Combate ao crime exige respeito à evidência
empírica
O Globo
É lamentável desprezo às câmaras em fardas e
louvável iniciativa que reverteu a proliferação de armas
No combate à violência,
governos não deveriam abrir mão de políticas públicas de sucesso comprovado. É
o caso das câmeras acopladas a uniformes de policiais, estratégia usada com
bons resultados no exterior e em pelo menos oito estados brasileiros. Não só
para reduzir as mortes causadas pela polícia, mas também para proteger os
próprios agentes de acusações infundadas, dando mais transparência às ações
contra o crime.
Infelizmente o governador paulista, Tarcísio de
Freitas (Republicanos), tem desprezado os avanços do programa
implantado em gestões anteriores. Afirmou que não investirá em novas câmaras
nas fardas, sob a alegação de que não oferecem segurança ao cidadão. Ora, os
números mostram que, entre 2019 e 2022, seu uso contribuiu para reduzir em
76,2% os civis mortos em operações policiais (nos quartéis onde não eram
usadas, a queda foi de 33,3%). Diversas pesquisas científicas corroboram a
eficácia da política.
A incoerência fica maior quando se observam os números atuais. No ano passado, primeiro do governo Tarcísio, os civis mortos por PMs em serviço aumentaram 34%, para 333, de acordo com levantamento do portal g1 com base nos dados do Ministério Público. No ano anterior, haviam sido 248, patamar mais baixo já registrado.
Que as evidências devem ser respeitadas fica
claríssimo no exemplo de outra política pública bem-sucedida no combate à
violência — a decisão, tomada logo no início do governo Luiz Inácio Lula da
Silva, de restringir o acesso a armas e munições depois do armamentismo
promovido na gestão Jair
Bolsonaro. Em 2023, a queda nos novos registros de armamento para
defesa pessoal chegou a 82%, menor patamar desde 2004. Mesmo para os quase 21
mil que obtiveram uma arma, a situação se tornou mais difícil. Dos pedidos de
registro de porte, 75% foram negados. A questão agora é o que fazer com o
arsenal que continua em poder da população civil, estimado em torno de 1 milhão
de armas de fogo.
O número é relevante, entre outros motivos,
porque muitas armas compradas legalmente por cidadãos bem-intencionados acabam
furtadas, roubadas ou extraviadas — e vão parar nas mãos de bandidos,
alimentando ainda mais a violência. Nem mesmo o Exército tem conseguido manter
seu arsenal em segurança, como provam desvios recentes.
Evidentemente, diminuir as armas em
circulação não significa automaticamente diminuir os crimes, pois outros
fatores contribuem para a violência. Mas sem dúvida ajuda, como comprovam
estudos acadêmicos. De acordo com o Ministério da Justiça, entre janeiro e
outubro de 2023, período em que ficou mais difícil o acesso às armas, caíram os
homicídios (3,3%), feminicídios (2,4%) e mortes por intervenção policial
(3,6%). Como 70% dos crimes são cometidos por armas de fogo, é razoável supor
que a política de dificultar o acesso tenha surtido algum efeito. “Estamos
provando que menos armas é menos letalidade, menos violência”, disse ao g1 o
secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli.
O combate à criminalidade exige políticas
públicas consistentes e duradouras. Quando bem desenhadas e adotadas com base
em evidências empíricas — e não em ideologias ou populismo —, têm eficácia.
Sozinha, nenhuma resolverá o problema. Em conjunto, implementadas como ação do
Estado, não há dúvida de que dão resultados.
Recorde da balança comercial traduz força do
setor privado
O Globo
Empresas de setores mais produtivos e
competitivos souberam aproveitar as oportunidades internacionais
Pelo terceiro ano consecutivo, o superávit da
balança comercial brasileira bateu recorde. Antes do anúncio dos dados oficiais
de 2023, previsto para os próximos dias, a única dúvida é o tamanho do
crescimento em relação a 2022. O saldo prévio, para o período entre 1º de
janeiro e 25 de dezembro, foi da ordem de US$ 95 bilhões, 54% acima do
superávit do ano anterior. O resultado expressivo é consequência do dinamismo
das empresas capazes de manter produtividade e competitividade em alto patamar.
