. Mais do
que na Venezuela, na Bolívia e no tempo do regime militar”, discursou, sem
corar, a deputada Bia Kicis (PL-DF). O deputado Carlos Jordy (PL-RJ) chamou as
prisões das pessoas envolvidas na invasão e depredação das sedes dos Três
Poderes de “lulags”, neologismo com o nome do presidente Lula da Silva e os
“gulags”, campos de trabalho forçado da União Soviética. Já o deputado General
Girão (PL-RN) qualificou a situação de “Guantánamo brasileira”, em referência à
prisão mantida pelos Estados Unidos em Cuba.
O direito de discordar do Judiciário, seja
em que esfera for, integra as liberdades fundamentais, além de contribuir para
seu melhor funcionamento. Não existe exercício imaculado do poder, e é muito
positivo que Executivo, Legislativo e Judiciário se sintam cobrados e
admoestados – ainda mais em situações novas, que exigem respostas inéditas do
poder estatal e o risco de errar é maior. O caso do 8 de Janeiro é
absolutamente excepcional, ao envolver milhares de pessoas, tipos penais novos
e agressões nunca antes vistas às instituições democráticas.
Se o Estado já tem sérias dificuldades de
respeitar os direitos fundamentais de pessoas investigadas em casos
corriqueiros, seria ingenuidade achar que, nessa situação particular, o poder
estatal se comportaria de modo diferente, oferecendo uma atuação perfeita, sem
nenhum excesso ou exagero. Seja como for, é preciso exigir do poder público
plena aderência à lei, sem transigir com eventuais medidas ilegais ou mal
fundamentadas. Por exemplo, este jornal já criticou em editorial o modo como
foram realizadas as audiências de custódia relativas aos atos do 8 de Janeiro
(ver A defesa da democracia dentro da lei, 19/2/2023). A decisão sobre a
necessidade de manter a prisão preventiva não foi tomada pelo magistrado que
fez a audiência e teve contato com o preso. Prisão sempre exige avaliar as
circunstâncias concretas de cada pessoa.
É preciso discernimento. Diante do grande
número de pessoas envolvidas, é provável que haja prisões preventivas em
desacordo com os requisitos legais. Elas devem ser revogadas o quanto antes,
seja pelo ministro Alexandre de Moraes, seja pelo colegiado da Corte – que não
deve ter receio de suspender alguma decisão do relator, quando assim for
necessário. Mas eventuais equívocos e exageros – que infelizmente são coisas
habituais na Justiça brasileira, como se observa, por exemplo, pelos muitos
habeas corpus que são concedidos pelo STF – não transformam as pessoas
envolvidas nos atos do 8 de Janeiro em presos políticos.
Essas pessoas estão sendo investigadas por
ações contrárias ao Código Penal, e não em razão de expressarem uma orientação
política específica. A ilustrar que não se trata de perseguição política do
Supremo, a própria Procuradoria-Geral da República (PGR) já denunciou por
crimes concretos centenas delas, que terão oportunidade, dentro do processo
penal, de exercer seu direito de defesa.
O sistema de Justiça penal é imperfeito – e
o bolsonarismo lutou e luta arduamente para piorá-lo. Mas isso não autoriza
dizer que inexiste, no País, respeito às liberdades política e de expressão. Há
caminhos institucionais para correção de erros judiciais. O que não há é autorização
para cometer crimes impunemente. A lei vale para todos.
O agro é tech
O Estado de S. Paulo.
Nas últimas décadas, País passou de
beneficiário de tecnologias a pioneiro, com ganhos de produtividade e
sustentabilidade. Mas há desafios para que essa revolução seja inclusiva
Na cultura popular, o campo é associado ao
passado; as cidades, ao futuro. Na área tecnológica, em especial, a indústria é
vista como o espaço da inovação e a agropecuária, como o da tradição, quando
não do atraso. Mas o agronegócio brasileiro desmente radicalmente esses
estereótipos.
