Valor Econômico
O escritor paulista foi educado na tradição
conservadora brasileira, a mesma que concebeu e viabilizou a abolição da
escravatura em 1888
Manifestações preconceituosas contra a obra e
a pessoa de Monteiro Lobato mostram que o grande escritor se tornou bode
expiatório da ignorância brasileira e das frustrações sociais que por meio dela
se expressam.
Em matéria minuciosa em “Opera Mundi”, Duda
Blumer narra debate ocorrido na Unicamp há poucas semanas, no Instituto de
Estudos da Linguagem, sobre a pergunta “O IEL deve cancelar Lobato?”.
Esclareceu o diretor da instituição, professor Alan Pinheiro da Silva, que se tratava de “provocação” para suscitar uma troca de ideias em torno das implicações de um incidente lá ocorrido. Um setor do IEL, o Cedae abriga uma rica coleção de obras de arte e textos de autoria de Lobato, que lhe foram doados pela família do autor. Numa exposição dessas obras alguém rabiscara por cima do pôster: “Racista”.
Lobato foi artista plástico, sua primeira
opção, antes daquela de ser advogado por imposição do avô, fazendeiro de café.
Conformado, mas não vencido, ele continuou a pintar, autor de uma coleção de
belas aquarelas e de pinturas.
É impossível ler o Monteiro Lobato dos livros
sem ver o Monteiro Lobato das obras de arte. Nelas, eu prestaria atenção nas
porteiras, lugar de referência do saci-pererê, um ente de demarcações
simbólicas, de origem indígena, enegrecido no século XVIII com a difusão da
escravidão africana em São Paulo, segundo o antropólogo Renato Queiroz. Chutar
ideologicamente é fácil, difícil é pesquisar cientificamente um tema como esse.
No mundo do conhecimento, quem chuta é apenas instrumento da ignorância
estrutural, que é a nossa.
A acusação de racista contra o escritor
paulista não é de agora. O próprio governo federal de certa época, patrono de
edições de seus livros e distribuição nas escolas, aceitou que havia racismo na
obra de Lobato. Os críticos oscilaram entre acrescentar aos livros um texto
explicando a obra do autor em relação ao tema e a própria reescrita dos trechos
controversos. Em qualquer caso, um desrespeito.
Dúvidas sobre o modo de mutilar a obra
lobatiana e cercear o que é nela um modo de pensar e de expressar a realidade
social, indicam a verdadeira questão, no que Antonio Candido define como
necessidade expressional da sociedade de uma época. O problema não é a obra
literária de Monteiro Lobato, mas a insuficiência intelectual de leitores
intolerantes. Não é racismo do autor, mas preconceito de leitor.
A cultura cotidiana brasileira é
historicamente preconceituosa e intolerante. As objeções ao que Lobato escreveu
vêm do atraso social que ele desafia. Vêm de nossa ignorância estrutural e não
de um racismo estrutural.
O debate da Unicamp é do maior interesse, na
medida em que expôs um sensato discernimento de participantes, ainda que em
contraponto com manifestações de bloqueios para compreensão das determinações
sociais que dão sentido às ideias de uma época.
Lobato nunca foi racista. Foi educado na
tradição conservadora brasileira, a mesma que concebeu e viabilizou a abolição
da escravatura em 1888. Mesmo em suas obras de arte é notória a referência ao
primado explicativo da concepção conservadora de ordem. O que já ficara
evidente no artigo sobre a exposição das pinturas de Anita Malfatti, de 1917,
na dúvida que expressou; “paranoia ou mistificação?”. No fundo, uma definição
romântica de arte para dizer o que o artista gostaria que o mundo fosse, de
perfeição, e a recusa daquilo que o mundo é: incoerência, irracionalidade,
desordem, incerteza.
Os dilemas de Lobato nos dizem que ele era
uma dupla pessoa. Nas pinturas, expressa-se o Lobato romântico, nas
caricaturas, o Lobato crítico e realista. Na literatura infantil, o Lobato da
crua realidade em que os seres humanos se definem pelo que era o Brasil da
época. Submetida, porém, ao juízo crítico da criança e ao discernimento de sua
inteligência para reconhecer que Tia Nastácia personificava as contradições do
Brasil de então. Não para que os adultos desconhecedores das minúcias críticas
da escrita decidam o que o autor tem o direito de dizer. Mas o que a criança
leitora, sensível, tem o direito de compreender. A matéria-prima de Lobato não
é o racismo dos intolerantes, mas a sensibilidade crítica da lucidez infantil.
Tia Nastácia existiu. Ela e o marido, pretos
ambos, trabalharam para Lobato em Areias (SP), quando ele foi ali promotor.
Casado com Purezinha, quando retornaram a Taubaté, levou-os consigo,
contratados para continuar a seu serviço. Ela, grande contadora de histórias da
cultura da roça, para ser babá de seu filho. Os pretos e os personagens de
Lobato inventados por essa mulher sábia, que não era racista. Ele por ela usado
para narrar conceitos e preconceitos do imaginário da vítima.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre
outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora
Unesp, São Paulo, 2023).
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