domingo, 2 de junho de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - Quantas e quais direitas vamos ver em 2026?

O que ocorre, ou ocorrerá, no amplo campo da direita brasileira até as eleições (presidenciais e parlamentares) de 2026 é tema que, gradativamente, ganha espaço no colunismo político e nos blogs especializados em política. É questão de tempo passar a frequentar, também assiduamente, o espaço público mais abrangente do noticiário de imprensa e a contribuir para a algazarra das redes sociais.

A maior e mais intensa circulação do tema não garante que ele será tratado em sua complexidade. Pode ser perfeitamente absorvido como tópico da polarização extrema que predomina no ambiente político. O caminho mais curto para isso é reformular a pergunta e passar-se a discutir o que fará a extrema-direita ou - ainda mais simplificadamente – quem Bolsonaro apoiará na sucessão de Lula. Questões simétricas às que circulam a respeito do outro lado, desde que o atual governo começou: se esse é um governo de coalizão ou se o lulo-petismo é que manda; quem Lula apoiará, em 2026, ou depois.

No mundo simplificado das redes digitais, perguntas tais e quais parecem confirmar o diagnóstico recente, feito pelo presidente, de que a política brasileira se resume hoje à disputa pessoal entre ele e Bolsonaro. Fora desse enquadramento seria ocioso e mesmo bobo falar em esquerda, centro e direita, ou em situação e oposição. Lula é a esquerda, Bolsonaro, a direita. Já o centro, é um ninguém. Quem apoia o governo é lulista, quem faz oposição, bolsonarista e quem não se alinha, oportunista ou ingênuo.

Uma interpretação menos tosca e mais realista do cenário no qual direita, esquerda e centro, o governo e oposições atuam vê o governo presidencialista no Brasil resultando de diversas interações do presidente. De um lado, com os governados (eleitores), relação mediada por um conjunto de formadores de opinião atuantes nas múltiplas e distintas esferas da sociedade civil e por formuladores e operadores de estratégias de comunicação política. De outro lado, com uma complexa teia institucional.

Componente decisivo da teia institucional é o sistema de governo. Compõem-no atores que o presidente comanda (ministros e demais auxiliares de confiança); outro poder também governante (o Legislativo) com legitimidade eleitoral e comando político-administrativo próprios, onde atuam partidos, lideranças e bancadas; poderes federativos, em que certos governadores são atores nacionalmente relevantes.

Além do sistema de governo (e com ele se relacionando) há, na teia, instituições e atores estatais que o presidente deve comandar (burocracia, civil e militar) e outro poder independente, a cuja cúpula (o STF), a Constituição atribui prerrogativas de natureza política, embora não governamentais. O STF é mediador, supervisor e, por vezes, árbitro da relação entre o presidente e a Constituição, mãe da teia institucional da qual a tradição e a cultura políticas são as avós. Daí a relação do presidente com a Carta não ser - ou não deve ser - contingencial e política, mas reverencial e imperativa.  

Para observar a oposição a um governo cujo principal titular é assim limitado, é preciso reconhecer que também se projetam sobre ela as implicações da comunicação mediada com o eleitorado e com a sociedade civil, assim como as implicações da teia institucional de estado e governo. Nenhuma oposição pode se tornar relevante e competitiva a ponto de almejar, com chance de êxito, a ocupação do governo e efetivamente governar, se não interagir de modo efetivo com essas duas ordens de condicionamentos.

Hoje, no Brasil, grosso modo, quem diz oposição, diz direita. Mas com lentes mais precisas e faro mais fino pode-se ver que nem toda atitude de oposição ao governo é de direita e que nem toda a direita tem atitude de oposição. Pouparei o texto e os leitores de exemplos, pois essas exceções são notórias e tão numerosas que desafiam a regra de que oposição e direita se confundem. Tomemos, em vez disso, o caso do governador paulista, Tarcísio de Freitas, que exemplifica a regra, não a exceção. Seu indiscutível perfil de político de direita não o torna, porém, menos alvo de simplificações enganosas.