Com a exceção do petróleo, os outros quatro principais produtos da pauta de
exportações (soja, minério de ferro, açúcar e milho) são dominados pelo setor
privado.
O desempenho tem levado economistas a prever
um cenário de bonança duradoura. Mantidos os saldos positivos na balança
comercial, o Brasil criará as condições para o consumo das famílias e os
investimentos crescerem acima da variação do PIB sem que haja pressão negativa
sobre as contas externas. Foi a experiência do país entre 2006 e 2013, período
conhecido pela explosão na demanda global por commodities. O preço dos produtos
exportados subiu, o dos importados caiu, e a economia alcançou um equilíbrio mantido
até o momento em que o desajuste fiscal do setor público derrubou a confiança.
As causas do superávit de 2023 são distintas.
Os recordes registrados em 2021 e 2022 foram impulsionados não apenas pela
recuperação depois da pandemia, mas também pelo aumento nos preços ante maior
demanda. O desarranjo nas cadeias globais de suprimento (decorrência também da
guerra na Ucrânia) provocou uma disparada na cotação das commodities. No ano
passado, os preços voltaram a cair.
A queda deu aos exportadores brasileiros a
oportunidade de mostrar uma capacidade de resposta fora do comum. Com destaque
para o agronegócio,
eles compensaram a desvantagem no preço aumentando a quantidade vendida. Nos 12
meses terminados em outubro, o volume embarcado de produtos agrícolas aumentou
quase 30%. Analistas veem nessa resposta uma mudança estrutural e preveem
vários anos de exportações em alta, independentemente de flutuação de preço. A
previsão para 2024 não é um novo recorde, mas um saldo comercial com folga
larga, de no mínimo US$ 75 bilhões.
Tal perspectiva deveria levar os defensores da agenda desenvolvimentista a rever sua posição. Eles costumam acreditar que apenas investimentos do Estado são capazes de fazer a economia crescer. É um engano. Como demonstra o desempenho dos exportadores, o Brasil precisa apostar nos setores em que há vantagens comparativas e maior produtividade, caso do agronegócio. As oportunidades devem ser perseguidas pelo setor privado. O papel do Estado é imprescindível, mas como regulador, não como indutor ou impulsionador do desenvolvimento. Nada substitui o conhecimento e a intuição dos empreendedores.
Lula veta calendário de emendas, mas preserva
megafundo eleitoral
Valor Econômico
Ainda que com derrotas no Congresso, o
governo tem conseguido navegar razoavelmente bem, como indica a aprovação da
reforma tributária
O presidente Lula vetou vários pontos da lei
orçamentária, procurando preservar a margem de manobra do Executivo, cada vez
mais estreita com o apoderamento crescente do Legislativo sobre o montante e o
destino dos recursos públicos. O governo escolheu poucos alvos de rejeição,
para não parecer afronta ao Congresso, e cedeu em vários outros, respeitando o
que foi votado pelos parlamentares. Um exemplo típico de pragmatismo político.
O calendário para a liberação das emendas, impositivas ou não, em ano eleitoral,
além de trazer problemas concretos de execução orçamentária - a imposição
ignoraria o fluxo de receitas para o caixa do Estado -, anularia um instrumento
importante de barganha com o parlamento, utilizado por todos os governos desde
a redemocratização.
A lei aprovada pelo Congresso estabelecia
condições vantajosas para a execução de emendas parlamentares, que atingiram um
recorde de R$ 49 bilhões. O governo vetou a definição de piso de 0,9% da
receita corrente líquida às emendas de comissões, criadas com dotações de R$
16,7 bilhões. O Congresso estabeleceu que o empenho (autorização de gasto) das
emendas individuais e de bancadas deveria ser feito após 30 dias depois de
listadas as propostas de destinação dos recursos, e o pagamento ser realizado
até 30 de junho.
