segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Paulo Sternick* - Certezas arbitrárias e perigosas

O Globo

O cardápio de falsas saídas é pródigo em converter a procura de solução em problema ainda maior

Quase nada acontece, talvez alguns pensem em seguida, mas fazer um artigo é agradável para quem escreve. Na música “Tigresa”, Caetano Veloso — ferido pelas garras de uma moçoila de unhas negras e íris cor de mel, que era atriz e trabalhou no “Hair” — resigna-se admitindo ser bom poder tocar um instrumento. A origem de uma música, da arte ou de um texto se cultiva, às vezes, na frustração diante da adversa e penosa realidade. A criação consola, repara e faz bem à alma. A diferença entre um artigo e uma letra musical é que esta goza de invejável eternidade.

Jorge Luís Borges, porém, dizia que a máxima ambição de um escritor era ver seu nome esquecido e algumas de suas frases integrando um idioma. A criação e reflexão coletiva, inconsciente e invisível, mantém aceso o desejo da escrita que se lança ao mundo num voo cego e imprevisível. Quase nada acontece, talvez alguns pensem em seguida — mas desejar diferente não trairia desmedida ambição? Robert Louis Stevenson diria que, como escritores, nosso negócio no mundo não é ter êxito (talvez no sentido de um desejo de mudança), mas continuar fracassando com bom ânimo.

A civilização, de todo jeito, assim se move, com música e ideias — de que ela precisa —, a fim de enfrentar as tendências bárbaras e destrutivas. Albert Einstein atuou contra Freud ganhar o Prêmio Nobel — incerto quanto ao caráter científico da psicanálise. Mas o criador da consagrada teoria da relatividade também não conseguiu aceitar o lado incerto e probabilístico da mecânica quântica, de que ele próprio fora um dos pioneiros. Freud — exímio escritor — se consolou com o Prêmio Goethe de Literatura. Ambos trocaram as famosas cartas sobre o horror da guerra. E, ao recusar a incerteza de certos fenômenos físicos, Einstein avisou que “Deus não joga dados”. Alguns colegas disseram-lhe para ele desistir de dizer a Deus o que deveria fazer.

Tenho estado com muitos analisandos — assim chamamos as pessoas que vêm fazer psicanálise — e os escuto há quase 50 anos. Apesar de nunca esquecer a sugestão de Freud, de que a ambição de curar atrapalha a compreensão do que se passa na sessão, venho notando que eles conseguem evoluir, gradual e arduamente, ao tomar ciência das razões ou sentidos de seus sofrimentos e impasses. Tomar ciência de sua subjetividade, das armadilhas de emoções e pensamentos tem notável efeito no corredor do crescimento mental e emocional. Pois o objetivo da psicanálise é modesto assim: por meio do diálogo, e do que surge de sentimentos, lembranças e pensamentos, tornar ciente o que não era — ter ciência de si próprio, num processo dinâmico, não linear e interminável junto a si.

O físico Werner Heisenberg censurou Descartes por sua pretensão de ser preciso demais. A ciência moderna não é — em algumas áreas — simples e exata. A mente de Descartes se aproxima do jogo de tênis, onde a bola precisa passar de um lado a outro de forma bem definida. Heisenberg compara esse modo de ver ao de Santo Tomás de Aquino, que lembra uma partida de futebol, em que o campo todo está em movimento e se desloca de forma imprevisível.

Não se trata de cair na cilada pós-moderna de expandir a incerteza da física quântica e aplicá-la absurdamente a todo campo de conhecimento. Mas, num tempo em que as falsas certezas provocam sinistras e absurdas guerras, temerárias polarizações políticas e dispensáveis conflitos geopolíticos — além de nova caça às bruxas em nome da ciência —, a capacidade negativa do poeta John Keats deve ser lembrada para arejar as obscuras arbitrariedades dos que julgam tudo saber.

A certeza arbitrária e fora de lugar tem compradores angustiados e temerosos, em busca desesperada de proteção e alívio. Remédios com doses ortodoxas contra depressão psíquica, ou inflação econômica, líderes autoritários como alternativa ao caos econômico e social — o cardápio de falsas saídas é pródigo em converter a procura de solução em problema ainda maior que aquele que se procura solucionar.

*Paulo Sternick é psicanalista

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