Folha de S. Paulo
Contra negacionistas da ditadura, Chile
construiu seu Museu da Memória
Michelle Bachelet se atreveu. Primeira mulher
presidente da República na história do Chile, foi
aconselhada a não "remoer a história" para não "dividir a
sociedade" nem praticar "revanchismo". Mas decidiu construir
um Museu de Memória e Direitos Humanos, inaugurado em 2010,
três anos antes do aniversário de 40 anos do golpe militar.
Criticada por não apresentar "visão
equilibrada" do passado, por não ser justa com "os dois lados" e
esconder o "contexto" do
golpe militar de Augusto Pinochet, Bachelet enfrentou negacionistas da
ditadura e entregou não só um monumento de reparação coletiva por atrocidades
contra a vida, mas um motor de educação democrática. Permitiu não só lembrar de
tragédia histórica, mas praticar o compromisso de não repeti-la.
Em 11 de setembro de 1973, Pinochet decretou estado de sítio por "comoção interna". O dispositivo jurídico de fachada estava previsto na Constituição de 1925, artigo 72. Alegava necessidade de "prevenir e sancionar rigorosamente e com a maior celeridade os delitos que atentam contra a segurança interna".
Em 2022, militares herdeiros de 64 e
Bolsonaro planejaram usar do mesmo dispositivo para prender Alexandre
de Moraes e anular eleições. Argumentaram estar "previsto na
Constituição" (artigos 136 e 142). Fracassaram no ato, no argumento e no
cinismo. Em 64, o golpe militar brasileiro foi menos dissimulado e usou de
"ato institucional" sem tergiversar nem dormir na embaixada da Hungria.
A ditadura militar chilena matou mais de 30
mil cidadãos. Encarcerou em centros clandestinos, perseguiu, torturou e fez
desaparecer. Produziu mais de 200 mil exilados.
Quem visita o museu gratuito lê registros de
fatos diversos: a violência sexual contra mulheres detidas, 229 grávidas,
outras tantas engravidadas por estupro militar; as práticas de fuzilamento em
que alguns feridos jogados ao rio conseguiram sobreviver; as
crianças capturadas e assassinadas; o artesanato produzido no cárcere;
os cursos de ciências sociais "purificados de toda influência
perniciosa"; os livros queimados; a centralidade das mulheres na
recomposição do tecido social.
Cidadãos, estudantes e crianças chilenas
podem participar de debates, cursos e eventos culturais no edifício grandioso
do museu. E se deparam com perguntas como "o que herdamos da
ditadura?" e "o que acontece se nos esquecermos?"
Bachelet declarou: "Nunca deixa de me
surpreender a atitude dos que reagem negativamente a algo tão essencial:
preservar a memória de um país particular quando parte dessa memória produziu
tanta dor e se espera que não se passe nunca mais. Justamente porque não
queremos reviver a dor, é tão essencial conhecer. E conhecer de uma maneira
gráfica, não só pelo que outros contam. Encontrar fotografias, filmes, artigos,
pessoas, com caras que reflitam o que lhes passou. O museu traz uma mensagem
permanente de como devemos cuidar da vida de nossos cidadãos".
Ao cidadão brasileiro foi negada essa
oportunidade educativa. Aos 60 anos do
golpe, não só carecemos de um projeto de museu de memória, tolerância e
direitos humanos. O governo federal está proibido de lembrar do golpe, afaga a
instituição militar visceralmente envolvida numa nova tentativa de golpe e se
vê metido em esforços para mensurar e prevenir a irritação de generais.
Lula nos
avisa por seus porta-vozes que prefere "pacificar" as relações com
militares. Entre a memória e o esquecimento, o idealismo e o pragmatismo, o
meramente simbólico e o material, acredita optar pelo lado direito da equação.
O lado esquerdo seria uma bobagem a ofuscar o que importa.
Acredita fazer concessão em nome de outras
prioridades, como redução da pobreza, combate à fome e geração de emprego. E
não percebe que inclusive isso, a possibilidade de vida digna do trabalhador,
preto e pobre, depende da neutralização do militar que continua a poder lhe dar
tiros. Na pior das hipóteses, o Superior
Tribunal Militar absolve o atirador com base em sua "legítima
defesa".
E assim Lula entrega o mínimo do mínimo, sem
pedir nada em troca. Nem o fim da aposentadoria das filhas, nem
responsabilidade orçamentária, nem subordinação à autoridade civil, nem coisa
alguma. Um jogo de soma zero ("winner takes all", ou "milico
takes all").
Bachelet manda um recado, citando poema de
Gonzalo Rojas ("El espejo"): "Só se aprende aprende aprende, a
partir dos próprios próprios erros".
*Professor de direito constitucional da USP,
é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade – SBPC.
Um comentário:
Lula agradando a extrema-direita.
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