Pela LDO, o pagamento das emendas teria
prioridade sobre a quitação das demais despesas discricionárias do Executivo.
Sua execução das emendas deveria seguir as indicações dos beneficiários e a
ordem de prioridade estabelecida pelos autores. As respostas do Executivo para
os vetos desse tema foram as mesmas: não há previsão constitucional para se
exigir cronograma obrigatório do Executivo, além de ferir sua primazia de
definir o cronograma financeiros dos desembolsos, previsto na Lei de
Responsabilidade Fiscal. Importante, o presidente Lula vetou a lista de 17
itens de despesas que ficariam livres de eventuais contingenciamentos.
Além disso, o Executivo bloqueou vários
canais pelos quais as verbas, de emendas ou não, sairiam das regras legais
orçamentárias. É o caso, por exemplo, do veto para que as emendas destinadas ao
Ministério de Educação pudessem ser alocadas para entidades privadas
filantrópicas ou confessionais, ou da obrigatoriedade de uso de 30% dos
recursos do Minha Casa Minha Vida em municípios com menos de 50 mil habitantes.
Um outro dispositivo abria espaço para obras com recursos orçamentários em
estradas municipais ou estaduais que não são responsabilidade da União.
Com apoio minoritário no Congresso, que
ganhou maior poder sobre o Orçamento, o governo comprou, com razão, uma briga
sobre a execução de emendas, e impediu que as recém-criadas de comissão
estabelecessem um mínimo de recursos para si, como tem as de bancada (1% da
Receita corrente líquida) e individuais (2% dessa receita). Com isso preservou
a atribuição de definir e executar no orçamento as prioridades nacionais para
as quais foi eleito, e evitou no que pôde a pulverização dos recursos em obras
paroquiais. Mas tentou algum apaziguamento visando a impedir a queda do veto ao
manter intacto o fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões, para o qual tinha proposto
pouco mais de R$ 930 milhões.
Essa verba extravagante para eleições
municipais, duas vezes e meia os R$ 2 bilhões consumidos no último pleito de
prefeitos e vereadores, é praticamente de livre uso das máquinas partidárias. O
PL terá a maior fatia dessas verbas e o PT, a segunda, talvez outro fator a
explicar sua manutenção do fundão. Ao primeiro, como ao Centrão, interessa
aumentar o número de prefeituras sob seu comando, de olho na expansão de suas
bancadas no Congresso em 2026. Ao PT interessa reconquistar centenas de
prefeituras perdidas desde 2016. A barganha pode interessar a todos os
partidos, já que o recorde de emendas está preservado.
O governo Lula manteve acordo proveitoso com
o Congresso de maioria conservadora. A união foi selada antes da posse,
mediante apoio do partido à reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira
(PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Em troca, recebeu R$ 169 bilhões
em gastos adicionais previstos na PEC da Transição. Esse apoio se desdobrou na
aprovação do novo regime fiscal, que prevê aumento real de despesas, em
substituição ao teto de gastos, que as proibia, e se estabeleceu um modus
vivendi de formação de maiorias caso a caso, projeto a projeto. A taxa de
sucesso das propostas do governo - razão entre projetos propostos e projetos
aprovados - não destoa da de seus antecessores, embora seja pálida comparada à
do primeiro governo Lula: 27% ante 60% segundo o Observatório do Legislativo
Brasileiro (Folha, 2 de janeiro).
A correlação de forças pode se tornar menos favorável ainda para o Executivo. PP, Republicanos e União Brasil, com 151 deputados e maiores bancadas nas duas Casas, voltaram a conversar sobre a criação de federação partidária (Globo, 31-12). Lira, o fiador de compromissos com o governo, deixará o comando da Câmara em 2025. Ainda que com derrotas no Congresso, o governo tem conseguido navegar razoavelmente bem, como indica a aprovação da reforma tributária. Na segunda metade do mandato, contudo, com a campanha da reeleição já em curso, o jogo político pode mudar.
