Folha de S. Paulo
Sob pressão, Brasil aplicou ao longo do tempo
vários dos instrumentos do arsenal da justiça de transição
A recusa do governo federal de promover eventos pelo 60º
aniversário do golpe de 1964 tem provocado um debate que gera antes calor do
que luz. Gesto de pacificação dirigido aos militares, a interdição foi considerada um desastre que debilitaria a democracia
brasileira. Impedir atos que avivem a memória de como começou o que viriam a
ser 21 anos de ditadura seria uma chance perdida de rever o passado, uma
evidência a mais da frouxidão com o que o Brasil de Brasília teria aplicado a
chamada justiça de transição.
Ela diz respeito ao modo como nações que se democratizaram confrontaram o
regime autoritário anterior com diferentes instrumentos: julgamentos de líderes
autoritários e anistia —que não deixa de ser uma forma de reconhecer os crimes
dos anos de chumbo—, comissões da verdade, expurgos de servidores da ordem
anterior e reparações a suas vítimas, além de gestos simbólicos como a
construção de memoriais ou novas designações de vias públicas.
Sobre o tema, existe hoje rica literatura
internacional que permite situar a experiência brasileira em um quadro mais
amplo. Textos de variadas embocaduras demonstraram que os países seguiram
diferentes trajetos: desde aqueles que colocaram um ponto final de pedra sobre
o que passou até os que esgotaram o repertório de medidas, implementadas em
diversas sequências. Revela também como pode ser longo e tortuoso o processo de
ajustar contas com o passado.
Na comparação, o Brasil está longe de ter-se
saído mal. Sob pressão das organizações de defesa dos direitos humanos, o país
aplicou ao longo do tempo vários dos instrumentos do arsenal da justiça de
transição. Mesmo a anistia geral de 1979, que impediu o julgamento de
responsáveis por delitos durante a ditadura, não foi uma peculiaridade
nacional. Julgamentos ocorreram só nos casos em que houve colapso do
autoritarismo. E muitas vezes foram seguidos de anistia.
Embora o reconhecimento das violências
perpetradas e a reparação dos sofrimentos impostos às vítimas seja inescapável
exigência ética, não está escrito nas estrelas que a justiça de transição deva
ter efeitos significativos para o respeito aos direitos humanos ou para a
solidez da democracia. Ambos dependem mais do que se faça para garanti-los.
Aqui e agora, tais direitos estarão amparados
se o governo do presidente Lula for capaz de erigir uma política de segurança
eficiente contra o crime e respeitosa da dignidade das pessoas. E a democracia
estará bem protegida se os civis e militares que planejaram o golpe em 2023 e
os que autorizaram e financiaram o 8 de janeiro forem submetidos à Justiça.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Um comentário:
Verdade.
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