A maior e mais intensa circulação do tema
não garante que ele será tratado em sua complexidade. Pode ser perfeitamente
absorvido como tópico da polarização extrema que predomina no ambiente
político. O caminho mais curto para isso é reformular a pergunta e passar-se a
discutir o que fará a extrema-direita ou - ainda mais simplificadamente – quem
Bolsonaro apoiará na sucessão de Lula. Questões simétricas às que circulam a
respeito do outro lado, desde que o atual governo começou: se esse é um governo
de coalizão ou se o lulo-petismo é que manda; quem Lula apoiará, em 2026, ou
depois.
No mundo simplificado das redes digitais, perguntas
tais e quais parecem confirmar o diagnóstico recente, feito pelo presidente, de
que a política brasileira se resume hoje à disputa pessoal entre ele e Bolsonaro.
Fora desse enquadramento seria ocioso e mesmo bobo falar em esquerda, centro e
direita, ou em situação e oposição. Lula é a esquerda, Bolsonaro, a direita. Já
o centro, é um ninguém. Quem apoia o governo é lulista, quem faz oposição, bolsonarista
e quem não se alinha, oportunista ou ingênuo.
Uma interpretação menos tosca e mais realista do cenário no qual direita, esquerda e centro, o governo e oposições atuam vê o governo presidencialista no Brasil resultando de diversas interações do presidente. De um lado, com os governados (eleitores), relação mediada por um conjunto de formadores de opinião atuantes nas múltiplas e distintas esferas da sociedade civil e por formuladores e operadores de estratégias de comunicação política. De outro lado, com uma complexa teia institucional.
Componente decisivo da teia institucional é
o sistema de governo. Compõem-no atores que o presidente comanda (ministros e demais
auxiliares de confiança); outro poder também governante (o Legislativo) com
legitimidade eleitoral e comando político-administrativo próprios, onde atuam
partidos, lideranças e bancadas; poderes federativos, em que certos governadores
são atores nacionalmente relevantes.
Além do sistema de governo (e com ele se
relacionando) há, na teia, instituições e atores estatais que o presidente deve
comandar (burocracia, civil e militar) e outro poder independente, a cuja
cúpula (o STF), a Constituição atribui prerrogativas de natureza política,
embora não governamentais. O STF é mediador, supervisor e, por vezes, árbitro
da relação entre o presidente e a Constituição, mãe da teia institucional da
qual a tradição e a cultura políticas são as avós. Daí a relação do presidente
com a Carta não ser - ou não deve ser - contingencial e política, mas
reverencial e imperativa.
Para observar a oposição a um governo cujo
principal titular é assim limitado, é preciso reconhecer que também se projetam
sobre ela as implicações da comunicação mediada com o eleitorado e com a
sociedade civil, assim como as implicações da teia institucional de estado e
governo. Nenhuma oposição pode se tornar relevante e competitiva a ponto de
almejar, com chance de êxito, a ocupação do governo e efetivamente governar, se
não interagir de modo efetivo com essas duas ordens de condicionamentos.
Hoje, no Brasil, grosso modo, quem diz
oposição, diz direita. Mas com lentes mais precisas e faro mais fino pode-se
ver que nem toda atitude de oposição ao governo é de direita e que nem toda a
direita tem atitude de oposição. Pouparei o texto e os leitores de exemplos,
pois essas exceções são notórias e tão numerosas que desafiam a regra de que
oposição e direita se confundem. Tomemos, em vez disso, o caso do governador
paulista, Tarcísio de Freitas, que exemplifica a regra, não a exceção. Seu indiscutível
perfil de político de direita não o torna, porém, menos alvo de simplificações
enganosas.
De modo geral é admitido que o governador paulista
tem perfil e conduta distintos dos de Bolsonaro, de quem foi ministro, já
incluído, nas análises de então, entre os auxiliares “racionais” do chefe
extremista. Esse juízo resulta de análise por vários ângulos. O principal é a maior
consistência da visão pro-mercado de Tarcísio em economia. Por conseguinte, projeções
sobre o que seria um eventual governo seu conferem-lhe maior confiabilidade, junto
a empresários em geral e a economistas ultraliberais, do que os solavancos e
sobressaltos provocados pelo dueto encenado por Bolsonaro e Paulo Guedes. A
demonstração e teste de sua disposição ostensiva de corresponder às
expectativas dos agentes econômicos mais relevantes é facilitada pelo bastidor
e vitrine que é o cargo que ocupa à frente do estado detentor do PIB mais
relevante do país. A essa condição junta-se a reputação de bom gestor, um dos
inúmeros quesitos cruciais em que Bolsonaro é caso indiscutível de reprovação.