O menor possível
Folha de S. Paulo
Mesmo com descrédito quanto ao déficit zero,
Lula precisa respaldar Haddad
Como se imaginava, Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) sancionou a
meta de déficit zero do Tesouro Nacional na Lei de Diretrizes Orçamentárias deste
2024. É igualmente de conhecimento público que a meta se afigura quase
impossível e continuará bombardeada pelo partido do presidente da República e
pela ala política do governo.
Previsibilidades à parte, a solução a ser
dada para o imbróglio tende a definir rumos da administração e da economia do
país.
A meta de equilíbrio entre receitas e
despesas federais, excluídos da conta os encargos com juros, é objeto de
descrédito geral. Isso se dá porque Brasília, em vez de conter a expansão dos
gastos, fez a opção de buscar uma arrecadação muito pouco realista.
O Orçamento deste ano põe no papel recursos
que somam R$ 2,192 trilhões, o que representa uma alta improvável de 14,8%
—10,5% acima da inflação— ante 2023.
Tamanha expansão da receita é difícil
política e economicamente, dado que a carga tributária brasileira já está no
topo do mundo emergente e se espera um período de desaceleração do PIB.
Analistas projetam valores consideravelmente
menores para os ingressos no caixa do Tesouro Nacional —em torno de R$ 2,077
trilhões, segundo pesquisa de dezembro do Ministério da Fazenda.
A se confirmar uma diferença de mais de R$
100 bilhões em relação à previsão oficial, o governo petista seria obrigado a
promover bloqueios massivos de despesas já no início do ano para tentar o
déficit zero ou ao menos reduzir o rombo para R$ 28,8 bilhões, o que estaria
dentro da margem de tolerância de 0,25% do PIB da regra fiscal.
Assim se entende a pressão do PT
sobre o ministro e correligionário Fernando Haddad, defensor isolado
do ajuste orçamentário. O partido quer mais desembolsos em ano eleitoral e crê
que desse modo haverá estímulo econômico.
Essa visão imediatista é de alto risco no
futuro próximo, ainda mais para um governo que já de início promoveu, com a
ajuda interesseira do Congresso, uma escalada imprudente de gastos.
Com mais déficit e dívida pública, os juros
permanecem elevados e tende a se retrair o investimento privado, sem o qual não
há crescimento duradouro do PIB.
Lula, que em pronunciamentos ainda rechaça de
modo demagógico a disciplina fiscal, deveria endossar a busca de seu ministro
pelo menor rombo possível neste ano. Seu governo deveria se submeter às
contrapartidas previstas na lei em caso de descumprimento da meta.
Para resultados mais sustentáveis, será
necessária a revisão de regras que hoje forçam o aumento de dispêndios
obrigatórios e sacrificam outras áreas do governo.
Menos juridiquês
Folha de S. Paulo
Ação do CNJ para simplificar linguagem do
direito pode ser mecanismo de inclusão
É bem-vinda a iniciativa do Conselho Nacional
de Justiça de lançar o
programa Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. A
ideia é estimular as instâncias da Justiça a desenvolver ações que visem
ampliar a inclusão por meio do uso de uma linguagem jurídica compreensível a
todos.
Um dos pré-requisitos da democracia é que as
comunicações entre os órgãos de Estado e os cidadãos sejam transparentes e
eficazes. Mas embora sempre seja possível transformar
o chamado juridiquês em um texto mais acessível para os leigos,
não é viável eliminar inteiramente o jargão dos autos.
Ainda que nossos operadores do direito venham
há séculos se esmerando em formalismos, beletrismos, latinórios e prolixidades
de utilidade e gosto discutíveis, jargões profissionais são comuns em todas as
áreas do conhecimento. Eles apresentam, de fato, um aspecto corporativista,
contudo suas funções não acabam aí.
Jargões existem também porque tornam as
comunicações entre os profissionais mais econômicas e precisas. Quando um
médico menciona um "infarto com supra" ou um advogado diz que vai
"interpor um agravo de instrumento", eles se referem a eventos
bastante específicos cuja descrição, em termos leigos, poderia demandar várias
linhas de texto, correndo ainda o risco de sacrificar a exatidão.
