Folha de S. Paulo
Câmeras corporais aumentam segurança e
atrapalham corrupção institucional
"Qual a efetividade da câmera
corporal na segurança do cidadão? Nenhuma."
Tarcísio de
Freitas não é burro, nem cínico, nem charlatão. É apenas mais
um governador paulista, com dinheiro no banco, em tom tecnocrático, resumindo a
política de segurança pública brasileira: matar pobres, preferencialmente
pretos. E crianças por bala "perdida", código para
irresponsabilização do Estado gravado com sangue na cartilha retórica da
polícia.
Enquanto outros governadores falavam "quem não reagiu está vivo" e "a polícia vai atirar para matar", Tarcísio adota o idioma da efetividade. Só faltou revelar para qual fim. Câmeras corporais instaladas em uniformes policiais dificultam o projeto histórico de "efetividade" da letalidade.
Desde o "Programa Olho Vivo" para
adoção de câmeras corporais, a redução da letalidade policial tem sido da ordem
de 75%, segundo o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. A transparência faz a polícia
menos efetiva em matar, mais efetiva em prover segurança.
Difícil imaginar número tão superlativo em
qualquer política pública, em qualquer nível da federação, em período tão
curto, pela adoção de um simples dispositivo tecnológico. Além de diminuir
mortes, protege policiais corretos contra acusações de abuso e contribui na
investigação de crimes.
Essa política virtuosa começa a despencar
quando se deflagra, em julho de 2023, a "Operação Escudo" na Baixada
Santista. Desenhada para reagir à morte de um policial, a operação matou 30
civis, a mais mortal desde o massacre do
Carandiru. Subterfúgios foram invocados para não se utilizar
câmeras de forma adequada.
Investigações dos eventuais crimes, na melhor
tradição do autoritarismo brasileiro, dispõem dos depoimentos dos próprios
policiais. Quando muito, dos testemunhos amedrontados, sob ameaça de morte, de
familiares de vítimas.
O Instituto Sou da Paz mostrou que, em três
meses da Operação Escudo, o estado de São Paulo registrou aumento de 41%
da letalidade
policial, comparado a 2022. Foram 153 mortes registradas em 92
dias. Tarcísio desconversa sobre a efetividade das câmeras para proteção de
vidas.
A Defensoria Pública ajuizou ação civil
pública para exigir uso de câmeras em operações desse tipo.
O juiz Renato Augusto Maia acolheu o pedido.
O governo recorreu ao TJ-SP. O
presidente do tribunal, Ricardo Anafe, numa canetada de "suspensão de
segurança" (dispositivo pré-constitucional do autoritarismo
magistocrático), derrubou a decisão. Seu argumento papagueou a alegação
orçamentária do governo, segundo o qual a adoção de câmeras exigiria gasto
excessivo e não previsto.
Nas palavras de Anafe: "À luz das razões
de ordem e economia públicas, ostenta periculum in mora inverso de densidade
manifestamente superior àquela".
Se você não entendeu o palavrório desse
português estrangeiro, não se preocupe. Ele não é feito para o entendimento,
mas para o ofuscamento. Ele não argumenta, apenas grita. Não explica o cálculo
do "manifestamente superior", apenas afirma de dedo em riste. Não
desconfia da alegação orçamentária, apenas dá uma piscadela. Sequer pergunta se
a aquisição de novas câmeras era necessária para a operação.
Análise orçamentária da Plataforma Justa
indica que não há escassez de recursos para investimento em câmeras, mas
escolha consciente e disfarçada por política contra transparência.
Em 2022, o valor empenhado para câmeras foi
de R$ 69 milhões, 0,47% do orçamento das polícias. Só em "créditos
adicionais", o orçamento policial recebeu R$ 885 milhões. Em
"publicidade institucional", foram gastos R$ 104 milhões.
Segundo o governo de
Tarcísio, o "Programa Olho Vivo" teria sido
incorporado pelo "Programa Muralha Paulista", mas não especifica que
lugar câmeras corporais terão nessa política.
A linguagem da história toda se destaca pela
cruel literalidade. O TJ "suspende
a segurança" do programa "olho vivo" que, depois da operação
"escudo", é incorporado pela operação "muralha".
Muralhas e escudos têm sido historicamente
interpostos para suspender qualquer segurança de comunidades vulneráveis.
E por que polícias resistem a mecanismos de
transparência que não afetam sua capacidade operacional? Responder essa
pergunta é a grande encruzilhada da política de segurança pública no Brasil.
*Professor de direito constitucional da USP,
é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
2 comentários:
Perfeito! Tarcísio é o melhor exemplo do tecnocrata bolsonarista. O editorial de O Globo de hoje abrindo este blog também critica corretamente a total INCOERÊNCIA do governador paulista, que tenta IGNORAR os DADOS disponíveis e substituí-los pela ideologia bolsonarista de facilitar o descontrole das forças de segurança, tanto ampliando a população armada quanto ampliando a violência policial desnecessária e/ou criminosa.
Uma pena!
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