Outro ângulo de observação é o tipo de jogo
político-institucional jogado pelo governador de São Paulo. O figurino de
opositor firme, moderado e civilizado do presidente cai bem não só num estado
cuja classe média conservadora é profundamente antilulista e cuja elite
econômica tem muito o que perder para se aventurar a queimar navios numa aposta
em polarização extrema. A nível nacional
também tem sua utilidade, pela heterogeneidade dos interesses sociais e
regionais em jogo. A condição de paulista, por um lado, facilita, pela sensação
de poder que transmite, mas traz dificuldades pela imagem de São Paulo como estado
desequilibrador da federação. A reputação de moderado pode compensar, se
comparada não só com a de Bolsonaro, que não é paulista, mas com a de João
Dória, por exemplo.
Se consideradas as balizas constitucionais,
o contraste com Bolsonaro também se dá, porque o político Tarcísio de Freitas
comporta-se como direitista conservador, não como reacionário disruptivo. Ainda
não passou pelo teste do exercício tentador do poder nacional e do manejo de
seus recursos, mas do lugar onde já pode ser observado atua, de modo geral,
dentro do que consensualmente se aceita como limites da Constituição, sem se
pautar por quatro linhas imaginárias das quais seja o próprio criador.
As
convergências dar-se-iam mais em pautas e posições conservadoras na segurança
pública e nos costumes, nas quais se esfuma a moderação política do governador
numa tentativa do pré-candidato de tornar-se popular por vias analogamente
percorridas por Bolsonaro. O conservador e o reacionário fundem-se aí e fazem as
camadas progressista e liberal da sociedade civil e do eleitorado temerem, com
razão, pelo destino dos direitos civis e humanos num eventual governo seu,
ainda mais sendo o Brasil um país onde, historicamente, esses direitos são
parca e tardiamente considerados pelas instituições e mais precariamente ainda
pela cultura política predominante no estado e na sociedade. Como, talvez, um
atenuante, pode se considerar que o agir do governador paulista no campo da
segurança pública não inclui simpatia por discurso e métodos milicianos. E que,
no caso das pautas conservadoras e mesmo reacionárias, em costumes, sua adesão é
mais racionalizada, de caráter político-eleitoral e não a paixão pela sopa
ideológica fundamentalista do bolsonarismo.
Em que pese se admitir as distinções
atitudinais, que comportam até alguns contrastes, não tarda a comparecer a
muitas análises a conjectura de que a exibição dessas distinções seja mera
encenação de uma espécie de “briga de branco”, simulada para dissimular uma
identificação comum e polar básica, entre Tarcísio e Bolsonaro, o que, por sua
vez, justificaria considerar o primeiro como um bolsonarista.
É outra a mensagem que fatos em processo
vêm passando. A hipótese de uma candidatura de Michelle Bolsonaro vem sendo
alimentada sem qualquer inocência. Chegou a produzir pelo menos um evento
público marcante, no Rio de Janeiro. Metaforicamente, nem que seja por esporte
e para não se perder a piada, é possível distribuir ingressos para assistir
essa contenda ainda contida entre Michelle e Tarcísio como se fosse prélio do
antigo torneio Rio-São Paulo. Mas sem enganos. O campeonato contemporâneo é
nacional e tem conexões internacionais cada vez mais óbvias. A pergunta sobre
se Bolsonaro apoiará a esposa ou o ex-ministro - ou mesmo outra pergunta, mais
relevante e consequente - sobre se haverá, entre os dois pretendentes, aliança
ou divórcio de palanques não poderá encontrar resposta como se fosse uma
pergunta solteira. O casamento entre esses dois fios de um bolsonarismo
desencapado por recentes e contundentes derrotas dependerá de, na igreja
internacional da extrema-direita, vozes em contrário se fazerem ouvir antes da
consumação das bodas, ou de prevalecer o “cale-se para sempre!”