O desafio, portanto, é adequar a linguagem à
situação. Profissionais quando falam entre si podem e devem utilizar o jargão.
Quando a comunicação tem como destinatário o público leigo, entretanto, precisa
ser mais cuidadosa.
Um médico que não seja capaz de explicar um
diagnóstico ao paciente em linguagem que este, considerando sua capacidade
cognitiva e nível educacional, possa compreender não é um bom profissional.
No Judiciário, a cobrança costuma ser menor.
Mas magistrados, especialmente os que atuam em juizados especiais e na Justiça
do Trabalho, onde as partes podem em tese atuar sem advogados, deveriam ser
capazes de produzir despachos e sentenças que sejam compreendidos pelos
jurisdicionados, sob pena de fracassarem em sua missão principal.
O CNJ acerta ao tentar criar essa consciência. Advogados e membros dos Ministérios Públicos deveriam aderir ao programa. Se não por respeito aos cidadãos, ao menos por critérios estéticos —complicar um texto é a pior coisa que um escritor pode fazer à sua obra.
Uma confusão deplorável
O Estado de S. Paulo
Tarcísio erra ao dizer que câmeras nos
uniformes policiais são ineficientes na segurança do cidadão. Além de contrária
às evidências, a declaração presume que nem todos são cidadãos
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, informou, em entrevista à TV Globo, que não pretende investir mais nas câmeras nos uniformes policiais, porque, segundo ele, esses equipamentos não melhoram a “segurança do cidadão”. Em seguida, questionado pelo repórter a respeito da possibilidade de aumento da truculência policial como consequência da falta de câmeras nos uniformes, o que resultaria em insegurança para os cidadãos em geral, o governador disse que “o cidadão” está “mais preocupado” com o roubo de celulares e com sequestro relâmpago, entre outros crimes.
Com essas declarações, o governador paulista
faz uma deplorável confusão entre segurança pública e proteção contra o abuso
cometido por agentes do Estado em nome da segurança pública. Ora, as câmeras
não foram implementadas para melhorar a segurança, tarefa esta que é do
policiamento ostensivo e preventivo, feito com base em inteligência e
treinamento. O objetivo do programa de câmeras nos uniformes é o de documentar
a ação policial para eventual responsabilização dos agentes em caso de
violência excessiva, o que tende a inibir as ações truculentas.
Há um outro aspecto, ainda mais perturbador,
na resposta do governador. Segundo se depreende de seu discurso, aqueles que
padecem nas mãos de policiais violentos são cidadãos de segunda classe, que não
fazem jus nem aos direitos assegurados pela Constituição nem aos investimentos
do Estado na redução da violência policial.
No exótico trade-off proposto por Tarcísio de
Freitas, só haverá recursos para melhorar a segurança dos cidadãos
realocando-se o dinheiro hoje destinado ao programa que visa a assegurar que os
cidadãos tenham como se defender, na Justiça, de eventuais abusos policiais.
É lógico que governar é fazer escolhas, uma
vez que os recursos públicos são finitos, mas é espantosa a naturalidade com
que o governador Tarcísio de Freitas, que se apresenta como um gestor técnico,
tenha se permitido o raciocínio obscurantista, típico do bolsonarismo, de que o
sucesso das ações de segurança pública só será possível com o desinvestimento
no programa de câmeras nos uniformes policiais, como se um e outro fossem
excludentes.
Esse deveria ser um debate ocioso a esta
altura. Por todos os aspectos avaliados, as câmeras nos uniformes policiais
representam uma das políticas públicas mais eficientes implementadas nos
últimos anos na área de segurança pública. Seus dois grandes objetivos –
reduzir o abuso policial e produzir elementos de provas para os inquéritos
policiais e os processos penais – têm sido atestados em vários levantamentos. O
próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a eficiência dos equipamentos na
decisão, proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 635, que obrigou o uso das câmeras pela polícia do Rio de
Janeiro.
