O Globo
Rui Barbosa vale muito mais que um Caxias,
mais que Tiradentes. Não tem para Pedro I ou Getúlio Vargas
Eu sei — esta coluna deveria ser sobre o
universo digital, sobre seus efeitos na sociedade. Mas é que visto também
outros chapéus, além de repórter de tecnologia. Há o repórter político e o
sujeito que escreve livros de História do Brasil. E nesta semana, na
última quarta-feira, fez cem anos da morte de um de meus dois heróis na
História brasileira. Então, me permitam. Gostaria de convencê-los de que Rui
Barbosa deveria ser nosso herói coletivo. Vale muito mais que um Caxias, mais
que Tiradentes, não tem para Pedro I ou Getúlio Vargas. Nenhum vale o que Rui
valeu.
E, ainda assim, não é de sempre que vem a convicção. Na verdade, só o conheci recentemente. O Rui da minha cabeça era um sujeito que escrevia muito difícil e, como jornalista — todo jornalista é filho do Modernismo —, tenho preconceito contra quem escreve empolado. Então nunca prestei atenção, até que fui escrever um livro sobre o Tenentismo. Basta um mergulho ligeiro na Primeira República para logo entender que não é possível compreender o nascimento da República sem antes entender o político que acumulou mais derrotas nela. Rui.
Livro de jornalista sobre História é
diferente de livro de historiador. A gente não tenta avançar o conhecimento
numa área. O objetivo é popularizar o conhecimento que já existe. Com muita
frequência, isso quer dizer ajudar o leitor a compreender um tempo, quase a
sentir-se nele. Pintar um cenário, apresentar as pessoas como eram. Quanto mais
a história contada permitir proximidade, empatia, melhor. O Rui que conheci
naquela pesquisa era um bem velhinho, seu bigode já inteiramente branco, com
meio século de vida pública. Quando se elegeu pela primeira vez, Dom Pedro II
era um sujeito de longa barba loura, que usava para esconder aquele queixo de
Habsburgo. Ao morrer, ainda metido em reuniões, em debates, Rui já havia
assistido ao início do movimento que terminaria por colocar Getúlio no poder.
Ele viu o Brasil que conhecemos nascer. E quis que este mesmo Brasil fosse bem
diferente.
Rui é o grande derrotado da Primeira
República. E, em sua derrota, terminamos derrotados todos.
Sua grande briga no primeiro terço da vida
pública foi pela Abolição da Escravatura. Como é injusto que hoje, nas redes, a
maior polêmica a respeito de seu nome seja a acusação falsa de que tenha
tentado apagar a memória da escravidão. O que ele tentou, e conseguiu, foi impedir
que a República fundada pelos senhores de escravos os indenizasse. No segundo
terço da carreira, a briga foi dupla. De um lado, contra oligarcas e seu
patrimonialismo, contra o uso dos recursos do Estado por gente poderosa como se
fosse coisa pessoal. Do outro lado, a fixação do Brasil no cenário
internacional como uma nação pacífica disposta a conversar com todos. No terço
final, o velho Rui estava já convencido de que uma das maiores ameaças à
democracia vinha dos militares, do Exército e de sua compreensão absurda de que
a República lhes pertencia.
Rui ajudou a aumentar a importância do
Brasil lá fora. Na luta dos abolicionistas, dentre os quais se incluía, a
vitória foi só pela metade — acabou a escravidão, mas não foi aberto espaço
real na sociedade. Rui perdeu para os oligarcas e perdeu para os militares. A
democracia liberal que ele imaginou, com ênfase em educação para todos, direito
ao voto ampliado e um país mais aberto ao mundo, nada disso veio. A Nova
República é o que chegou mais perto — os ideais da Nova República são os ideais
de Rui.
A luta, claro, não foi só dele na História.
Mas, quando ele a começou, estava sozinho. Afinal, quando veio a República, meu
outro herói era monarquista. Joaquim Nabuco preferiu ficar em casa. Se o Brasil
dos sonhos tem um pai fundador, não há nome melhor. Mesmo escrevendo daquele
jeito.
2 comentários:
Isto sim é um retrato escrito!
Pensei que o artigo fosse de Ruy Castro,rs.
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