O Estado de S. Paulo
Países líderes estão mais intervencionistas
Alerta Sem um quadro institucional para a cooperação, será mais difícil lidar com os desafios do século 21
Na berlinda Organizações multilaterais estão
cada vez mais acuadas e não conseguem responder às atuais demandas mundiais
À primeira vista, a economia mundial parece
ser de uma resiliência tranquilizadora. Os Estados Unidos cresceram mesmo com a
escalada da guerra comercial com a China. A Alemanha resistiu à perda do
fornecimento de gás russo sem sofrer um desastre econômico. A guerra no Oriente
Médio não trouxe nenhum choque petrolífero. Os rebeldes Houthi, que disparam
mísseis, mal afetaram o fluxo global de mercadorias. Em porcentagem do PIB
mundial, o comércio se recuperou da pandemia e se prevê que cresça de forma
saudável neste ano.
Mas, olhando mais profundamente, vemos a fragilidade. Durante anos, a ordem que governou a economia global desde a Segunda Guerra Mundial foi corroída. Hoje, está perto do colapso. Um número preocupante de fatores precipitantes poderá desencadear uma descida à anarquia, onde quem pode, manda, e a guerra é mais uma vez o recurso das grandes potências. Mesmo que nunca chegue a haver conflito, o efeito na economia de uma quebra das normas poderá ser rápido e brutal.
Enquanto escrevemos, a desintegração da velha
ordem é visível em todo o lado. Sanções são aplicadas quatro vezes mais do que
na década de 1990; os EUA impuseram recentemente sanções “secundárias” a
entidades que apoiam os exércitos da Rússia. Está
em curso uma guerra de subsídios, conforme os
países procuram copiar o vasto apoio estatal da China e dos EUA à manufatura
sustentável. Embora o dólar continue a ser dominante e as economias emergentes
sejam mais resilientes, os fluxos de capitais globais estão começando a se
fragmentar, como explicou relatório especial da Economist.
ESTAGNAÇÃO. As instituições que
salvaguardaram o antigo sistema já estão extintas ou estão perdendo rapidamente
a credibilidade. A Organização Mundial do Comércio (OMC) completa 30 anos no
próximo ano, mas terá passado mais de cinco anos estagnada, por causa da
negligência americana. O Fundo Monetário Internacional (FMI) está assolado por
uma crise de identidade, preso entre uma pauta ecológica e a garantia da
estabilidade financeira. O conselho de segurança da ONU está paralisado. E,
como informou a Economist, os tribunais supranacionais como a Corte
Internacional de Justiça são cada vez mais usados como armas pelas partes em
conflito. No mês passado, políticos americanos, incluindo Mitch McConnell,
líder dos republicanos no Senado, ameaçaram o Tribunal Penal Internacional com
sanções se este emitisse mandados de prisão contra os líderes de Israel – que
também é acusado de genocídio pela África do Sul na Corte Internacional de
Justiça.
Até agora, a fragmentação e a decadência
impuseram uma taxa oculta à economia global: perceptível, mas apenas se
soubermos onde procurá-la. Infelizmente, a história mostra que colapsos mais
profundos e caóticos são possíveis – e podem ocorrer subitamente assim que o
declínio se instalar. A Primeira Guerra Mundial acabou com uma era dourada da
globalização, que muitos na época presumiam que duraria para sempre. No início
da década de 1930, após o início da Depressão e das tarifas SmootHawley, as
importações americanas caíram 40% em apenas dois anos. Em agosto de 1971,
Richard Nixon suspendeu inesperadamente a convertibilidade dos dólares em ouro;
apenas 19 meses depois, o sistema de taxas de câmbio fixas de Bretton Woods
ruiu.
Hoje, uma ruptura semelhante parece fácil
demais de se imaginar. O regresso de Donald Trump à Casa Branca, com a sua
visão de mundo de soma zero, manteria a erosão das instituições e das normas. O
receio de uma segunda onda de importações chinesas baratas poderá acelerála.
Uma guerra aberta entre os EUA e a China por causa de Taiwan, ou entre o
Ocidente e a Rússia, poderia causar um grande colapso geral.
PERSPECTIVAS. Em muitos desses cenários, a perda será mais profunda do que muitas pessoas pensam. Está na moda criticar a globalização desenfreada como a causa da desigualdade, da crise financeira global e da negligência em relação ao clima. Mas as conquistas das décadas de 1990 e 2000 – o ponto alto do capitalismo liberal – são incomparáveis na história. Centenas de milhões escaparam da pobreza na China à medida que esta se integrava à economia global. A taxa de mortalidade infantil em todo o mundo é menos da metade do que era em 1990. A porcentagem da população global morta por conflitos travados entre Estados atingiu o mínimo do pós-guerra de 0,0002%, em 2005; em 1972, era quase 40 vezes maior. Pesquisas mais recentes mostram que a era do Consenso de Washington, que os líderes de hoje esperam substituir, foi aquela em que os países pobres começaram a desfrutar de um crescimento e recuperação, diminuindo o abismo em relação ao mundo rico.
O declínio do sistema ameaça retardar esse
progresso, ou mesmo revertê-lo. Uma vez quebrado, é pouco provável que seja
substituído por novas regras. Em vez disso, os assuntos mundiais recrudescerão
ao seu estado natural de anarquia, que favorece o banditismo e a violência. Sem
confiança e sem um quadro institucional para a cooperação, será mais difícil
para os países lidarem com os desafios do século 21, desde a contenção de uma
corrida armamentista na inteligência artificial até a colaboração no espaço. Os
problemas serão resolvidos por clubes de países com ideias semelhantes. Isso
pode funcionar, mas envolverá mais frequentemente coerção e ressentimento, como
aconteceu com as tarifas fronteiriças de carbono da Europa ou com a rivalidade
entre a China e o FMI. Quando a cooperação dá lugar à queda de braço, os países
têm menos motivos para manter a paz.
Aos olhos do Partido Comunista Chinês, de
Vladimir Putin ou de outros cínicos, um sistema em que manda quem pode não
seria novidade. Eles veem a ordem do liberalismo não como uma promulgação de
ideais elevados, mas como um exercício do poder bruto americano – poder que
está agora em relativo declínio.
GRADUAL E, ENTÃO, SÚBITO. É verdade que o
sistema estabelecido após a Segunda Guerra Mundial conseguiu um casamento entre
os princípios internacionalistas dos EUA e os seus interesses estratégicos. No
entanto, a ordem do liberalismo também trouxe enormes benefícios para o
restante do mundo. Muitos dos pobres do mundo já sofrem com a incapacidade do
FMI para resolver a crise da dívida soberana que se seguiu à pandemia de
covid-19. Os países de rendimento médio, como a Índia e a Indonésia, que
esperam encontrar seu caminho para a riqueza por meio do comércio, estão
explorando as oportunidades criadas pela fragmentação da velha ordem, mas, em
última análise, dependerão de que a economia global se mantenha integrada e
previsível. E a prosperidade de grande parte do mundo desenvolvido,
especialmente das economias pequenas e abertas, como a do Reino Unido e da
Coreia do Sul, depende totalmente do comércio.
Apoiada pelo forte crescimento nos EUA, pode parecer que a economia mundial é capaz de sobreviver a qualquer coisa que for atirada contra ela, mas não pode.
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