Valor Econômico
O grau de incerteza fiscal não voltou ao
nível observado antes do arcabouço, mas a alta recente dos juros reais de longo
prazo mostra que a nova regra não é vista como uma solução estrutural
As incertezas sobre as contas públicas aumentaram nas últimas semanas. A avaliação é que a proposta de Orçamento de 2024 tem previsões muito otimistas de receitas e, em alguns casos, despesas subestimadas, como as relacionadas aos gastos com aposentadorias e pensões. Para os especialistas em contas públicas, tem ficado ainda mais distante o cumprimento da meta do governo de zerar o déficit primário no ano que vem. Com isso, os juros reais (descontada a inflação) de longo prazo voltaram a subir, mesmo num cenário em que a aposta dominante é que a taxa Selic seguirá em queda até o fim de 2023 e ao longo de 2024.
Na sexta-feira, as taxas dos títulos do
Tesouro corrigidos pelo IPCA com vencimento em 2045 e 2050 fecharam na casa de
5,75% ao ano, depois de bater em 5,4% em 11 de agosto, na mínima do ano. São
juros reais inferiores aos 6,5% a 6,6% que chegaram a ser registrados na
primeira quinzena de março, antes da apresentação do novo arcabouço fiscal, mas
uma taxa de 5,75%, descontada a inflação, é muito elevada, não sendo
sustentável no longo prazo. Ela impõe um custo que exige superávits primários
muito altos para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB, além de afetar
o ritmo de crescimento, como lembra sempre o ex-presidente do Banco Central
(BC) Affonso Celso Pastore.
O grau de incerteza fiscal não voltou ao
nível observado antes da apresentação e aprovação do arcabouço fiscal, mas a
alta recente dos juros reais de longo prazo mostra que a nova regra não é vista
como uma solução estrutural para as contas públicas. Vale dizer que o aumento
das taxas dos títulos corrigidos pela inflação também foi influenciado por um
cenário externo mais adverso, com a avaliação de que os juros ficarão mais
altos por mais tempo nos países avançados. Ainda assim, as dúvidas recentes
sobre o Orçamento de 2024 têm peso para a elevação das taxas reais de longo
prazo no país.
A maior incerteza em relação ao Orçamento é
quanto à capacidade de o governo conseguir receitas adicionais de R$ 168,5
bilhões. Sem elas, a administração federal não será capaz de zerar o déficit do
resultado primário (que exclui gastos com juros) da União. Segundo relatório da
Instituição Fiscal Independente (IFI) divulgado na semana passada, o projeto de
lei orçamentária do ano que vem “prevê arrecadar R$ 69,7 bilhões com medidas em
tramitação no Legislativo mais R$ 97,9 bilhões com o retorno do voto de qualidade
no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), matéria que aguarda
sanção presidencial”. Para a IFI, porém, o governo deverá conseguir apenas R$
51,9 bilhões com essas iniciativas, e não R$ 168,5 bilhões.
Em relatório, a A.C. Pastore & Associados,
a consultoria de Pastore, afirma que as receitas necessárias para cumprir as
metas fiscais do governo central nos próximos três anos só seriam atingidas com
aumento de alíquotas de impostos já existentes - algo que não está no radar e
nem seria viável politicamente. Nesse cenário, a expectativa da consultoria é
que o país tenha déficits primários em 2024, 2025 e 2026, o que aumenta a taxa
neutra de juros - aquela que permite a economia crescer sem pressões
inflacionárias. Os analistas avaliam que essa taxa subiu nos últimos anos. Em
junho, o Banco Central (BC), por exemplo, elevou a sua estimativa para o
indicador de 4% para 4,5%, descontada a inflação.
Além do problema das receitas, alguns
analistas têm apontado que algumas despesas para o ano que vem estão
subdimensionadas. Pesquisador do Insper, Marcos Mendes avalia que os gastos com
benefícios previdenciários podem estar subestimados em R$ 16 bilhões, como
mostrou reportagem do Valor de
Jéssica Sant’Ana. Isso aumenta o risco de o resultado primário de 2024 ficar
mais distante da meta de déficit zero. Além de projeções de receitas
irrealistas, as estimativas para algumas despesas parecem subestimadas. Para
completar, o resultado fiscal deste ano tem mostrado queda da receita e alta
forte das despesas.
Para a A.C. Pastore, com as dificuldades
para obter a arrecadação necessária para atingir as metas de resultado
primário, “fica claro que em 2024, 2025 e 2026 a política fiscal continuará
sendo expansionista”. O governo não “abdica” de manter o crescimento dos gastos
não financeiros acima da inflação, por considerar que o aumento de despesas é
“o que promove o crescimento econômico”, segundo a consultoria. Como a alta da
demanda do governo expande a demanda total da economia, a taxa neutra de juros
será mais elevada, segundo a A.C. Pastore. “Ou seja, ao expandir a demanda
agregada a política fiscal expansionista leva, caso o Banco Central mantenha
seu compromisso em atingir o centro da meta em 2025 [de 3%], a um ‘crowding
out’ da demanda do setor privado, com maior efeito naquelas componentes da
demanda do setor privado mais sensíveis à taxa de juros, como são a demanda de
bens duráveis de consumo e a formação bruta de capital fixo [medida do que se
investe em máquinas e equipamentos, construção civil e inovação].” Isso
significa que uma demanda mais forte do setor público toma o lugar na economia
da demanda do setor privado. O mais preocupante é o impacto sobre o
investimento, que segue baixo no Brasil e precisa crescer para a economia
conseguir avançar a taxas mais elevadas de modo sustentado.
Se o BC passar a trabalhar com uma “meta
implícita” de inflação superior ao centro da meta, é possível que reduza mais
os juros, diz a A.C. Pastore, mas à custa de um IPCA mais elevado, superior aos
3%. Com isso, haveria a continuidade nos próximos anos do “conflito fiscal
monetário”, cuja existência o ex-presidente do BC tem apontado reiteradamente.
O arcabouço trouxe algum norte para as
contas públicas, afastando o risco de um cenário de ruptura fiscal num prazo mais
curto. No entanto, a dependência do novo regime de receitas que poderão não se
concretizar e a possibilidade de que algumas despesas estejam subestimadas, com
uma regra que prevê expansão dos gastos sempre acima da inflação, apontam para
uma coleção de fragilidades, que tornam mais provável o quadro traçado pela
A.C. Pastore para os próximos anos.
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