sexta-feira, 3 de março de 2023

José de Souza Martins* - O fim do romantismo fabril

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Os doces brincavam com a vontade de ser adulto e de viver o amanhã; não eram apenas coisas que se comia, mas coisas com as quais se brincava

Uma página inteira na “Folha de S. Paulo” revelou nesta semana que a Fábrica de Chocolates Pan, de São Caetano do Sul (SP), não longe do centenário, entrou com pedido de falência e fechou. O aroma adocicado do cacau que, por tanto tempo, perfumou todos os dias o bairro em que se situava já não será mais sentido, como lamentam seus moradores.

Não são muitas as empresas, como essa, que no Brasil nasceram e ficaram durante tão longo tempo no imaginário popular como marcos da história social e da formação da vida cotidiana entre nós. Os marcos do advento da modernidade num país mal saído da escravidão. Que apenas fingira modernismo na Semana de Arte Moderna de 1922.

A fábrica de chocolates teve seu protagonismo nesse cenário em decorrência de serem alimentícios e de consumo cotidiano os seus produtos. Basicamente porque não repetiu os concorrentes das barras retangulares de chocolate, forma de expressão da racionalidade de enquadramento própria do industrialismo.

A transformação social rápida, como aconteceu em todas as partes, acarretava novas necessidades. Uma delas, a necessidade social de doçura, mas também a necessidade social de inconformismo em todos os campos da vida, mesmo no modo de comer e no formato que era comido. A da insurgência contra as formas velhas, mas também contra as novas, originadas da lógica retilínea da estética industrialista, como a das retangulares barras de chocolate.

Osvaldo Falchero e Aldo Aliberti, engenheiros, fundadores da Pan, lançaram chocolates em forma de peixes, moedas e, também, a dos famosos cigarros de chocolate. Os doces brincavam com a vontade de ser adulto e de viver o amanhã. Não eram apenas coisas que se comia, mas coisas com as quais se brincava. Um diálogo com o imaginário infantil, um precoce reconhecimento da criança como protagonista de vontade social.

Fundada em 1935, o prestígio de um dos produtos da Fábrica de Chocolates Pan, que duraria décadas, o das balas Paulistinha, carregava no nome a memória da recente Revolução de 1932, derrotada pelo Exército e pelo regime de Vargas. Na boca de cada um, porém, crianças e adultos, os derrotados derrotavam quem os vencera, saboreando a continuidade invicta do que não terminara nem terminaria. Era como se mastigassem e engolissem o adversário, ainda décadas depois daquela derrota política amarga e inesquecível. Segredos da boca. Memória da saliva.

Pan não foi apenas uma fábrica de sabores. Ela propôs às crianças de sua época um diálogo com o futuro. Isto é, além do banal e do diário. Em 1937, os dois engenheiros italianos anunciaram num jornal que no dia seguinte um foguete seria disparado de São Paulo. Uma multidão foi ao Campo de Marte supondo que ele partiria de lá. Não houve foguete nenhum. Era o lançamento de um símbolo, derivado da sigla Pan. O foguete ganhou o espaço.

De certo modo, são fatos das exterioridades significativas, que dão sentido ao modo como se definiu e permaneceu na memória social a indústria não só como lugar de produção de coisas. Neste caso não só como fábrica de balas e de chocolate. Mas como fábrica de significações, de relacionamentos sociais, de sentimentos e concepções mediados pela indústria e pelo produto industrial, como conexões de um modo de pertencer à sociedade e de nela permanecer.

A fábrica de chocolates deu forma, cor e sabor aos afetos da realidade social nascente, tornou-a portátil, de bolso. Trouxe a infância para a cultura da indústria, revestiu-a de estilo como expressão de uma sociedade estruturada pela produção industrial.

Essa foi uma face saborosa mas oculta de uma versão pouco considerada do modernismo paulista. O modernismo não nasceu da barulhenta declaração de ruptura no modo de ver o mundo, de expressá-lo, de deformá-lo para compreendê-lo da semana de fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo. Nem a ele se limitou. Nasceu da trama crítica da indústria e da industrialização. Muitos modernistas foram antes operários.

Falchero e Aliberti sugeriram e situaram o chocolate e as balas da Pan no cenário do modernismo. Enfrentaram os concorrentes com a crítica imaginária, doce, às formas compulsórias da lógica industrial na alimentação. Situaram o modernismo comestível no futuro. Ocuparam o presente indeciso com a doçura da espera e da certeza. O lá diante como possibilidade do agora.

Fizeram de chocolates e balas instrumentos antimodernistas de uma pós-modernidade precipitada, um romantismo que adoça até hoje a memória de várias gerações. O fechamento da fábrica de chocolates encerra uma época da mentalidade popular e de nossa história social, a do nosso romantismo fabril. Começa uma época sem doçura imaginária.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

4 comentários:

Neves disse...

O que diria o clássico José de Souza Martins sobre chocolates Sönksen, Drops Dulcora, Biscoito ou Bolacha Aymoré - principalmente o biscoito 'Serenata'?

Anônimo disse...

Eski-Bon teve seu lugar

ADEMAR AMANCIO disse...

Adoro chocolate.

Mais um amador disse...

Belo texto.