De modo geral é admitido que o governador paulista tem perfil e conduta distintos dos de Bolsonaro, de quem foi ministro, já incluído, nas análises de então, entre os auxiliares “racionais” do chefe extremista. Esse juízo resulta de análise por vários ângulos. O principal é a maior consistência da visão pro-mercado de Tarcísio em economia. Por conseguinte, projeções sobre o que seria um eventual governo seu conferem-lhe maior confiabilidade, junto a empresários em geral e a economistas ultraliberais, do que os solavancos e sobressaltos provocados pelo dueto encenado por Bolsonaro e Paulo Guedes. A demonstração e teste de sua disposição ostensiva de corresponder às expectativas dos agentes econômicos mais relevantes é facilitada pelo bastidor e vitrine que é o cargo que ocupa à frente do estado detentor do PIB mais relevante do país. A essa condição junta-se a reputação de bom gestor, um dos inúmeros quesitos cruciais em que Bolsonaro é caso indiscutível de reprovação.

Outro ângulo de observação é o tipo de jogo político-institucional jogado pelo governador de São Paulo. O figurino de opositor firme, moderado e civilizado do presidente cai bem não só num estado cuja classe média conservadora é profundamente antilulista e cuja elite econômica tem muito o que perder para se aventurar a queimar navios numa aposta em polarização extrema.  A nível nacional também tem sua utilidade, pela heterogeneidade dos interesses sociais e regionais em jogo. A condição de paulista, por um lado, facilita, pela sensação de poder que transmite, mas traz dificuldades pela imagem de São Paulo como estado desequilibrador da federação. A reputação de moderado pode compensar, se comparada não só com a de Bolsonaro, que não é paulista, mas com a de João Dória, por exemplo.

Se consideradas as balizas constitucionais, o contraste com Bolsonaro também se dá, porque o político Tarcísio de Freitas comporta-se como direitista conservador, não como reacionário disruptivo. Ainda não passou pelo teste do exercício tentador do poder nacional e do manejo de seus recursos, mas do lugar onde já pode ser observado atua, de modo geral, dentro do que consensualmente se aceita como limites da Constituição, sem se pautar por quatro linhas imaginárias das quais seja o próprio criador.

 As convergências dar-se-iam mais em pautas e posições conservadoras na segurança pública e nos costumes, nas quais se esfuma a moderação política do governador numa tentativa do pré-candidato de tornar-se popular por vias analogamente percorridas por Bolsonaro. O conservador e o reacionário fundem-se aí e fazem as camadas progressista e liberal da sociedade civil e do eleitorado temerem, com razão, pelo destino dos direitos civis e humanos num eventual governo seu, ainda mais sendo o Brasil um país onde, historicamente, esses direitos são parca e tardiamente considerados pelas instituições e mais precariamente ainda pela cultura política predominante no estado e na sociedade. Como, talvez, um atenuante, pode se considerar que o agir do governador paulista no campo da segurança pública não inclui simpatia por discurso e métodos milicianos. E que, no caso das pautas conservadoras e mesmo reacionárias, em costumes, sua adesão é mais racionalizada, de caráter político-eleitoral e não a paixão pela sopa ideológica fundamentalista do bolsonarismo.

Em que pese se admitir as distinções atitudinais, que comportam até alguns contrastes, não tarda a comparecer a muitas análises a conjectura de que a exibição dessas distinções seja mera encenação de uma espécie de “briga de branco”, simulada para dissimular uma identificação comum e polar básica, entre Tarcísio e Bolsonaro, o que, por sua vez, justificaria considerar o primeiro como um bolsonarista.