Nas últimas décadas, a agropecuária tem
sido uma ilha de excelência em termos de crescimento da produtividade, seja
comparada a outros setores da economia nacional, como indústria e serviços,
seja comparada à agropecuária de outros países.
Em duas ou três gerações, o Brasil passou
de importador de alimentos a um dos maiores exportadores do mundo, em vias de
se tornar o maior. Entre 2011 e 2020, por exemplo, enquanto o setor de serviços
cresceu apenas 1,5%, a indústria encolheu 12,8% e o PIB, como um todo, 1,2%, a
agropecuária cresceu 25,4%. Entre 2006 e 2017, enquanto a média de crescimento
anual da agropecuária dos maiores competidores do Brasil, os EUA e a China, foi
de, respectivamente, 1,9% e 3,3%, no Brasil foi de 4,3%.
Essa história de sucesso, que tem muito a
ensinar a outros setores, foi calcada em empreendedorismo, reformas econômicas
(como a liberalização do mercado), políticas públicas (como as de crédito e
fomento), parcerias público-privadas e, acima de tudo, inovação e tecnologia.
Ao longo da chamada “Revolução Verde”, que
desde os anos 60 introduziu técnicas como a alteração genética de sementes,
fertilizantes químicos, irrigação controlada e novos métodos de mecanização, o
Brasil começou como um dos grandes beneficiários e se transformou gradualmente
num dos grandes pioneiros. O Cerrado, em especial, deixou de ser uma região
pouco apropriada para a agricultura em razão da acidez do solo para se
transformar num dos maiores polos globais de produção de soja. Como mostrou
reportagem do Estadão, tornou-se corriqueira, por exemplo, a colheita de três
safras de grãos por ano.
Ao assumir um papel de vanguarda nessa
revolução, o Brasil contribuiu para reduzir a pobreza, a insegurança alimentar,
a mortalidade infantil, as emissões de gases de efeito estufa e o uso de terras
para a agricultura. Mas essa explosão de eficiência trouxe também seu ônus: o
esgotamento e a erosão do solo, alterações nos ecossistemas, desmate e
priorização da estrutura latifundiária em detrimento da produção familiar,
impulsionando o êxodo rural.
Assim, aos triunfos da produtividade se
somaram os desafios da sustentabilidade. Também nesse âmbito o Brasil tem sido
pioneiro, aprimorando técnicas como a integração lavoura pecuária e promovendo
a agricultura de precisão através de tecnologias digitais como a Internet das
Coisas, a robótica, sensores meteorológicos, Big Data e computação em nuvem, ou
a agricultura vertical.
Ainda há, contudo, entraves a serem
eliminados, notadamente a infraestrutura precária de internet, ainda não
acessível a todos os produtores, em especial os pequenos. Se essas deficiências
não forem vencidas, há o risco de aumentar o abismo entre pequenos e grandes
produtores, perdendo-se uma janela de oportunidades para reduzir a desigualdade
nacional.
No campo das políticas públicas, além de
melhorias gerais no ambiente de negócios e na infraestrutura, é preciso
fortalecer incentivos, focando em crédito para projetos que incorporem
inovações tecnológicas, técnicas gerenciais e práticas ambientais. Incentivos
diretos à inovação envolvem a promoção da pesquisa e cooperação transversal
entre diversos setores, especialmente robustecendo a capacidade de colaboração
da Embrapa. Para que sejam socialmente sustentáveis, essas medidas devem ser
combinadas a políticas de capacitação e assistência técnica às pequenas
propriedades rurais familiares.
Ao contrário da trajetória de degradação da
indústria que precisa ser revertida, o agro brasileiro já vive um ciclo
virtuoso. Se for potencializado, a agropecuária pode ser ainda mais
sustentável, criar mais empregos e aumentar rendas nas zonas rurais, exportando
para o mundo um modelo de produtividade e sustentabilidade.
Fins legítimos; meios, nem tanto
O Estado de S. Paulo.
