domingo, 2 de junho de 2024

Dorrit Hazarim - A conta chegou

O Globo

Ninguém estava realmente preparado para o acachapante veredito da condenação do ex-presidente

A decisão foi histórica, e suas ramificações imediatas. Até porque ninguém estava realmente preparado para o acachapante veredito — nem o país, talvez nem os procuradores ou o juiz, certamente não o réu sentado no Tribunal Criminal de Manhattan. Por 34 vezes seguidas Donald Trump teve de ouvir o martelo monocórdio do tribunal de júri: “guilty”, “guilty”, “guilty”..., que em inglês soa ainda mais gélido e cortante que o “culpado” do nosso vernáculo. Estão postos, portanto, o ineditismo e a rebordosa do caso. Pela primeira vez na História americana, um ex-presidente (e inevitável candidato republicano à Casa Branca) acrescenta “criminoso” a seu currículo. E por um motivo que, de início, parecia apenas mais um dentre tantos escândalos da vida amoral do condenado: falsificação de registros contábeis para encobrir pagamentos à atriz pornô Stormy Daniels, com quem ele é acusado de ter mantido relação sexual. Os pagamentos em troca do silêncio da atriz ocorreram às vésperas da eleição presidencial de 2016 em que ele derrotou a democrata Hillary Clinton.

Pedidos de recurso por parte da defesa já estão em elaboração, é claro, visando a adiar até depois da eleição de novembro próximo o cumprimento da pena que caberá a Trump. Ela será anunciada somente no dia 11 de julho, exatamente duas semanas depois da realização do primeiro debate entre Trump e o presidente Joe Biden, agendado para 27 de junho. O debate entre o ocupante da Casa Branca criticamente impopular e o criminoso recém-condenado deverá inaugurar essa disputa presidencial vergonhosa e inglória, porém decisiva para o sistema democrático. Será a grande chance de Biden contrapor civilidade a vilania. Tomara que não a desperdice.

Assim como Trump construiu a carreira de magnata à base de tortuosas fraudes fiscais, pelas quais foi condenado a pagar US$ 1,6 bilhão em 2023, também sua carreira política sempre foi alavancada pela sabotagem a céu aberto de dois pilares essenciais a qualquer democracia — o sistema eleitoral e a Justiça criminal do país. A conta chegou, ou pelo menos começa a chegar. Dentro de um mês e meio o condenado saberá que pena deverá cumprir. Por ora, só especulações de amplo espectro — desde uma mera multa financeira até 20 anos de prisão no sórdido presídio Rikers Island, de Nova York; talvez liberdade condicional, com ou sem tornozeleira? Xadrez só nos fins de semana? O leque é vasto.

A julgar pela índole compulsiva e imatura do condenado, é possível que ele prefira vestir a camisa de “prisioneiro político” por alguns dias à humilhação de exercer trabalhos comunitários num sopão para desabrigados ou zelando pela limpeza do Central Park. Isso em Nova York, cidade de cuja elite nunca conseguiu se aproximar, cuja população tem orgulho de desprezá-lo — a cidade onde fincou seu império e onde desejava ser coroado.

— Posso me postar no meio da Quinta Avenida, atirar em alguém e, mesmo assim, não perco um único voto — gabou-se num comício em 2016.

Elegeu-se.

Desta vez, apesar de visivelmente abatido e incensado ao sair do tribunal com 34 condenações no topete, Trump desafiou:

— O verdadeiro veredito sairá no dia 5 de novembro, dado pelo povo.

A Constituição americana lhe dá razão por não proibir que um condenado criminal dispute a Presidência da prisão, nem que seja eleito e se torne comandante em chefe da nação. Para os founding fathers, a decisão deveria ser deixada em mãos do eleitor.

Se depender do Partido Republicano, Donald J. Trump será reeleito. (Ainda bem que não depende.) Por duas vezes, em 2019 e 2021, os senadores do partido rejeitaram em bloco os pedidos de impeachment do então ocupante da Casa Branca. Pela lei americana, teria sido a única forma de garantir sua inelegibilidade permanente, para qualquer cargo público. Não só não o fizeram, como permanecem umbilicalmente amarrados ao puxador de votos mais desqualificado e perigoso dos tempos modernos — há outros igualmente perigosos, mas não simultaneamente despreparados.

— Donald Trump é uma pessoa doente — resume sua sobrinha, a feroz escritora Mary L. Trump. — Ele nunca se tornará alguém melhor, só vai piorar. E, se precisar arrastar o país inteiro com ele para atender a seus propósitos, ele vai arrastar. Votem com cuidado — adverte.

Primeira a apontar a monumental insegurança do tio, Mary descreveu em livro o medo que consome o personagem. Não seria tanto o medo de perder a riqueza, poder ou status, mas algo mais pessoal: o medo de ser visto como um loser, um perdedor. No tribunal de Manhattan, ele foi reduzido a loser por 12 cidadãos nova-iorquinos. Haverá revanche.

 

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