Valor Econômico
Dificilmente os países em desenvolvimento
terão acesso às tecnologias de baixo custo em prol da energia limpa
desenvolvidas pelos EUA e pela UE
Com sérias arestas ainda por aparar, o
acordo de livre comércio entre o bloco do Mercosul e a União Europeia (UE) é um
dos temas passíveis de apreciação, ainda que tangencial, pelos países da
Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que se reúnem a partir
de hoje em Belém. Há 28 anos, quando pela primeira vez foi assinado em Madrid o
chamado “acordo quadro” - uma espécie de intenção formal preliminar desprovida
de substância -, a questão da preservação ambiental passava muito ao largo das
preocupações dos europeus.
Hoje, é a principal condicionante da UE para um desfecho definitivo do acordo, com possíveis implicações tarifárias vinculadas a exigências de cunho sustentável que arriscam estender ainda mais as discussões. Usar o pretexto da proteção ambiental para impor sanções aos futuros “parceiros” é uma forma de transfigurar os princípios da liberalização comercial.
Ao longo das três décadas que separam o
evento de Madrid da situação atual em que aspectos fundamentais daquele acordo
inter-regional ainda estão longe de consenso, o mundo assistiu à criação da
Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao seu gradual esvaziamento. Também
viveu as benesses e as desvantagens circunstanciais do processo de globalização
que ajudou a forjar um dos mais longevos períodos de crescimento econômico
generalizado com baixas taxas de inflação, importante motor para a inclusão
social, investimentos e comércio, e grande aliado dos Bancos Centrais na
condução de políticas monetárias passivas.
O cenário mudou e não por efeito puro e
simples da pandemia. Esta, a rigor, veio agravar um quadro que já prenunciava a
primazia do local sobre o geral, do particular sobre o global. Pode-se
atribuir, por exemplo, ao aumento exponencial dos salários e consequente custo
da mão de obra na China uma das maiores causas do comprometimento da
globalização.
A tendência ao protecionismo ganhou com o
Brexit a sua manifestação política mais emblemática, motivada por reações de
ordem cultural, social e econômica. Tem agora como pano de fundo a corrida dos
países desenvolvidos pela busca de tecnologia que viabilize um sistema de
produção limpo, livre dos efeitos nocivos dos gases de efeito estufa. Trata-se
de estabelecer uma nova fronteira produtiva que acirra a concorrência em termos
mundiais e ajuda a minar ainda mais o livre fluxo do comércio.
Isso ficou claro com o Ato de Redução da
Inflação (The Inflation Reduction Act, IRA), aprovado há um ano nos Estados
Unidos. Uma série de incentivos ao uso de veículos elétricos e painéis de
energia solar por parte das famílias foram introduzidos a partir de estímulos
creditícios direcionados a empresas localizadas no próprio país.
Além disso, limita à esfera geográfica do
Acordo de Comércio entre Estados Unidos, México e Canadá - USMCA, que
substituiu o antigo NAFTA - a produção e ou montagem de componentes e compra de
minerais utilizados nos produtos elegíveis aos incentivos dentro do IRA. O ato
também impõe altos impostos de importação para fornecedores de baterias,
minerais específicos, componentes, aço e ferro que estejam fora da esfera do
USMCA para destino à produção de veículos elétricos e painéis solares nos
Estados Unidos.
A União Europeia não ficou atrás. Criou o
Plano Industrial do Pacto Ecológico (The Green Deal Industrial Plan) com o Ato
da Indústria de Impacto Zero (The Net-Zero Industry Act, NZIA), similar ao IRA
norte-americano, que cobrem uma série de incentivos e subsídios a projetos
voltados para o desenvolvimento de tecnologias de energia limpa e metas de
produção para turbinas eólicas, painéis solares, baterias e eletrolisadores.
Fundos públicos vão ajudar a baratear os custos da transição para uma indústria
menos poluente. Além disso, tarifas substanciais têm sido introduzidas pela UE
sobre a importação de produtos intensivos em gases de efeito estufa, com
destaque para o carvão.
O afã protecionista não se limita às
questões vinculadas ao meio ambiente. A disputa entre os Estados Unidos e a
China relacionada a setores de alta tecnologia é um exemplo de como a segurança
nacional passou a impor barreiras e limites comerciais.
No ambiente em que as restrições impostas
unilateralmente e a concorrência estratégica tornam-se mais importantes do que
a integração econômica em termos globais, surge um novo processo que os especialistas
têm chamado de fragmentação geoeconômica. É como se o mundo voltasse à era do
“cada um por si”.
Os países em desenvolvimento poderão ficar
a chupar os dedos caso não se atentem para as mudanças em curso e os riscos que
elas representam. De cara, deveriam dar-se conta de que dificilmente terão
acesso às tecnologias de baixo custo em prol da energia limpa desenvolvidas
pelos EUA e pela UE. Isso tem sérias implicações no processo de descarbonização
que todos se comprometeram a perseguir e, pior, abre margem para a imposição de
tarifas retaliatórias por parte dos países que têm colocado maciça soma de
recursos na transição do sistema produtivo.
Não à toa a “side letter” apresentada em
março pela UE aos interlocutores do Mercosul, com compromissos adicionais
ligados à preservação do meio ambiente, causou tanta reação. A questão da
Amazônia passou a ser central e embora esteja na jurisdição apenas do Brasil
(dentro do Mercosul) os europeus deixaram no ar a suspeita de que poderão impor
sanções ao bloco caso o desmatamento não seja substancialmente reduzido até
2025.
O documento também indicaria a intenção da
UE de apelar para barreiras comerciais caso as metas no Acordo de Paris não
fossem cumpridas. Seria algo esdrúxulo, uma vez que os compromissos assumidos
naquele fórum, além de serem voluntários, são individuais, por país. Não faria
sentido colocar todos os membros do Mercosul em um só saco, mas a retórica
protecionista costuma ser insensata.
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