domingo, 2 de junho de 2024

A era liberal em risco

O Estado de S. Paulo

Países líderes estão mais intervencionistas

Alerta Sem um quadro institucional para a cooperação, será mais difícil lidar com os desafios do século 21

Na berlinda Organizações multilaterais estão cada vez mais acuadas e não conseguem responder às atuais demandas mundiais

À primeira vista, a economia mundial parece ser de uma resiliência tranquilizadora. Os Estados Unidos cresceram mesmo com a escalada da guerra comercial com a China. A Alemanha resistiu à perda do fornecimento de gás russo sem sofrer um desastre econômico. A guerra no Oriente Médio não trouxe nenhum choque petrolífero. Os rebeldes Houthi, que disparam mísseis, mal afetaram o fluxo global de mercadorias. Em porcentagem do PIB mundial, o comércio se recuperou da pandemia e se prevê que cresça de forma saudável neste ano.

Mas, olhando mais profundamente, vemos a fragilidade. Durante anos, a ordem que governou a economia global desde a Segunda Guerra Mundial foi corroída. Hoje, está perto do colapso. Um número preocupante de fatores precipitantes poderá desencadear uma descida à anarquia, onde quem pode, manda, e a guerra é mais uma vez o recurso das grandes potências. Mesmo que nunca chegue a haver conflito, o efeito na economia de uma quebra das normas poderá ser rápido e brutal.

Enquanto escrevemos, a desintegração da velha ordem é visível em todo o lado. Sanções são aplicadas quatro vezes mais do que na década de 1990; os EUA impuseram recentemente sanções “secundárias” a entidades que apoiam os exércitos da Rússia. Está

em curso uma guerra de subsídios, conforme os países procuram copiar o vasto apoio estatal da China e dos EUA à manufatura sustentável. Embora o dólar continue a ser dominante e as economias emergentes sejam mais resilientes, os fluxos de capitais globais estão começando a se fragmentar, como explicou relatório especial da Economist.

ESTAGNAÇÃO. As instituições que salvaguardaram o antigo sistema já estão extintas ou estão perdendo rapidamente a credibilidade. A Organização Mundial do Comércio (OMC) completa 30 anos no próximo ano, mas terá passado mais de cinco anos estagnada, por causa da negligência americana. O Fundo Monetário Internacional (FMI) está assolado por uma crise de identidade, preso entre uma pauta ecológica e a garantia da estabilidade financeira. O conselho de segurança da ONU está paralisado. E, como informou a Economist, os tribunais supranacionais como a Corte Internacional de Justiça são cada vez mais usados como armas pelas partes em conflito. No mês passado, políticos americanos, incluindo Mitch McConnell, líder dos republicanos no Senado, ameaçaram o Tribunal Penal Internacional com sanções se este emitisse mandados de prisão contra os líderes de Israel – que também é acusado de genocídio pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça.

Até agora, a fragmentação e a decadência impuseram uma taxa oculta à economia global: perceptível, mas apenas se soubermos onde procurá-la. Infelizmente, a história mostra que colapsos mais profundos e caóticos são possíveis – e podem ocorrer subitamente assim que o declínio se instalar. A Primeira Guerra Mundial acabou com uma era dourada da globalização, que muitos na época presumiam que duraria para sempre. No início da década de 1930, após o início da Depressão e das tarifas SmootHawley, as importações americanas caíram 40% em apenas dois anos. Em agosto de 1971, Richard Nixon suspendeu inesperadamente a convertibilidade dos dólares em ouro; apenas 19 meses depois, o sistema de taxas de câmbio fixas de Bretton Woods ruiu.

Hoje, uma ruptura semelhante parece fácil demais de se imaginar. O regresso de Donald Trump à Casa Branca, com a sua visão de mundo de soma zero, manteria a erosão das instituições e das normas. O receio de uma segunda onda de importações chinesas baratas poderá acelerála. Uma guerra aberta entre os EUA e a China por causa de Taiwan, ou entre o Ocidente e a Rússia, poderia causar um grande colapso geral.

PERSPECTIVAS. Em muitos desses cenários, a perda será mais profunda do que muitas pessoas pensam. Está na moda criticar a globalização desenfreada como a causa da desigualdade, da crise financeira global e da negligência em relação ao clima. Mas as conquistas das décadas de 1990 e 2000 – o ponto alto do capitalismo liberal – são incomparáveis na história. Centenas de milhões escaparam da pobreza na China à medida que esta se integrava à economia global. A taxa de mortalidade infantil em todo o mundo é menos da metade do que era em 1990. A porcentagem da população global morta por conflitos travados entre Estados atingiu o mínimo do pós-guerra de 0,0002%, em 2005; em 1972, era quase 40 vezes maior. Pesquisas mais recentes mostram que a era do Consenso de Washington, que os líderes de hoje esperam substituir, foi aquela em que os países pobres começaram a desfrutar de um crescimento e recuperação, diminuindo o abismo em relação ao mundo rico.

O declínio do sistema ameaça retardar esse progresso, ou mesmo revertê-lo. Uma vez quebrado, é pouco provável que seja substituído por novas regras. Em vez disso, os assuntos mundiais recrudescerão ao seu estado natural de anarquia, que favorece o banditismo e a violência. Sem confiança e sem um quadro institucional para a cooperação, será mais difícil para os países lidarem com os desafios do século 21, desde a contenção de uma corrida armamentista na inteligência artificial até a colaboração no espaço. Os problemas serão resolvidos por clubes de países com ideias semelhantes. Isso pode funcionar, mas envolverá mais frequentemente coerção e ressentimento, como aconteceu com as tarifas fronteiriças de carbono da Europa ou com a rivalidade entre a China e o FMI. Quando a cooperação dá lugar à queda de braço, os países têm menos motivos para manter a paz.

Aos olhos do Partido Comunista Chinês, de Vladimir Putin ou de outros cínicos, um sistema em que manda quem pode não seria novidade. Eles veem a ordem do liberalismo não como uma promulgação de ideais elevados, mas como um exercício do poder bruto americano – poder que está agora em relativo declínio.

GRADUAL E, ENTÃO, SÚBITO. É verdade que o sistema estabelecido após a Segunda Guerra Mundial conseguiu um casamento entre os princípios internacionalistas dos EUA e os seus interesses estratégicos. No entanto, a ordem do liberalismo também trouxe enormes benefícios para o restante do mundo. Muitos dos pobres do mundo já sofrem com a incapacidade do FMI para resolver a crise da dívida soberana que se seguiu à pandemia de covid-19. Os países de rendimento médio, como a Índia e a Indonésia, que esperam encontrar seu caminho para a riqueza por meio do comércio, estão explorando as oportunidades criadas pela fragmentação da velha ordem, mas, em última análise, dependerão de que a economia global se mantenha integrada e previsível. E a prosperidade de grande parte do mundo desenvolvido, especialmente das economias pequenas e abertas, como a do Reino Unido e da Coreia do Sul, depende totalmente do comércio.

Apoiada pelo forte crescimento nos EUA, pode parecer que a economia mundial é capaz de sobreviver a qualquer coisa que for atirada contra ela, mas não pode.

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