A mentalidade simplista exposta na fala do
governador de São Paulo ajuda a entender por que o Estado tem sido tão pouco
eficiente na prevenção e na repressão do crime. O poder público tem
reiteradamente se negado a ver o óbvio e a estudar os assuntos, preferindo
ações demagógicas e populistas de curto prazo.
Contrária às evidências e à Constituição, a
declaração de Tarcísio de Freitas é também incoerente com seu discurso
ideológico. Não faz nenhum sentido que um político pretensamente liberal
considere um desperdício investir na transparência da atuação estatal. A
saudável e civilizada desconfiança que o liberalismo nutre em relação ao poder
do Estado também se estende, por óbvio, ao poder da polícia. Não existe Estado
virtuoso, em nenhum âmbito, sem transparência e sem controle.
Num país violento como o Brasil, a polícia é
imprescindível. Todos os cidadãos, sem exceção, infelizmente precisam cada vez
mais dela. E as câmeras nos uniformes são um poderoso e eficaz instrumento para
que policiais continuem a ser policiais, atuando como policiais, e não como os
justiceiros pelos quais clamam aqueles que se consideram cidadãos de primeira
classe.
A vacina desafia o negacionismo
O Estado de S. Paulo
Números do Ministério da Saúde mostram crescimento de vacinas do calendário infantil em todo o Brasil, vitória ainda incompleta contra a onda negacionista que vimos na pandemia
Os anos críticos da pandemia de covid-19
deixaram no Brasil a triste marca dos 700 mil mortos pela doença e a trágica
cultura do negacionismo – aquela impulsionada por uma legião que não só se
recusava a seguir as recomendações da ciência, como difundia desinformação e
inverdades sobre supostos riscos e inutilidade das vacinas. Pelos números
revelados recentemente pelo Ministério da Saúde, o País pode estar, enfim,
revertendo a tendência negacionista que se proliferou nos últimos anos e abalou
os indicadores de vacinação.
Segundo o governo, oito tipos de vacinas
recomendadas no calendário infantil apresentaram aumento de procura entre
janeiro e outubro de 2023, comparado com o mesmo período de 2022.
Registraram crescimento os imunizantes contra
hepatite A, poliomielite, pneumocócica, meningocócica, DTP (difteria, tétano e
coqueluche) e tríplice viral 1.ª dose e 2.ª dose (sarampo, caxumba e rubéola).
Também houve aumento na cobertura da vacina contra a febre amarela. Em todas
elas, a alta ocorreu em todo o Brasil.
Ainda que os dados sejam preliminares,
trata-se de uma notícia auspiciosa. Ao apresentá-los, a ministra Nísia Trindade
evidentemente comemorou os resultados. Convém reconhecerlhe os méritos, tanto
dela quanto do presidente Lula da Silva: depois de anos de quedas sucessivas na
cobertura vacinal, o Ministério da Saúde lançou o Movimento Nacional pela
Vacinação, no qual se incluiu a adoção do microplanejamento, o repasse de
recursos para ações regionais nos Estados e municípios, e o programa Saúde com
Ciência, iniciativa interministerial voltada para a promoção e valorização da
ciência nas políticas públicas de saúde. O governo buscou ainda revigorar neste
primeiro ano o Programa Nacional de Imunizações, abalado pela gestão anterior.
Nada mal quando boa parte do País ainda se
recorda do rosário de queixas, ironias e negações do então presidente Jair
Bolsonaro diante das vacinas. Ao longo de quase dois anos de pandemia,
Bolsonaro se posicionou diversas vezes sobre o tema e se mostrou claramente
contrário à imunização. Numa delas, em janeiro de 2022, chegou a dizer que as
mortes de crianças pela covid-19 no Brasil não justificavam a vacinação, por
causa de seus “efeitos colaterais adversos”. Em outra, afirmou que o efeito da
vacina no público infantil seria uma “incógnita”. Não raro optou pelo deboche
diante do medo, das incertezas e até mesmo da busca acelerada pela vacina. “Se
você virar um jacaré, problema de você. Se você virar super-homem, se nascer
barba em alguma mulher ou algum homem começar a falar fino, eles (os
fabricantes de vacinas) não vão ter nada a ver com isso”, disse ele, em
dezembro de 2020, num dos momentos críticos.
