Correio Braziliense
Um dos primeiros desbravadores da ideia de
entender e cuidar do progresso levando em conta os limites ecológicos e o valor
da biodiversidade
Em cada pessoa, a maneira de pensar depende
de encontros marcantes ao longo da vida com professores, parentes, amigos; no
meu caso, tive a sorte de encontrar Ignacy Sachs. Na semana passada, o mundo
perdeu esse importante pensador. Por quase 60 anos ele fez parte daqueles que iniciaram
a reflexão sobre os limites do progresso identificado com aumento da produção
industrial e elaboraram propostas para uma reorientação no rumo da civilização
em direção ao desenvolvimento sustentável, que, ainda em 1970, ele definiu como
ecodesenvolvimento.
Foi um dos primeiros desbravadores da ideia de entender e cuidar do progresso levando em conta os limites ecológicos e o valor da biodiversidade. Sendo, por isso, necessário livrar a civilização da ânsia de aumentar a produção industrial e da voracidade por consumir produtos. Além de pensador e estrategista, Sachs foi um economista pragmático que ofereceu propostas concretas sobre como fazer funcionar economias sustentáveis em diversas regiões do mundo, inclusive na Zona da Mata e na Amazônia brasileiras. As mudanças climáticas fizeram suas ideias inovadoras serem aceitas, meio século depois de formuladas.
Mas essas não foram as únicas contribuições
de seu pensamento pioneiro. Enquanto as ideias sociais e políticas eram
polarizadas pela Cortina de Ferro, Sachs percebia e denunciava o capitalismo
ocidental e o socialismo soviético como filhos da revolução industrial:
produtos da arrogância antropocêntrica, irmãos siameses na construção da
catástrofe ecológica. Enquanto a imensa maioria dos pensadores embarcava no
delírio do poder ilimitado do avanço técnico, ele alertava para os riscos do
descontrole da técnica sem valores éticos. Antes de quase todos, ele viu o
planeta e a humanidade como mais importantes do que os países isoladamente.
Sachs nos fez perceber que houve um tempo em que o mundo era a soma de países,
mas no presente, cada país é um pedaço do mundo.
O nome Ignacy Sachs continuará vivo, como
precursor, seja sinalizando os riscos que levarão à catástrofe civilizatória,
seja como desbravador das ideias que permitirão a sobrevivência da humanidade.
Essa mente brilhante e pioneira foi formada graças à vida cosmopolita de quase
um século entre 1927 e 2023. Judeu, nascido na Polônia, pouco antes da ascensão
do nazismo, veio refugiado para o Brasil com a família no início dos anos 40,
onde fez o curso secundário e se formou em economia. Depois, optou por retornar
ao seu país socialista, onde trabalhou com alguns dos mais importantes
economistas marxistas.
Sachs fez doutorado na Universidade de Nova
Délhi, na Índia dos anos 1950, primeiros anos de independência, onde teve
acesso a grandes mestres e a um momento histórico do pensamento e da prática do
desenvolvimentismo, em uma economia mista, capitalista, com forte participação
do Estado. Retornando à Polônia, trabalhou como professor e planejador na
construção da economia socialista sob orientação marxista. Até que, em 1968,
nova perseguição antissemita promovida então pelo partido comunista, obrigou-o
a asilar-se na França. Em Paris, como professor, tratou os brasileiros que
chegavam no exílio como compatriotas, e em muitos deles deixou a marca de seu
pensamento pioneiro, heterodoxo, cosmopolita, despertando em todos a visão
crítica ao desenvolvimento depredador e inspirando o compromisso com o desenvolvimento
sustentável.
Devemos a ele não apenas a orientação em
nossos doutorados, mas sobretudo a mente livre de preconceitos ideológicos ou
teóricos e comprometida com valores humanistas, na defesa do equilíbrio
ecológico e da justiça social com democracia. Direta ou indiretamente, ele
esteve por trás da filosofia que levou ao Proálcool, que criou o CDS da UnB,
que promove o microcrédito, que busca combinar grandes e pequenas empresas,
encontrar soluções simples para problemas complexos, adaptar modernas
tecnologias importadas à realidade dos países pobres, construir economias
mistas, onde a eficiência do setor privado combine com o planejamento e com o
atendimento social graças ao Estado. Até mesmo a cooperação entre Índia, Brasil
e África do Sul, que levou ao BRICS, tem a ver com uma estratégia proposta por
ele há mais de 50 anos.
Sachs alertou para o mal que o crescimento
econômico provocou sobre a Terra e inspirou como reorientar o progresso. Morreu
dormindo, mas suas últimas palavras poderiam ter sido “valeu a pena para mim” e
“ainda é tempo para a humanidade”. Por tudo isso, o 2 de agosto de 2023 foi um
dia em que a Terra chorou, com esperança.
*Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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