Valor Econômico
Restrição a paraísos fiscais e cobrança mais
por transparência nos fluxos financeiros transnacionais deve ser uma prioridade
política do G7 em 2024
As democracias em todo o mundo enfrentam duas
grandes ameaças: uma crise de legitimidade e regimes autoritários cada vez mais
agressivos. O que liga ambos e os tornam muito mais perigosos é o pernicioso
efeito das transferências de dinheiro sujo, especialmente aquelas que circulam
por meio de paraísos fiscais offshore e jurisdições com excessivo sigilo
financeiro. Restringir estes paraísos fiscais e exigir mais transparência nos
fluxos financeiros transfronteiriços deveria ser uma grande prioridade política
para todos os países do G7 em 2024.
A ameaça interna à democracia é uma erosão da
legitimidade. Nas economias industriais, como EUA e Europa, as novas
tecnologias, o aumento dos fluxos de capitais transfronteiriços e a redução das
barreiras ao comércio aumentaram a produtividade média e criaram o crescimento
econômico ao longo do último meio século, mas os benefícios desse crescimento
não foram amplamente compartilhados. A desigualdade nesses países aumentou
drasticamente desde meados da década de 1970, com milhões de pessoas
sentindo-se agora deixadas para trás.
O apoio à democracia está sendo minado pela crença de que o jogo econômico é “manipulado”, com as pessoas que já são poderosas e privilegiadas ganhando mais - por vezes às custas do resto. Embora essa crença possa ser exagerada, está de acordo com a realidade da evasão fiscal.
Os paraísos fiscais permitem que as pessoas
ricas não apenas construam a própria riqueza essencialmente isenta de impostos,
como também exerçam poder econômico e político longe de olhares indiscretos e
sem qualquer responsabilização. Uma lista de paraísos fiscais inclui entre os
dez principais Estados do Caribe, pequenos países amplamente respeitados, como
os territórios ultramarinos britânicos (Ilhas Virgens Britânicas, Bermudas e
Ilhas Cayman), Holanda, Suíça, Luxemburgo, Cingapura e os Emirados Árabes Unidos.
EUA e Reino Unido também são cúmplices. Suas
regras de sigilo financeiro permitem que uma extraordinária quantidade de
dinheiro estrangeiro (e ilícito) encontre abrigo (os EUA lideram esse Índice de
Sigilo Financeiro).
Engenharia financeira que permite evasão
fiscal alimenta crença de que jogo econômico é "manipulado" e
corrompe a democracia. Dinheiro sujo também fortalece regimes autoritários ao
facilitar apoio a candidatos e manipulação da opinião pública
Surgiu uma indústria multibilionária, que
emprega alguns dos advogados, contabilistas e consultores mais brilhantes do
mundo, focada em ajudar os ricos e os sem escrúpulos. Os paraísos fiscais são
particularmente úteis para pessoas que possuem riqueza ilícita derivada de
subornos, roubo e outras formas de corrupção. Ser capaz de ocultar a identidade
das partes em qualquer transação financeira é um requisito fundamental para
operar um refúgio bem-sucedido.
Esse formato de engenharia financeira
corrompe a democracia. Pior ainda, agrava a segunda grande ameaça que
enfrentamos: o fortalecimento dos regimes autoritários. O dinheiro sujo
offshore torna mais fácil apoiar candidatos, manipular a opinião pública e
persuadir pessoas a votarem em um ditador.
O dinheiro sujo dos oligarcas russos vem
sendo há muito tempo um dos pilares da economia e do sistema político do país.
As estreitas relações de Vladimir Putin com fontes de dinheiro obscuro foram
bem documentadas.
Menos amplamente apreciada é a forma como as
transações não transparentes permitiram à China construir um vasto império
global de influência. Só agora estamos enxergando quanto os países de baixa
renda, especialmente na África, devem a várias entidades apoiadas por Pequim.
Da mesma forma, o Partido Comunista teria supostamente “investido bilhões de
dólares” na desinformação global em todo o mundo. Isso inclui esforços
centrados nas recentes (e provavelmente futuras) eleições nos EUA.
Tornou-se também dolorosamente evidente que
uma grande quantidade de dinheiro flui do Irã para organizações como o Hamas, o
Hezbollah e os houthis no Iêmen que estão agora lançando mísseis contra navios
comerciais no Mar Vermelho. Quase todo esse financiamento iraniano passa
através de obscuros canais, incluindo (de acordo com autoridades dos EUA)
entidades na Turquia e no Iêmen.
Fechar esses canais seria difícil, mas a
forma mais eficaz de combater o dinheiro obscuro - e o seu financiamento do
autoritarismo, da criminalidade e do terrorismo - seria reprimir as dezenas de
paraísos fiscais que existem no mundo inteiro. Fazer isso fortaleceria a
arrecadação de impostos nas democracias e reduziria os recursos disponíveis
para regimes autoritários.
Ironicamente, vários desses paraísos fiscais
estão em risco devido às alterações climáticas e exigem assistência
internacional para lidar com a potencial subida do nível do mar e com
tempestades devastadoras. Se esses Estados insulares e outras jurisdições
desejarem participar de mecanismos de ajustes justos e razoáveis (como
financiamento climático ou perdão de dívida), financiados em parte pelo G7,
terão de cumprir com adicionais requisitos de transparência.
Um elemento-chave precisa ser uma extensão
das regras de “conheça seu cliente” a todas essas jurisdições, apoiada por
apropriadas sanções penais. Especificamente, é necessária uma completa
divulgação às autoridades fiscais do G7 sobre quem possui quais ativos e quem
faz quais pagamentos a quem.
Infelizmente, alguma evasão fiscal é legal,
devido unicamente ao poder de lobby dos ultra ricos e poderosos consultores e
contadores, que sem dúvida argumentarão que as empresas produtivas irão se
mudar para outros lugares se as oportunas brechas forem fechadas. Esta situação
deveria ser combatida com um princípio simples que deveria ser compartilhado
por todo o G7: os lucros das empresas são tributados proporcionalmente ao local
onde as vendas ocorrem.
Por exemplo, se você mudar sua sede (ou
propriedade intelectual) para outro país, ainda deverá pagar impostos nos EUA
com base em suas atividades comerciais nos EUA. O acordo do G7 sobre um imposto
mínimo global sobre as corporações foi um passo na direção certa nesse caso,
mas ainda há muito mais a se fazer.
Na era da inteligência artificial, deveríamos
esperar que muitos dos ricos se tornassem consideravelmente mais ricos.
Presumivelmente, também utilizarão ferramentas de IA para evitar impostos de
forma mais eficaz. Nos atuais acordos internacionais, isto será fácil de fazer.
No entanto, a IA também pode ajudar a descobrir a evasão e a fuga fiscais, bem
como fluxos de dinheiro incomuns, que muitas vezes são ilícitos.
Para os barões da tecnologia que falam
continuamente sobre a utilização da IA para o bem, eis aqui um desafio: apoiar
a rápida implementação de novas ferramentas baseadas em IA para reprimir a
evasão fiscal e os paraísos fiscais. (Tradução de Anna Maria Dalle Luche)
*Simon Johnson, ex-economista-chefe do Fundo
Monetário Internacional, é professor da Sloan School of Management do MIT e
coautor, com Daron Acemoglu do livro Power and Progress: Our Thousand-Year
Struggle Over Technology and Prosperity,
*Daron Acemoglu, professor do Instituto de
Economia do MIT. Copyright: Project Syndicate, 2024. www.project-syndicate.org
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