O Globo
O cardápio de falsas saídas é pródigo em
converter a procura de solução em problema ainda maior
Quase nada acontece, talvez alguns pensem
em seguida, mas fazer um artigo é agradável para quem escreve. Na música
“Tigresa”, Caetano Veloso — ferido pelas garras de uma moçoila de unhas negras
e íris cor de mel, que era atriz e trabalhou no “Hair” — resigna-se admitindo
ser bom poder tocar um instrumento. A origem de uma música, da arte ou de um
texto se cultiva, às vezes, na frustração diante da adversa e penosa realidade.
A criação consola, repara e faz bem à alma. A diferença entre um artigo e uma
letra musical é que esta goza de invejável eternidade.
Jorge Luís Borges, porém, dizia que a máxima ambição de um escritor era ver seu nome esquecido e algumas de suas frases integrando um idioma. A criação e reflexão coletiva, inconsciente e invisível, mantém aceso o desejo da escrita que se lança ao mundo num voo cego e imprevisível. Quase nada acontece, talvez alguns pensem em seguida — mas desejar diferente não trairia desmedida ambição? Robert Louis Stevenson diria que, como escritores, nosso negócio no mundo não é ter êxito (talvez no sentido de um desejo de mudança), mas continuar fracassando com bom ânimo.
A civilização, de todo jeito, assim se
move, com música e ideias — de que ela precisa —, a fim de enfrentar as
tendências bárbaras e destrutivas. Albert Einstein atuou contra Freud ganhar o
Prêmio Nobel — incerto quanto ao caráter científico da psicanálise. Mas o
criador da consagrada teoria da relatividade também não conseguiu aceitar o
lado incerto e probabilístico da mecânica quântica, de que ele próprio fora um
dos pioneiros. Freud — exímio escritor — se consolou com o Prêmio Goethe de
Literatura. Ambos trocaram as famosas cartas sobre o horror da guerra. E, ao
recusar a incerteza de certos fenômenos físicos, Einstein avisou que “Deus não
joga dados”. Alguns colegas disseram-lhe para ele desistir de dizer a Deus o
que deveria fazer.
Tenho estado com muitos analisandos — assim
chamamos as pessoas que vêm fazer psicanálise — e os escuto há quase 50 anos.
Apesar de nunca esquecer a sugestão de Freud, de que a ambição de curar
atrapalha a compreensão do que se passa na sessão, venho notando que eles
conseguem evoluir, gradual e arduamente, ao tomar ciência das razões ou
sentidos de seus sofrimentos e impasses. Tomar ciência de sua subjetividade,
das armadilhas de emoções e pensamentos tem notável efeito no corredor do
crescimento mental e emocional. Pois o objetivo da psicanálise é modesto assim:
por meio do diálogo, e do que surge de sentimentos, lembranças e pensamentos,
tornar ciente o que não era — ter ciência de si próprio, num processo dinâmico,
não linear e interminável junto a si.
O físico Werner Heisenberg censurou
Descartes por sua pretensão de ser preciso demais. A ciência moderna não é — em
algumas áreas — simples e exata. A mente de Descartes se aproxima do jogo de
tênis, onde a bola precisa passar de um lado a outro de forma bem definida.
Heisenberg compara esse modo de ver ao de Santo Tomás de Aquino, que lembra uma
partida de futebol, em que o campo todo está em movimento e se desloca de forma
imprevisível.
Não se trata de cair na cilada pós-moderna
de expandir a incerteza da física quântica e aplicá-la absurdamente a todo
campo de conhecimento. Mas, num tempo em que as falsas certezas provocam sinistras
e absurdas guerras, temerárias polarizações políticas e dispensáveis conflitos
geopolíticos — além de nova caça às bruxas em nome da ciência —, a capacidade
negativa do poeta John Keats deve ser lembrada para arejar as obscuras
arbitrariedades dos que julgam tudo saber.
A certeza arbitrária e fora de lugar tem
compradores angustiados e temerosos, em busca desesperada de proteção e alívio.
Remédios com doses ortodoxas contra depressão psíquica, ou inflação econômica,
líderes autoritários como alternativa ao caos econômico e social — o cardápio
de falsas saídas é pródigo em converter a procura de solução em problema ainda
maior que aquele que se procura solucionar.
*Paulo Sternick é psicanalista
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