Sim, porque se parece ser verdade que Tarcísio,
Caiado ou qualquer outro direitista conservador relevante não pode hoje
prescindir do apoio pessoal de Bolsonaro, também há evidências fortes de que o
antigo chefe, livre ou preso, não pode, para conservar seu prestígio e poder de
mobilização, prescindir do engajamento, subjetivo e objetivo, de uma
extrema-direita que é internacional. Esse engajamento, por sua vez, não será
facilmente obtido em torno de uma candidatura presidencial moderada, pois isso
vai na direção oposta da orientação política geral da igreja, pela
desestabilização das democracias. Para
obter o aval dos seus pares estrangeiros, o chefão verde-amarelo teria que
convencê-los de que há forte probabilidade em uma, talvez duas, das seguintes
possibilidades. a) a direita unida ganhar a eleição e, ganhando, a
extrema-direita ter um quinhão relevante de poder no futuro governo; b) se o quinhão
não contentar à extrema-direita haverá conexões militares capazes de golpear o
aliado infiel e fazer uma vice fiel subir a rampa; c) a composição com os conservadores e os
moderados facilitará, mais que uma candidatura “puro sangue”, o aumento da
bancada parlamentar da extrema-direita e que o aumento ajudará não a governar e
tornar-se força da política “normal”, mas a abalar as instituições.
Convenhamos que são condições adequadas à
viabilização de um programa maximalista. Por isso mesmo será limitado o seu
poder de persuasão, se esse movimento internacional conhecer o Brasil, sua
política e sua cultura. Mais lógico que se vacine contra um conto do vigário e,
por mais que valorize o capital eleitoral pessoal de Bolsonaro, ofereça-lhe a
seguinte escolha: recuse a oferta dos moderados e sustente na política o seu
matrimônio privado, apostando numa candidatura radical “própria”. Ou vá ser direita
normal na vida nacional e abra mão da nossa grife e de seus meios de fabricar
poder. Impossível prever agora a decisão
de Bolsonaro, mas parece certo que não é chegada a hora. Entre outras
variáveis, será preciso antes conhecer o destino político de Donald Trump. Daí
soam precipitadas as afirmações de que Bolsonaro estará num (ou “por trás” de
um) palanque oposicionista de tom moderado.
A migração da análise comparativa do
terreno das atitudes políticas e da performance pública dos atores para
o terreno pantanoso das intenções e dos ambíguos, talvez insondáveis, laços de
lealdade pessoal não é politicamente neutra, ou inocente. Esse itinerário permite
analisar a direita empírica como se fosse um todo abstratamente uno, no qual estariam
borradas as diferenças entre direita e extrema-direita. A busca de evidências
empíricas para essa suposição desloca-se, então, para o terreno da pequena
política e se começa a enumerar, por exemplo, cargos ocupados por seguidores e
correligionários de Bolsonaro no governo de São Paulo. A lupa não necessariamente
é ajustada para poder analisar qualitativamente quais são os cargos, quem são seus
ocupantes e as circunstâncias das indicações e nomeações. Esse tipo de visão
panorâmica e desatenta a nuances não se aplica apenas a movimentos que ocorrem
no campo da direita. Voos similares têm permitido levar análises a condenações
e vaticínios sobre o “loteamento” dos cargos do governo Lula com o “Centrão” ou
a seu oposto, que seria o “aparelhamento” do governo pelo PT. Num e noutro
caso, será mesmo assim?
Da parte do governo e do seu principal
partido está na praça uma convocação aos democratas para cerrarem fileiras em
sua defesa contra uma oposição de direita que choca ovos de serpente
autocrática e mesmo neofascista. O chamado repercute, pois basta olhar para o
mundo das democracias ocidentais para se ver que o perigo não é fantasia. Mas
não pode ser proibido pensar se o Brasil, embora longe de estar imune à
extrema-direita, não está, neste momento, menos permeável a suas ameaças e
ataques do que esteve até 8 de janeiro de 2023 e se também não está entre as
democracias mais precavidas, do ponto de vista político e judicial, em
comparação até com democracias das melhores famílias.
Afinal, os golpistas foram identificados,
estão sendo submetidos a processos e consequentes julgamentos e os atores
políticos da direita adotam, em geral, atitude mais moderada diante dos temas
institucionais. Seu avanço nesse terreno (a manutenção do veto de Bolsonaro à
chamada lei das fake news) é um revés sério para o campo democrático,
mas talvez decorra mais de problemas de calibragem política da lei. Passadas as
eleições, pode ter sido um erro não tomar a iniciativa de moderar dispositivos controversos
para torná-los politicamente exequíveis. Isso permitiu à extrema-direita vencer
essa batalha jogando praticamente parada. Também é fato que a extrema-direita segue
agressiva nas pautas de costumes e da segurança pública e que através delas tem
conseguido evitar o isolamento e obtido êxitos legislativos, sem, contudo,
tornar-se hegemônica.
