segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Gustavo Loyola* - Insistência no erro

Valor Econômico

Projeto da Câmara sobre juro do crédito rotativo tenta corrigir uma distorção criando outra maior ainda

O projeto de lei recentemente aprovado em votação simbólica pela Câmara dos Deputados - que pode levar com que os juros incidentes sobre o rotativo do cartão de crédito não possam ultrapassar o valor original da dívida - insiste no equívoco recorrente de se buscar corrigir uma distorção de mercado por meio da criação de uma distorção maior ainda. O resultado da medida, se posta a vigorar, pode ser a restrição dessa modalidade de crédito para uma parcela significativa da população, afetando negativamente o próprio desempenho das vendas do comércio varejista.

Na realidade, o citado teto de juros não entraria em vigência imediatamente após a sanção do projeto. Segundo o texto aprovado, os emissores de cartão de crédito e de outros instrumentos e pagamento pós-pagos utilizados em arranjos abertos (cartão de bandeira) ou fechados (cartões de redes varejistas) terão 90 dias para apresentar ao CMN proposta de autorregulação das taxas de juros e encargos financeiros cobrados no crédito rotativo e no parcelamento de saldo devedor das faturas de cartões de crédito. Caso não o façam, somente então entraria em vigor a referida limitação dos juros e dos encargos ao valor original da dívida.

Embora se louve, por um lado, a preocupação do legislador de deixar espaço para uma discussão entre os agentes de mercado e o CMN, antes de imposição de um limite rígido na cobrança de juros sobre os saldos dos cartões, ainda assim a iniciativa da Câmara é eivada de problemas, pois de um jeito ou de outro levará à instituição de um limite uniforme para tais encargos, seja ele mais ou menos restritivo.

Como se sabe, o tabelamento de preços de bens e serviços - quaisquer que sejam eles - sempre acaba, mais cedo ou mais tarde, levando a problemas de restrição de oferta, como ensina a experiência acumulada ao longo da história econômica. Por isso, deve ser considerado, no máximo, como um remédio temporário para lidar com situações excepcionalíssimas e temporárias e não como uma solução em si para uma distorção estrutural de mercado.

Vale ressaltar que as elevadas taxas de juros cobradas no financiamento dos saldos devedores do crédito rotativo dos cartões refletem não apenas as circunstâncias atuais restritivas da conjuntura econômica, como também questões estruturais do mercado brasileiro, notadamente o fato de que praticamente a metade das compras realizadas com cartões de crédito são feitas na modalidade “parcelado sem juros”, característica singular presente apenas em nosso país.

Como se sabe, o “parcelado sem juros” é resultado de anos e anos de distorções no mercado de crédito ao consumidor no Brasil, acumuladas em décadas de instabilidade macroeconômica e de inflação elevada. Essa modalidade pode ser considerada a herdeira direta do “cheque pré-datado”, criação tupiniquim que transformara um instrumento de pagamento à vista num título de crédito a prazo. Enquanto não enfrentada essa questão, dificilmente cairão significativamente e de forma sustentada os juros cobrados pelos emissores de cartões de crédito sobre os saldos devedores do rotativo.

Vale notar que alguns analistas minimizam a relação entre os juros cobrados no rotativo e a existência da modalidade “parcelado sem juros”, argumentando que nesse tipo de operação há também o pagamento de juros pelos lojistas, ao realizarem operações de desconto dos recebíveis de cartões com as instituições financeiras. Embora, de fato, em tais situações os lojistas incorram em juros, o argumento ignora, entre outros aspectos, que o risco de crédito é sempre tomado pelos emissores dos cartões, independentemente de serem eles (ou instituições a eles ligadas) aqueles que concedam o adiantamento aos lojistas.

Outro aspecto negativo relevante do projeto é desconsiderar a heterogeneidade dos ofertantes de crédito no mercado de cartões. Há emissores que são instituições bancárias universais, enquanto outros são “monoprodutos”. Há aqueles vinculados a cadeias varejistas, enquanto outros não o são. Há instituições de portes distintos: grandes, médias e pequenas. Nesse mundo multifacetado, há diferentes níveis de apetite de risco de crédito, que levam a estratégias de precificação também distintas entre si.

Num quadro como esse, a limitação dos juros, se efetiva, tende a ter efeitos concorrenciais negativos relevantes, podendo até alijar do mercado alguns de seus participantes.

Por fim, vale ainda levar em conta que a iniciativa da Câmara dos Deputados, embora com propósitos louváveis, atropela de certa maneira a agenda de mudanças estruturais que o Banco Central vem promovendo no mercado financeiro, com vistas a reduzir o custo do crédito e ampliar sua oferta, principalmente para as pequenas empresas e para as famílias de menor renda. Essa agenda já trouxe benefícios relevantes para a economia brasileira e se aguarda que a entrada em vigência plena do ambicioso projeto “open finance” traga impactos positivos adicionais sobre a oferta de crédito no Brasil.

*Gustavo Loyola é Doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central e Sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo

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