O Estado de S. Paulo
Parte do que o Latinobarómetro indica como desapreço pela democracia pode ser, especificamente, desapreço pelo liberalismo
Em abril de 2020, em frente ao
Quartel-general do Exército em Brasília, manifestantes carregavam faixas com os
dizeres “intervenção militar já com Bolsonaro” e gritavam, entre outras coisas,
“Fora, Maia”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF”. Em agosto de 2022, pesquisa
Datafolha mostrou que 77% dos eleitores do expresidente Jair Bolsonaro apoiavam
a democracia.
Em julho de 2023, o reconhecido instituto
chileno Latinobarómetro publicou informe intitulado A recessão democrática da
América Latina, resultante de pesquisas envolvendo 17 países latino-americanos,
com mais de 19 mil entrevistas. A “recessão” de que fala o título, explica o
informe, “expressa-se no baixo apoio à democracia, no aumento da indiferença ao
tipo de regime, na preferência e atitudes a favor do autoritarismo”.
A preferência dos latinoamericanos por um regime autoritário, diz o Latinobarómetro, teve “um aumento significativo, de 13% em 2020 a 17% em 2023”, e tal preferência aumentou em todos os países, com exceção do Panamá.
Neste contexto, uma das afirmações testadas
pelo Latinobarómetro foi “não me importaria que um governo não democrático chegasse
ao poder se (ele) resolve os problemas”. No Brasil, 53% se disseram de acordo
com a afirmação (na América Latina, 54%).
Esses resultados, combinados com a referida
manifestação de abril de 2020 e com a pesquisa Datafolha de agosto de 2022,
parecem autorizar a seguinte pergunta: o aumento “na preferência e atitudes a
favor do autoritarismo” e a aceitação de um governo antidemocrático se ele
“resolve os problemas” indicam, simplesmente, desapreço pela democracia? Não
indicariam, em parte dos casos, desapreço pelo liberalismo mais do que pela
democracia?
Liberalismo entendido, aqui, em seu sentido originário, como preocupação política, não econômica. Assim, ele é uma doutrina que defende a limitação do poder do Estado em face de direitos reconhecidos aos indivíduos desse Estado. A leitura de um dos seus documentos cardinais, a Declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão (1789), mostra que as preocupações de seus redatores eram a propriedade, o direito de ir e vir, a resistência à opressão, ancoradas na separação dos Poderes, para impedir o despotismo e proteger a liberdade dos cidadãos. Essa ideia marca o que conhecemos por constitucionalismo: “Todo governo constitucional é, por definição, governo limitado” (Charles McIlwain, Constitutionalism: ancient and modern).
Essa ideia marca, também, muitas
Constituições do presente. Uma diferença importante é que boa parte delas hoje
combina as limitações ao poder do Estado com relevantes direitos sociais e
políticos, tidos por fundamentais e (sob a proteção do Judiciário)
potencialmente inalcançáveis, inclusive, pelas maiorias formadas no processo
democrático. Daí porque é imprecisa, por exemplo, a declaração feita por
Bolsonaro em julho do ano passado, de que “as leis existem (...) para proteger
as maiorias. As minorias têm de se adequar”.
O constitucionalismo, em sua perspectiva
liberal, limita os poderes dos governantes democraticamente eleitos, afinal,
mesmo um governo assim eleito, “fora das estruturas do Estado de Direito, corre
o risco de se tornar, não menos do que qualquer outro, despótico” (Norberto
Bobbio, Contra os novos despotismos).
Parte daí uma possível explicação para os dados
citados no início deste texto. Como visto, 77% dos eleitores de Bolsonaro, um
governante claramente autoritário (logo, refratário a limites), disseram apoiar
a democracia; a preferência dos latino-americanos por um regime autoritário
teve um aumento significativo na última pesquisa do Latinobarómetro; no Brasil,
53% se disseram de acordo com a afirmação “não me importaria que um governo não
democrático chegasse ao poder se (ele) resolve os problemas”.
O argumento, então, é de que parte
(provavelmente a mais radical) dos 77% acima disseram apoiar a democracia
porque têm uma ideia imprecisa dela, ao ignorar ou mesmo recusar que o poder
das maiorias formadas democraticamente encontra limites constitucionais
intransponíveis, o que se estende ao poder do presidente da República
democraticamente eleito (daí também a visão de que o Supremo Tribunal Federal
promove uma “ditadura”, enquanto a atuação de Augusto Aras na
Procuradoria-Geral da República é normal).
De outro lado, a existência e os efeitos
desses limites parecem contribuir tanto para a disposição de alguns
entrevistados a aceitar um governo antidemocrático que “resolve os problemas”
quanto para os dizeres e faixas da citada manifestação de abril de 2020 em
Brasília.
Desse ponto de vista, resulta que parte do
que o Latinobarómetro indica como desapreço pela democracia pode ser,
especificamente, desapreço pelo liberalismo. Quem defende “intervenção militar
já com Bolsonaro” e “Fecha o STF” defende um governo iliberal. As instituições
liberais, ao fiscalizar/limitar o poder do governante de turno, protegem a
democracia. Sabemos disto: não fossem elas, o resultado das eleições
presidenciais passadas teria sido invertido por fraudes fantasmas nas urnas
eletrônicas.
*Doutor em Direito pela USP e pela Università degli Studi di Torino, integrante do instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp
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