Indefinição do caso Marielle é vergonhosa, mas não autoriza ministro da Justiça a atuar além dos limites da lei
Passados quase cinco anos do assassinato de
Marielle Franco e de Anderson Gomes, é vergonhoso, revoltante e entristecedor
que o Brasil ainda desconheça quem foram os seus mandantes. O quinquênio da
pergunta “quem matou Marielle?” é um péssimo agouro para as legítimas
expectativas em ver o caso finalmente esclarecido. Um crime levado a cabo tão
covardemente e, ao que tudo indica, pelos motivos mais desprezíveis, merece ter
um destino diametralmente oposto ao da fria inconclusão.
Seguramente imbuído de nobres intenções e
da esperança de trazer energia renovada à já prolongada investigação conduzida
pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o
ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, resolveu agir.
Requisitou a abertura de inquérito policial à Polícia Federal, determinando que
sejam investigadas todas as circunstâncias do crime em questão.
Não cabe aqui discutir o quão primordial é
o esclarecimento do caso Marielle – o fim –, pois isso está no plano da mais
absoluta evidência. Cabe, contudo, um alerta quanto às formas legais
disponíveis a tanto – os meios. Há uma diferença fundamental entre o que é
legítimo e o que é legal. São conjuntos nem sempre coincidentes. É certo que ao
Estado cabe única e exclusivamente se mover dentro do que é legal. É a lei que
o autoriza a agir. E ponto. Nenhuma conduta estatal poderá receber
salvo-conduto simplesmente por, sob algum qualquer ponto de vista, ser
qualificável como legítima, justa, valorosa. Para o Estado, não há legitimidade
fora da arena da legalidade.
A requisição de abertura de inquérito
policial dirigida pelo ministro Flávio Dino à Polícia Federal no Rio de
Janeiro, de um lado, esbanja legitimidade, mas, de outro, carece de legalidade.
Não se nega que, dentre as suas atribuições, está a de requisitar a abertura de
investigações pela Polícia Federal, desde que se trate de crime federal, o que
não é o caso.
Se o esclarecimento do assassinato de
Marielle Franco e Anderson Gomes é um inafastável dever do Estado, não se pode,
no entanto, atropelar regras legais de competência. Já se pretendeu a federalização
do caso, para que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal pudessem
conduzir as investigações, o que foi negado por unanimidade pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ) em 2020. Não se pode agora, por via transversa,
fazê-lo sem amparo legal.
O exercício de uma competência por um
agente estatal deve estar sempre sujeito à lei. É a lei que, concedendo a
competência, também estabelece sua medida e, assim, seus precisos limites, que
existem justamente para conter o arbítrio e a tirania.
Não cabe transigir com a usurpação de competência mesmo diante da notória grandeza dos fins com vistas aos quais se exerce o poder. Eventual transigência com quem governa hoje abre espaço para o abuso de quem governará amanhã. É a lei – e só ela – que dá estabilidade aos limites de um poder que, não é demais lembrar, poderá sempre vir a mudar de mão, de ideologia e de intenções.
Turbulências e pretensões modestas na
dívida mobiliária
Valor Econômico
Tesouro espera um horizonte mais favorável
após a divulgação do novo regime fiscal e da reforma tributária
Administrar a dívida mobiliária federal tem
sido desafiador para o Tesouro Nacional neste início de ano, como deve mostrar
o relatório de janeiro a ser divulgado hoje. De um lado, as incertezas fiscais
criadas pelas promessas de gastos sem previsão de receita para financiá-los, a
inflação em alta e os juros em patamares elevados; e, do outro, a escalada das
taxas internacionais está tornando os leilões de títulos mais incertos do que o
habitual.
