domingo, 2 de junho de 2024

Bernardo Mello Franco – A busca de Norita

O Globo

Dona de casa virou ativista após desaparecimento do filho, vítima da ditadura argentina

Gustavo saiu cedo de casa, como fazia todos os dias, e não voltou mais. Tinha 24 anos, mulher e filho pequeno. “Ele foi sequestrado em 15 de abril de 1977”, repetia sua mãe, Nora Cortiñas. “Muitos anos depois, ficamos sabendo que o pegaram na estação Castelar, onde esperava o trem para o trabalho.”

Na manhã seguinte, ela começou uma peregrinação por igrejas, delegacias, tribunais. Desesperada, abandonou a vida doméstica e se juntou a outras mulheres que desafiavam a ditadura argentina em busca de seus filhos. Assim nascia o movimento das Mães da Praça de Maio.

“No primeiro dia, éramos poucas e estávamos tomadas pelo medo e pela angústia. Enquanto buscávamos o paradeiro de nossos filhos, íamos encontrando mulheres e homens na mesma situação”, relembrou, tempos depois. “O que nos unia não eram opiniões políticas nem crenças religiosas. Eram a tragédia e a busca incansável.”

No início, as mães se concentravam diante da Casa Rosada. Quando o movimento ganhou corpo, a polícia resolveu proibir as reuniões. “Diziam que o país estava sob estado de sítio, por isso não podíamos ficar ali paradas. Então começamos a caminhar”, contou Norita, em depoimento à Biblioteca Nacional. A caminhada em círculos, no centro da praça, virou marca das madres. O ritual se repete até hoje, todas as quintas-feiras.

“Por muitos anos, as pessoas passavam pela praça e não olhavam para nós. Era como se fôssemos invisíveis”, recordou Norita. “Ninguém se aproximava para perguntar o que estávamos fazendo ali. Isso é mais um produto do terrorismo de Estado: o medo.”

Apesar das ameaças, as mães amarraram seus lenços brancos e foram à luta. O sequestro da fundadora Azucena Villaflor, torturada e arrastada pelos militares para um “voo da morte”, não desmobilizou o grupo. Norita foi escalada para levar as denúncias ao exterior. Viajou do Japão ao Saara Ocidental, do Curdistão ao Haiti. Nos últimos anos, passou a empilhar títulos de doutora honoris causa em direitos humanos.

Nada mais inesperado para uma mulher nascida em 1930 num lar conservador da classe média portenha. “Quando era pequena, sonhava com princesas, em levar meus filhos ao carrossel. Não era uma revolucionária como hoje”, brincava. “Meu marido era um homem patriarcal. Queria que eu me dedicasse à vida familiar”. Impedida de trabalhar fora, ela recebia moças em casa para dar aulas de costura. “Vivia tudo naturalmente, como meus pais haviam ensinado”, contava.

O desaparecimento de Gustavo, que militava na Juventude Peronista e atuava no trabalho de base em favelas, fez a mãe despertar para a política. “Perder um filho é sempre uma tragédia. Mas você precisa enfrentá-la para não ficar presa no labirinto e poder ajudar quem está na mesma situação. A solidão não é uma boa receita para quem quer saber a verdade”, dizia.

Quando as madres se dividiram, na década de 1980, ela liderou a dissidência Linha Fundadora, que defendia a independência crítica diante de todos os governos. “Nossa reivindicação não agrada a muitos políticos, à Igreja, aos militares e aos que têm histórico de cumplicidades”, justificava. Nos últimos meses, sua indignação se voltou contra Javier Milei, presidente de ultradireita que relativiza os crimes da ditadura argentina.

Apesar da persistência, Norita nunca conseguiu saber onde, como e quando o filho foi morto. Incansável, ela militou até os 94 anos. Morreu na quinta-feira, dia de caminhada na Praça de Maio.

 

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