O Globo
Vivemos o que parece ser o epílogo do
presidencialismo de coalizão — tal como cunhado pelo cientista político Sergio
Abranches—, que perdeu a eficácia e a funcionalidade
Se o Congresso levar adiante a ameaça de
derrubar o veto do presidente Lula ao calendário de liberação de emendas
parlamentares, estará dado o passo, talvez definitivo, para a ruptura
institucional que se vislumbra há algum tempo no tenso relacionamento entre
Executivo e Legislativo. As emendas, que serviram como instrumento do Executivo
para controlar os acordos no Congresso, mormente no primeiro governo de
Fernando Henrique Cardoso, agora tornam-se a arma do Legislativo para retirar
de seu antigo controlador o poder que lhe resta de ditar os rumos do governo,
até administrativos.
Seria uma decisão claramente inconstitucional, que impediria o Executivo de gerenciar o Orçamento no que é possível ainda controlar, já que as emendas hoje são impositivas e o pagamento seria compulsório de acordo com os interesses dos parlamentares, e não os da administração pública. Se o impasse for rompido por uma negociação que mantenha o veto, mas garanta a liberação da verba ainda no primeiro semestre, como querem os parlamentares, teremos superado um obstáculo, mas nada indica que estará superada a crise de relacionamento, pois os parlamentares querem ter controle sobre o próprio orçamento, que não necessariamente corresponde ao projeto político do governo em exercício.
Sem a obrigatoriedade de liberação em datas
predeterminadas, restará ainda ao governo a possibilidade de negociar a
distribuição dos recursos a seu tempo ou interesse, e é isso que os
parlamentares não querem. Se o Supremo Tribunal Federal (STF) for chamado a
dirimir a disputa, estará colocado mais um elemento desestabilizador na relação
Congresso-Executivo, o que pode dar à eventual crise institucional um tom mais
elevado.
Vivemos, portanto, o que parece ser o epílogo
do presidencialismo de coalizão — tal como cunhado pelo cientista político
Sergio Abranches—, que perdeu a eficácia e a funcionalidade. Na análise do
ex-secretário-geral do PSDB Marcus Pestana, tal coalizão só deu certo no
governo Fernando Henrique porque a base da governabilidade era formada por
apenas três partidos (PSDB, PMDB e PFL). A pulverização e a dispersão
parlamentar começaram posteriormente, e deu no mensalão, petrolão, e no
“bonapartismo de confronto” no início de 2019. “Depois disso, veio esse
parlamentarismo manco”, diz ele.
Pestana chama a atenção para o fato de o
presidencialismo não exigir dos parlamentares a responsabilidade por seus atos,
ao contrário do parlamentarismo ou do semipresidencialismo, em que há, segundo
ele, “uma convivência dialética entre poderes e responsabilidades”.
O poder crescente do Parlamento sobre o
Orçamento e a agenda legislativa não é acompanhado de uma responsabilidade
inequívoca pela governabilidade, ressalta Pestana. Ele cita a experiência de
Portugal, onde, diante de um impasse grave que põe em risco a governabilidade,
o presidente dissolve o Parlamento e convoca novas eleições.
—Foi assim na crise do Orçamento no final de
2021, que dinamitou a geringonça portuguesa; e agora em 2023, com as denúncias
de corrupção envolvendo o governo do Partido Socialista (PS).
Aqui não. O presidente tem de negociar a
governabilidade a conta-gotas no varejo, projeto a projeto, sem nenhum
instrumento contra impasses. Há quem veja nessa disputa de poder a
possibilidade de o Executivo recuperar sua força de atração caso a economia
continue se expandindo, fazendo com que os parlamentares procurem abrigo sob
sua popularidade, como nos velhos tempos. Mas nada indica que as eleições
vindouras serão marcadas por rasgos de efusividade governista.
A máquina do Centrão — que controla as emendas e quer agora controlar o fluxo de distribuição de acordo com seus interesses eleitorais — já tem verba suficiente para independer do Executivo. Os vereadores e prefeitos eleitos neste ano formarão a base do que sairá das urnas em 2026, por isso o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, exige que o PT pense no futuro pós-Lula.
Um comentário:
Verdade.
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