quinta-feira, 28 de março de 2024

Yuen Ang* - Países ricos também são corruptos

Valor Econômico

Metade dos contratos do governo para fornecimento médico durante a pandemia no Reino Unido foram para empresas geridas por amigos de políticos

“Em uma sociedade cada vez mais orientada para o desempenho, as métricas são importantes. O que medimos afeta o que fazemos”, argumentou o relatório de 2008 da Comissão sobre a Mensuração do Desempenho Econômico. “Se tivermos as métricas erradas, nos esforçaremos pelas coisas erra das.” A comissão desafiava a primazia do PIB como métrica do desenvolvimento. Mas a mesma observação aplica-se à corrupção, que é convencionalmente - e de forma enganosa - medida como um problema unidimensional.

Os índices globais de corrupção, incluindo o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), da Transparência Internacional, e o Índice de Controle da Corrupção, do Banco Mundial, atribuem uma pontuação única aos países. Estas métricas mostram consistentemente que os países ricos são “muito honestos”, enquanto os países pobres são “altamente corruptos”. Por exemplo, o IPC de 2023 classifica o Reino Unido (pontuação 71) como o 20º país menos corrupto do mundo, muito mais honesto que a China (42) e o Brasil (36). A maioria dos utilizadores do IPC, incluindo imprensa, empresas e analistas, interpretam estes números como um fato.

Mas serão os países mais ricos realmente menos corruptos que os mais pobres? Métricas unidimensionais como o IPC obscurecem o fato de que variedades qualitativamente diferentes de corrupção não podem ser reduzidas a uma única pontuação. Estas métricas também subestimam sistematicamente aquilo que chamo de “corrupção dos ricos” - que tende a ser legalizada, institucionalizada e ambiguamente antiética - em oposição à “corrupção dos pobres”.

Nos países pobres, a corrupção assume formas claramente ilegais, como o roubo de recursos públicos e a aceitação de propinas. Nos países ricos, pelo contrário, muitos acreditam que o problema não existe mais. Em “The Quest for Good Governance”, Alina Mungui-Pippidi conclui até que as economias avançadas tenham atingido um estado final de “universalismo ético”, no qual “a igualdade de tratamento se aplica a todos”. Em suma, o Ocidente rico é honesto.

Mas em virtude da ascensão do populismo nas democracias de renda alta, em grande parte uma reação contra as vantagens descomunais desfrutadas pelos ricos e politicamente ligados, o “universalismo ético” parece mais ilusório do que real. Como revelou o “New York Times” em 2020, metade dos contratos governamentais do Reino Unido para fornecimentos médicos durante a pandemia foram para “empresas geridas por amigos e associados de políticos” por meio de uma “via VIP” especial.

Como, então, o IPC classificou o Reino Unido como o 20º país menos corrupto? A pontuação não se baseia em pesquisas realizadas internamente pela Transparência Internacional, mas em uma combinação de vários inquéritos de terceiros. Quase todos esses vêm de organizações ocidentais, como a Economist Intelligence Unit, e tem uma forte tendência de depender das respostas dos executivo empresariais ocidentais.

Além disso, a formulação dessas pesquisas é muitas vezes vaga. Por exemplo, o Anuário Mundial de Competitividade, uma das fontes do IPC, apresenta aos executivos empresariais uma grosseira escolha binária: “Suborno e corrupção: existem ou não existem”. Não admira que o IPC mostre que os países ricos são “muito honestos” ano após ano, mesmo quando os seus cidadãos comuns discordam.

Reconhecendo que não havia alternativas a essas métricas convencionais, apesar das inúmeras críticas (inclusive do próprio criador do IPC), testei o Índice de Corrupção Desagrupado (ICD). Assim como o IPC, o ICD é uma métrica de corrupção baseada em percepções apresentadas em pesquisas. No entanto, divide a corrupção em quatro variedades: pequenos furtos (extorsão por agentes de rua), grandes roubos (desvio por parte de políticos), dinheiro rápido (pequenos subornos para superar obstáculos burocráticos ou assédio) e acesso ao dinheiro (grandes recompensas em troca de exclusivos e lucrativos privilégios, como contratos e resgates financeiros).