O avanço é notável, mas a própria ministra da
Saúde reconheceu que ainda há um longo caminho a percorrer. Mesmo com o
aumento, as coberturas vacinais não alcançam, em nível nacional, a meta
preconizada pelo governo, de 95%. Alguns imunizantes chegam próximo a 80%;
outros ainda se aproximam da casa dos 70%. Mas sair da espiral descendente já é
motivo para alívio, sobretudo para um país que, até Bolsonaro, foi referência
internacional no controle de doenças imunopreveníveis. Afinal, é do Brasil um
dos maiores programas de vacinação do mundo, instituído na década de 1970,
reconhecido pela Organização Mundial da Saúde e razão da vitória contra algumas
doenças, incluindo a poliomielite.
Os novos dados são igualmente importantes
porque 2023 mostrou que, embora tenha mudado de patamar, a covid-19 veio para
ficar. Já não se trata de uma emergência de saúde pública, mas o vírus continua
circulando, causando mortes, alterando a circulação de outros vírus
respiratórios e provocando surtos fora de época. Uma suposta normalidade na
convivência com a doença e o espírito negacionista ainda deixam sequelas: em
junho do ano passado, somente 13% dos adultos haviam recebido o reforço com a
vacina bivalente; em dezembro, somente 17%, índice que é ainda mais baixo entre
crianças de até cinco anos de idade. Um tema, portanto, que ainda desafia
governos e famílias.
Futuro ameaçado
O Estado de S. Paulo
Persistência do número de nem-nem em uma
década mostra que descaso com os jovens é uma doença crônica do País
Serão muito limitadas, para não dizer nulas,
as chances de o Brasil experimentar os benefícios de um crescimento econômico
mais justo e sustentável num futuro não tão distante enquanto milhões de jovens
que compõem a chamada geração nem-nem, isto é, aqueles que não estudam nem
trabalham, continuarem a ser negligenciados pelo Estado.
Um estudo realizado a pedido do
Estadão/Broadcast pelo economista Paulo Tafner, diretor-presidente do Instituto
Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), projeta que essa desatenção aos
jovens de 25 a 29 anos que estão fora das salas de aula e do mercado de
trabalho pode implicar uma perda de até 10 pontos porcentuais no potencial de
crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do País nos próximos 30 anos.
Segundo o IBGE, em 2022 havia cerca de 10,9
milhões de brasileiros entre 15 e 29 anos (faixa etária usada pela instituição
para classificar os nem-nem) sem estudar nem trabalhar. Desse total, 36,45%
tinham entre 25 e 29 anos, vale dizer, tinham idade suficiente para, em
condições normais, assumir o custeio, no todo ou em parte, do domicílio em que
viviam. “Eles (os nem-nem) são numerosos e jovens”, disse Tafner ao Estadão.
“São pessoas que vão deixar de produzir por toda uma vida.”
O potencial de crescimento do PIB brasileiro
ao longo dos próximos 30 anos é de 40%, de acordo com a projeção do IMDS. Como
22% dos brasileiros na faixa etária entre 25 e 29 anos fazem parte do grupo dos
nem-nem, como aponta Tafner, o aumento da riqueza do País tende a ficar
limitado a 30% no período avaliado se nada for feito agora para reverter o
quadro de desalento entre esses jovens em idade produtiva.
A união entre Estado e sociedade para
resgatar a esperança de milhões de jovens que não encontram estímulo para
estudar ou trabalhar já seria, por si só, um imperativo moral, haja vista que
muitas das causas dessa mazela crônica do País decorrem de profundas injustiças
sociais. Mas, como indica o estudo do IMDS, reduzir expressivamente o número de
nemnem se impõe, também, como uma agenda pragmática. Afinal, quanto menos
cidadãos fora das escolas ou do mercado de trabalho, mais o País tem a ganhar
com o crescimento potencial de sua riqueza, o que, em tese, beneficiaria toda a
sociedade.
