O Estado de S. Paulo
A falta de planejamento, que já se pode classificar como um problema antigo do País, combina-se agora com o uso descarado dos espaços fiscais pelo Legislativo
Sob uma ótica relativamente moderna, o
processo orçamentário deve orientar-se por resultados, e não pela disputa por
recursos e carimbos. Contudo, a ausência de planejamento tem levado à
privatização do Orçamento público, guiada por interesses cada vez menos
associados ao desenvolvimento econômico integrado da Nação. Nem os programas
orçamentários são avaliados e melhorados nem o espaço discricionário é usado
adequadamente.
Uma análise da proposta orçamentária da União para 2024 pode ser útil. A Lei Orçamentária Anual ainda não havia sido sancionada até o envio desta coluna para os editores. Por isso, trabalho com as informações do relatório exarado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso.
Nele, constata-se despesas totais de R$ 5,4
trilhões para 2024. Desse montante, R$ 2,7 trilhões são gastos financeiros,
incluindo os pagamentos de juros e o refinanciamento da dívida pública
vincenda. A saber, na presença de déficit, o governo precisa recorrer ao
mercado para financiá-lo e, ainda, precisa substituir os títulos públicos que
estão para vencer. Essas despesas têm de ser previstas em orçamento. Deixar de
pagar juros ou honrar os valores dos títulos na data do vencimento equivaleria
a dar o calote. Não é uma opção.
Dos R$ 2,7 trilhões restantes, as despesas de
Assistência, Trabalho e Previdência Social e os precatórios somam R$ 1,45
trilhão. Os orçamentos da Saúde e da Educação totalizam R$ 370 bilhões,
enquanto a Defesa Nacional, as Relações Exteriores e a Segurança Pública ocupam
cerca de R$ 100 bilhões. As transferências para Estados e municípios e os
recursos aportados pela União no Fundeb, além de outros encargos especiais,
circundam os R$ 600 bilhões. As funções ligadas à atividade legislativa e
judiciária somam algo como R$ 65 bilhões. Outros R$ 70 bilhões destinam-se à
Agricultura, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia e Transportes. O restante,
cerca de R$ 85 bilhões, distribui-se em todas as outras funções do gasto
(Cultura, Urbanismo, Habitação, Saneamento, Energia, Esportes, Administração,
Comunicações e outras).
Esses primeiros grandes números mostram que,
excluído o já comentado custo da dívida pública, o gasto federal concentra-se
nas despesas previdenciárias, nos programas sociais e nas transferências para
os entes subnacionais (R$ 2,1 trilhões). As despesas com a folha salarial, por
sua vez, que estão contabilizadas nos dados anteriores dentro de cada função do
gasto, estão previstas em cerca de R$ 400 bilhões na proposta orçamentária de
2024, quando somadas.
Podemos agregar esse montante às despesas
enumeradas no último parágrafo, totalizando R$ 2,5 trilhões, e comparar o
resultado ao total de R$ 2,7 trilhões. Essa diferença, de cerca de R$ 200
bilhões, é um cálculo inicial para a margem de manobra ou o grau de
flexibilidade do Orçamento. O problema é que esse montante ainda precisará
dividir-se entre: emendas parlamentares, custeio da máquina pública,
investimentos e um adicional com Saúde e Educação, para fins de cumprimento dos
valores mínimos constitucionais. A bem da verdade, a Saúde exerce uma pressão
maior, neste momento.
O montante destinado às emendas
parlamentares, após as inovações da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO),
ficou ainda mais alto. Juntas, as emendas individuais, de bancada estadual e de
comissão já se aproximam de 4% da receita corrente líquida ou algo como R$ 53
bilhões. O Executivo só pode cortar esse valor se cortar as outras despesas
discricionárias na mesma proporção. O Executivo vetou o adicional para as
emendas de comissão; a ver se o Congresso não derrubará o veto. Mesmo que parte
das emendas vá para a Saúde, colaborando para o cumprimento do mínimo
constitucional, o espaço fiscal é bastante exíguo. Calculamos, na Warren
Investimentos, que a máquina pública requer pelo menos R$ 90 bilhões para não
haver paralisação de serviços essenciais (o chamado shutdown).
A elevada rigidez orçamentária tornou-se
praticamente impeditiva com o avanço do Parlamento sobre a já raquítica porção
de gastos discricionários. As emendas, como se sabe, tendem a pulverizar os
recursos públicos, em prejuízo das obras de infraestrutura. A saída foi
oferecer aos deputados e senadores a alternativa de abrigar suas emendas sob o
guarda-chuva do PAC, com um carimbo específico no Orçamento (mais um). Não vai
funcionar. Já se tentou no passado. É como desmontar o quebra-cabeça, espalhar
todas as peças pela Praça da Sé e, depois, sair recolhendo uma a uma.
A falta de planejamento, que já se pode
classificar como um problema antigo do Brasil, combina-se agora com o uso
descarado dos espaços fiscais, pelo Legislativo, como se este, e não o
Executivo, devesse governar. Essa inversão é extremamente preocupante e precisa
ser freada o quanto antes.
As transferências especiais, chamadas
“emendas Pix”, com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 105/2019, têm
permitido a destinação dos recursos orçamentários diretamente aos municípios,
sem o devido controle. Agora, por meio da LDO, tentou-se obrigar o Executivo a
priorizar o gasto de outra parcela das emendas.
A Presidência reagiu e vetou o desvario. Mas
é pouco. O processo precisa ser interrompido e, em seguida, revertido, antes
que não reste pedra sobre pedra do espírito do legislador constituinte na
matéria orçamentária.
*Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos,
foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e o
primeiro diretor executivo da IFI (2016-2022).
Nenhum comentário:
Postar um comentário