Métricas unidimensionais subestimam sistematicamente a “corrupção dos ricos”, que tende a ser legalizada, institucionalizada e ambiguamente antiética, em oposição à “corrupção dos pobres”

Embora as três primeiras variedades de corrupção - as endêmicas nos países pobres - sejam descaradamente ilegais e diretamente prejudiciais, o acesso ao dinheiro pode ser ilegal (como no caso do suborno) ou permissível (como no caso do financiamento de campanhas). Métodos sofisticados de aquisição de privilégios podem envolver instituições inteiras em que nenhum indivíduo é corrupto. Por exemplo, a lavagem de dinheiro, para a qual Londres é um centro conhecido, pode envolver a movimentação de fundos sem problemas através das fronteiras e de instituições financeiras respeitadas. Nos EUA, os bancos gastaram coletivamente bilhões de dólares fazendo lobby por regulamentações frouxas, o que levou à crise financeira de 2008, mas apenas um banqueiro foi indiciado.

O ICD utiliza uma pesquisa original de especialistas para avaliar todos os quatro tipos de corrupção. Uma esclarecedora comparação é entre EUA e China. Os EUA são menos corruptos do que a China em geral, mas a diferença é menor na categoria de acesso ao dinheiro, o tipo de corrupção dominante em ambos os países. Notadamente, a pontuação dos EUA em termos de acesso ao dinheiro é mais elevada do que a de países de rendimento mais baixo. Se nos baseássemos apenas em pontuações agrupadas, concluiríamos que os EUA são honestos. Mas uma vez desagregadas, podemos explicar o apelo das promessas populistas de “drenar o pântano”.

Ainda mais interessante é que prevalecem diferentes formas de acesso ao dinheiro nos EUA e na China. Numa comparação baseada na aceitação de subornos por meio das redes pessoais de políticos, a China domina claramente. No entanto, quando recorremos às práticas de “portas giratórias” e à captura regulamentar através de lobby, os EUA lideram.

Em suma, o acesso ao dinheiro nos EUA é principalmente institucional, enquanto o problema na China ainda está enredado em relações pessoais que envolvem suborno e pilhas de dinheiro escondido. A China não é necessariamente mais corrupta do que os EUA, mas sua corrupção tem certamente uma qualidade diferente.

Mensurar mal a corrupção não é mero detalhe técnico. Fundamentalmente, reforça a mensagem ilusória, hipócrita e muitas vezes eurocêntrica de que os países de renda elevada alcançaram um estado duradouro de pureza ética. Na realidade, a corrupção evoluiu à medida que os países enriqueceram, tornando-se mais sofisticada e imperceptível.

Precisamos continuar combatendo a “corrupção dos pobres”. Mas, ao desagregar a corrupção, as democracias capitalistas também podem voltar sua atenção urgentemente necessária para alguns dos seus problemas mais prementes, incluindo o aumento da desigualdade, o declínio da confiança pública no governo, e o que a administradora da USAID, Samantha Power, chama de “corrupção moderna”. Superar esses desafios exige medi-los com precisão, em vez de fingir que não existem. (Tradução de Anna Maria Dalle Luche)

*Yuen Yuen Ang, professora de Economia Política na Universidade Johns Hopkins, é autora de How China Escaped the Poverty Trap (2016) e China's Gilded Age (2020).

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente o texto. Parabéns à autora e ao blog que divulgou seu trabalho! Uma visão mais ampla da corrupção é necessária, especialmente no Brasil, onde muitos tenta esquecer ou ocultar a gigantesca corrupção dos governos FHC, onde não havia efetiva ação do MPF, desmontado por FHC e comandado pelo inesquecível ENGAVETADOR GERAL DA REPÚBLICA. FHC desmontou tb a Polícia Federal, as Universidades e vários outros setores públicos, que foram RECONSTRUÍDOS nos governos Lula, onde a corrupção permaneceu e talvez tenha se diversificado. Só pra lembrar, o mensalão foi uma extensão do processo inaugurado pelo PSDB de MG.
Noutros países, a visão míope sobre corrupção, mostrada pela autora, tb cria uma imagem incorreta, ou ao menos incompleta, do que realmente ocorre nos países e da ampla ocorrência dela nos setores empresariais, pouco captada ou discutida em geral.