Quando se analisa as interações sociais e
sistêmicas dessa corrente política não se vê nela condições de hegemonizar uma
oposição de direita que seja competitiva ou ameaçadora. Tem inegável força
eleitoral, mas seu líder maior está impedido de concorrer à Presidência e o
partido em que se abriga cresceu, mas não está mais em posição de liderança,
dentro do que se supõe em termos de eleições ao Legislativo, nas quais a
direita mais fisiológica e a centro-direita têm mais peso. Se passarmos para a
interação com a sociedade civil organizada não há sinais de alteração na situação
amplamente desfavorável que enfrentou nas eleições de 2022. Por outro lado, é
sensato supor que seu potencial de infiltração com fito golpista em certos
segmentos (militares, policiais, milícias, clubes de tiro) decerto não foi
zerado, mas diminuído, pelo fato de não haver mais cobertura e cumplicidade
institucional vindas do alto.
No plano da teia institucional, ainda que
esteja conseguindo evitar o isolamento no Legislativo e tenha elegido mais
parlamentares do que tinha até 2022, as possibilidades de irradiação eleitoral
são sensivelmente mais limitadas pelo seu arredamento político do Poder
Executivo e sua presença nula na burocracia que, aliás, essa corrente quis
destruir. No Senado não tem vida fácil como oposição a Rodrigo Pacheco e por
mais que, na Câmara, Lira lhe dê oxigênio, é quantitativa e qualitativamente
inferior à farra do orçamento secreto e às franquias que tinham, graças ao
trânsito no palácio de onde saíam os meios de manipular eleições. E quanto às
interações com o Judiciário, bem, sobre isso é escusado falar.
Tudo isso pesado mantem-se a importância estratégica
de uma frente cívico-política, no estado e na sociedade, contra a extrema-direita.
Mas vale o mesmo raciocínio imperativo para formar uma aliança eleitoral em
torno de Lula contra todo o campo da direita? É, no mínimo, cedo para responder
sim.
A direita, lato sensu, somada à
centro-direita, tem peso e flexibilidade para atrair o eleitorado de centro, se
do governo não vier, em sentido contrário, uma nítida sinalização centrista, em
vez de zigue-zagues e acrobacias verbais. É provável que essa articulação de direita
e centro-direita não possa, até 2026, dispensar o apoio de Bolsonaro na
competição presidencial. Mas já faz tempo que essa arena deixou de ter relevância
soberana, absoluta, incontrastável. A disputa por influência no Congresso
passou a ter peso maior para alguns atores, desde que ele se tornou um eixo
decisivo de poder político no país.
Tradicionalmente, eleições municipais não
dão pistas tão seguras para a eleição presidencial seguinte, como as que
costumam dar para as eleições à Câmara dos Deputados. Outubro de 2024 pode,
nesse sentido, ser um momento de maturação e consolidação da capacidade da
direita governar o país, a partir de 2027, em registro distinto do que foi o do
governo Bolsonaro, com razoável autonomia em relação ao resultado da eleição
presidencial. Como, aliás, vem ocorrendo após as eleições de 2022.
Para evitar mal-entendidos: um candidato a presidente
claramente de direita, como Tarcísio de Freitas ou Ronaldo Caiado, mesmo com
possibilidade de fazer um governo sem extremismo, não é opção fácil para um
eleitor de centro, nem razoável para um eleitor de centro-esquerda moderado e
não petista. Por um bom tempo esse tipo de eleitor vai continuar tentando escapar
da polarização dominante por algum terceiro caminho não competitivo do tipo “T”,
que é de tábua, mas também de Tebet e quem sabe de Tábata. Mas antes de dar
esse quadro como consumado para 2026, é preciso trazer dois pontos nos quais
esta coluna insiste desde que os atuais governo e congresso se desenharam e
arriaram suas malas.
Em primeiro lugar, a estabilidade do
governo, através de uma governabilidade democrática, é tão estratégica para a
própria democracia quanto a formação e consolidação de uma oposição
democrática. Em segundo, pensar assim é
possível através de um realismo que aceite as novas relações entre Legislativo e
Executivo e pretenda corrigir desvios e exageros, mas não sua dinâmica geral,
pela qual a agenda do primeiro é formada por interação tensa e cooperativa
entre ambos os poderes e não por prerrogativa do segundo, como ocorria no
finado presidencialismo de coalizão. Eleições municipais reforçarem um pouco
mais essa tendência é mais provável do que atuarem no sentido de revertê-la.
*Cientista político e professor da UFBa.
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