Esse diagnóstico, porém, malgrado sua
gritante obviedade, está longe de gerar consensos que se traduzam em políticas
públicas voltadas aos nem-nem. Entre os países analisados pela OCDE, o Brasil
segue estagnado há uma década entre os dez piores no porcentual de nem-nem
entre a população, ocupando a sétima posição nesse ranking ignóbil. Em 2012,
20% dos brasileiros entre 15 e 29 anos eram nem-nem; em 2022, o porcentual se
manteve inalterado.
O abandono desses jovens, evidentemente, perpassa governos de diferentes matizes políticos. Mas, sendo o presidente Lula da Silva um autodeclarado defensor dos interesses dos brasileiros mais vulneráveis, é sua obrigação olhar com atenção para esses números, que não só travam o crescimento nacional, como nos envergonham.
Exército retoma o comando dos CACs
Correio Braziliense
Entre 2018 e 2022, houve um crescimento exponencial do número de CACs, que passou de 117.467 para 673.818, superando o número de policiais militares na ativa em todo o país
O Exército voltou a emitir autorização para
novos clubes de Caçadores, Atiradores Esportivos e Colecionadores de Armas
(CACs). Após tomar posse, um dos primeiros atos assinados pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro do ano passado, foi um decreto
suspendendo a abertura de mais CACs e transporte de armas com munição por
civis. Era o começo da revisão da política de flexibilização do acesso a armas
de fogo e munição no país, inclusive aos artefatos até então restritos à
Polícia Federal e às Forças Armadas.
Até o ano passado, o licenciamento
de CACs estava com a Polícia Federal. Em dezembro último, a
responsabilidade retornou ao Exército. Para alguns analistas, foi uma
manifestação de confiança do presidente nos militares. Entre as mudanças
estabelecidas pelo Exército, destaca-se a redução do prazo de renovação da
licença do porte de armas, que passa de 10 para três anos. Os CACs em
funcionamento terão até 2026 (ano-limite) para obter nova licença de
funcionamento.
Entre 2018 e 2022, houve um crescimento
exponencial do número de CACs, que passou de 117.467 para 673.818 — número
superior ao de policiais militares na ativa em todo o país (406 mil) e ao de
militares das Forças Armadas (360 mil). O número de armas em circulação chegou
a mais de 1,5 milhão. Institutos, como Igarapé e Sou da Paz, estimam que,
considerando os acervos particulares, o total de artefatos bélicos em poder de
civis chega a 3 milhões. Durante 2022, período da corrida eleitoral, as taxas
de mortes violentas intencionais (MVIs) declinaram de 24 para cada 100 mil
habitantes em 2021, para 23,4 em igual universo populacional. Ou seja, passou
de 48.431 (2021) para 47.508, a maior queda desde 2011, o primeiro ano da série
histórica do Fórum Nacional de Segurança Pública (FNSP).
Em 2023, a tendência de queda do número de
MVIs se manteve. Entre janeiro e outubro, 34.156 pessoas foram mortas
intencionalmente — 3,8% menos do que em 2022, que registrou 35.487 vítimas,
segundo os dados oficiais. Mas não há garantia de que a redução seja
progressiva, à medida que novos clubes poderão ser instalados no país. Isso não
significa que colecionadores, caçadores e atiradores esportistas sejam
integrantes de grupos criminosos.
Mas há de se reconhecer que a flexibilização, anteriormente vigente, colaborou para que ocorressem fraudes. Pelo menos 25 clubes foram alvo de investigações. Armas compradas legalmente pelos integrantes foram desviadas e apreendidas em mãos de marginais de grupos criminosos. No ano passado, em média, foram registradas 126 ocorrências mensais de roubos e furtos de armas em CACs. Os fatos impõem ao Exército e aos demais órgãos de repressão ao crime uma vigilância constante e rigorosa, a fim de que os CACs não se tornem fontes alimentadoras da violência e do crime.
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