No início da segunda quinzena deste mês, o
Tesouro vendeu apenas 79,2% dos títulos indexados ao IPCA (NTNs-B) e o lote
integral de LFTs, corrigidas pela Selic, em meio ao recrudescimento das
críticas do presidente Lula e de dirigentes do PT às taxas de juros e à
política de metas de inflação. O leilão de prefixados, títulos geralmente
comprados pelos estrangeiros, colocou 92,3% das LTNs e o lote integral das
NTNs-F. Já na semana passada, quando houve apenas um leilão por conta do
feriado de Carnaval, foram vendidas somente 67,3% das NTNs-F e todas as LTNs. A
renovada perspectiva de elevação dos juros nos Estados Unidos teria afastado o
investidor estrangeiro dos papéis brasileiros, assim como está reduzindo a
presença do capital externo na bolsa.
Cálculos da Necton Investimentos
mencionados pelo Valor (24/2)
indicam que, se o ritmo de emissão de títulos do Tesouro Nacional dos últimos
12 leilões for mantido até o fim do ano, apenas 61% da dívida mobiliária
vencida seriam renegociadas; e o colchão de liquidez seria esvaziado em R$ 509
bilhões, fechando o ano com R$ 666 bilhões. O valor é suficiente para cobrir
7,1 meses de vencimento, menos do que os 8,4 meses do fim de 2022, mas ainda
assim acima dos três meses de limite considerado prudencial.
No ano passado, que já foi relativamente
turbulento com gastos fiscais movidos pelos interesses eleitoreiros e as
dúvidas geradas pelas eleições, 83% dos vencimentos foram renegociados. Foram
rolados 91% dos papéis com taxa flutuante, 90% dos corrigidos por índice de
preço e 73% dos prefixados. O colchão de liquidez, que começou o ano em R$
1,186 trilhão, terminou R$ 10 bilhões menor, em R$ 1,176 trilhão, abastecido
principalmente por R$ 95 bilhões de retorno de bancos públicos, R$ 73 bilhões
de resultado do Banco Central, e R$ 87 bilhões em dividendos de estatais. O
Tesouro não emitiu nenhum título no mercado internacional, pela primeira vez
desde 2015. Ao fim do ano, a dívida mobiliária havia crescido 6% no período
para R$ 5,95 trilhões, sem contar o R$ 1 trilhão girado diariamente em
operações compromissadas pelo Banco Central (BC) para regular a liquidez.
Outros indicadores mostram a piora no
perfil da dívida mobiliária brasileira. Entre o fim de 2021 e o mesmo período
de 2022, os papéis com taxa flutuante aumentaram de 36,83% para 38,25% do
total; e os vinculados a índice de preço, saíram de 29,3% para 30,3%. Já os
prefixados diminuíram de 28,9% para 27%.
O prazo médio dos títulos ficou
relativamente estável em 3,9 anos, depois de ter chegado perto de 4,5 anos em
2016. O percentual de títulos que vence em 12 meses aumentou de 21% para 22,1%.
Por outro lado, as medidas de contenção da
inflação, com a redução dos impostos dos combustíveis e outros bens,
contribuíram para diminuir o custo médio do financiamento do estoque da dívida
mobiliária, que terminou o ano em 10,2% ao ano no acumulado em 12 meses, ainda
assim acima dos 8,9% de dezembro de 2021.
O perfil dos investidores segue concentrado
nos institucionais. Diminuiu ligeiramente a participação das instituições
financeiras entre 2021 e 2022, de 29,5% para 29,1%. Houve uma redução maior dos
não residentes, de 10,6% para 9,4%. Os fundos ficaram estáveis em 24%. Aumentou
a participação a previdência, de 21,7% para 22,8%; e das seguradoras, de 3,9%
para 4%.
O secretário do Tesouro Nacional, Rogério
Ceron, considera normal a volatilidade no início de um novo governo. Talvez por
isso as pretensões do Plano Anual de Financiamento (PAF) sejam modestas. Uma
das principais diretrizes é manter o colchão de liquidez para aguentar os
solavancos. Se dá como certo o aumento dos títulos de taxas flutuantes em
detrimento dos prefixados, dada a perspectiva de manutenção dos juros em
patamar elevado. O Tesouro espera um horizonte mais favorável para a dívida
mobiliária federal após a divulgação do novo regime fiscal e da reforma
tributária.
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