terça-feira, 8 de agosto de 2023

Carlos Andreazza – Pretinhos

O Globo

Uma resenha afetiva para o disco em que Xande de Pilares canta Caetano de Veloso.

‘Gente’ virou samba de terreiro. De morro. Riscou o chão na Balaiada. Caetano entendeu tudo. Já foi enredo. Não deve ser muito longe do máximo a um compositor brasileiro, por consagrado que seja, ter a certeza de que uma música sua seria — faria, seguraria, levaria — escola de samba na avenida. Caetano chorou porque, gosto de fantasiar, sacou — ali, naquele instante — que valeu. Que não haverá força traída num batuque tocado pela multiplicação dos pretinhos.

Seria a imortalidade, imortal não fosse. Será a imortalidade, a compô-la; porque Xande de Pilares cantando Caetano Veloso fará com que algum moleque-cavaquinho, que nunca ouviu o maioral, que talvez jamais o ouvisse, afinal o ouça.

Mortal, quero acabar de viver o que me cabe, e que seja ainda muito; muito chão, por favor. Desde que intacta a capacidade de me comover. Por favor. Se um desejo só: não perder a fibra da emoção — para ser sempre surpreendido por uma virada de repique de mão, de repente, em “Tigresa”. Uau! Repique de anel, depois o de mão. Em “Tigresa”.

Ressuscita-me, se não for assim. Ressuscita-me, porque me terei perdido. Se não for para ouvir, sentir e lembrar. Lembrar Ubirany — a revolução da Rua Uranos. (Salve, Dotô!) A canção de Caetano Veloso formando na roda do Cacique de Ramos. Lugar também de toda a grande música; dos que querem, buscam, um acorde perfeito maior; dos que puseram, mão no couro, o samba em todo canto. É o lugar de Xande. De Pretinho da Serrinha.

Nada mais natural do que o pagodão do Caetano. Caetano com tantã. Na tradição de Sereno e Neoci. Versando com Deni. Nada mais natural do que a assunção do banjo, sempre de súbito, em “Trilhos urbanos” — e, ainda assim, o deslumbramento. Uau! Chama Almir Guineto. Chama. Levanta, Arlindo Cruz. Vem. A virada do repique de mão, de novo, e então o gatilho do banjo percussivo. Caetano no fundo de quintal. Tudo muito natural. É o mundo de Xande.

É preciso estar — ou ser — muito mal-humorado para encontrar neste “Xande canta Caetano” o mesmo que se escuta por aí, vulgarmente, nas infinitas versões para samba de canções que nasceram sob outro ritmo. Esse trabalho é de natureza rara. Da estirpe do que funda e ilumina. Avesso do lugar-comum, veio para ficar e influir. Para fazer cabeças. Produção, desde o mundo de Pretinho, que tem a beleza da formulação — do pensamento. Que dá nova existência a canções, algumas das quais clássicos organicamente confundidos com a própria ideia — com o próprio imaginário — de música popular brasileira.

É um elogio ao criador, Caetano, à força de permanência de sua obra, que suas canções possam ser recriadas e recriadas e recriadas. É o que fazem Xande e Pretinho. Obra em progresso.

Ouço “Muito romântico”, que foi de Roberto Carlos — e que agora é de Xande, do cavaco de Xande, da concepção de Pretinho. E tenho o ímpeto, propriedade do que é vivo, do que está aberto, de que o rei cante a versão de Pretinho e Xande. Quero RC cantando e dividindo nas baixarias do violão de Carlinhos Sete Cordas. Trabalhos como esse tornam tudo possível.

Quero também — por que não? — Caetano gravando um disco só com sambas de Luiz Carlos da Vila, Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho. Quero Caetano Veloso cantando “Carvão e giz”, “É, pois é”, “Borboleta cega”, “Bar da esquina”, “Não valeu” e “Jiló com pimenta”. São as ideias — viagens — que dão Xande e Pretinho. O nome do disco será “Caetano no pagode” — homenagem a Beth Carvalho. É para ontem.

Nada mais natural, urgente mesmo, do que o pagodão do Caetano. Mas isso só agora, depois da arte pronta. Agora que Xande e Pretinho criaram um universo. Xande e Pretinho inventaram um lugar, como a Tigresa. São dez canções, quase sempre a imprevisibilidade — e é tudo muito natural. Sem contradições.

Quando há algo de óbvio, na escolha de “Luz do sol”, por exemplo, então a obviedade é desafiada pelo tom, lá no alto, com que Xande canta e conclui a versão. Em prece mesmo. Cantando uma enormidade. Terá oferecido, em “Diamante verdadeiro”, breque já defendido por Maria Bethânia, uma gravação definitiva. E desafio que não se emocione quem o ouvir cantando — homenageando Gal — “O amor”.

Quando há algo de óbvio, na escolha de “Alegria, alegria”, por exemplo, Pretinho — este ousado — reúne e une a Serrinha para que se arme de jongo e outros impérios: Cardinales bonitas umbigando sob uma sinfônica serrana de agogôs e aquelas palmas dos meus sonhos dourados, as de vovó Maria Joana, de Tia Maria. Jonga-se também, com atabaques e congas, em “Trilhos urbanos”. E eu vou. Os olhos cheios de amores. Eu nunca mais fui à (minha) escola. Eu vou. O peito cheio de saudades. Nada é óbvio.

Machado.

 

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