É outra a mensagem que fatos em processo vêm passando. A hipótese de uma candidatura de Michelle Bolsonaro vem sendo alimentada sem qualquer inocência. Chegou a produzir pelo menos um evento público marcante, no Rio de Janeiro. Metaforicamente, nem que seja por esporte e para não se perder a piada, é possível distribuir ingressos para assistir essa contenda ainda contida entre Michelle e Tarcísio como se fosse prélio do antigo torneio Rio-São Paulo. Mas sem enganos. O campeonato contemporâneo é nacional e tem conexões internacionais cada vez mais óbvias. A pergunta sobre se Bolsonaro apoiará a esposa ou o ex-ministro - ou mesmo outra pergunta, mais relevante e consequente - sobre se haverá, entre os dois pretendentes, aliança ou divórcio de palanques não poderá encontrar resposta como se fosse uma pergunta solteira. O casamento entre esses dois fios de um bolsonarismo desencapado por recentes e contundentes derrotas dependerá de, na igreja internacional da extrema-direita, vozes em contrário se fazerem ouvir antes da consumação das bodas, ou de prevalecer o “cale-se para sempre!”

Sim, porque se parece ser verdade que Tarcísio, Caiado ou qualquer outro direitista conservador relevante não pode hoje prescindir do apoio pessoal de Bolsonaro, também há evidências fortes de que o antigo chefe, livre ou preso, não pode, para conservar seu prestígio e poder de mobilização, prescindir do engajamento, subjetivo e objetivo, de uma extrema-direita que é internacional. Esse engajamento, por sua vez, não será facilmente obtido em torno de uma candidatura presidencial moderada, pois isso vai na direção oposta da orientação política geral da igreja, pela desestabilização das democracias.   Para obter o aval dos seus pares estrangeiros, o chefão verde-amarelo teria que convencê-los de que há forte probabilidade em uma, talvez duas, das seguintes possibilidades. a) a direita unida ganhar a eleição e, ganhando, a extrema-direita ter um quinhão relevante de poder no futuro governo; b) se o quinhão não contentar à extrema-direita haverá conexões militares capazes de golpear o aliado infiel e fazer uma vice fiel subir a rampa; c)  a composição com os conservadores e os moderados facilitará, mais que uma candidatura “puro sangue”, o aumento da bancada parlamentar da extrema-direita e que o aumento ajudará não a governar e tornar-se força da política “normal”, mas a abalar as instituições.

Convenhamos que são condições adequadas à viabilização de um programa maximalista. Por isso mesmo será limitado o seu poder de persuasão, se esse movimento internacional conhecer o Brasil, sua política e sua cultura. Mais lógico que se vacine contra um conto do vigário e, por mais que valorize o capital eleitoral pessoal de Bolsonaro, ofereça-lhe a seguinte escolha: recuse a oferta dos moderados e sustente na política o seu matrimônio privado, apostando numa candidatura radical “própria”. Ou vá ser direita normal na vida nacional e abra mão da nossa grife e de seus meios de fabricar poder.  Impossível prever agora a decisão de Bolsonaro, mas parece certo que não é chegada a hora. Entre outras variáveis, será preciso antes conhecer o destino político de Donald Trump. Daí soam precipitadas as afirmações de que Bolsonaro estará num (ou “por trás” de um) palanque oposicionista de tom moderado. 

A migração da análise comparativa do terreno das atitudes políticas e da performance pública dos atores para o terreno pantanoso das intenções e dos ambíguos, talvez insondáveis, laços de lealdade pessoal não é politicamente neutra, ou inocente. Esse itinerário permite analisar a direita empírica como se fosse um todo abstratamente uno, no qual estariam borradas as diferenças entre direita e extrema-direita. A busca de evidências empíricas para essa suposição desloca-se, então, para o terreno da pequena política e se começa a enumerar, por exemplo, cargos ocupados por seguidores e correligionários de Bolsonaro no governo de São Paulo. A lupa não necessariamente é ajustada para poder analisar qualitativamente quais são os cargos, quem são seus ocupantes e as circunstâncias das indicações e nomeações. Esse tipo de visão panorâmica e desatenta a nuances não se aplica apenas a movimentos que ocorrem no campo da direita. Voos similares têm permitido levar análises a condenações e vaticínios sobre o “loteamento” dos cargos do governo Lula com o “Centrão” ou a seu oposto, que seria o “aparelhamento” do governo pelo PT. Num e noutro caso, será mesmo assim?

Da parte do governo e do seu principal partido está na praça uma convocação aos democratas para cerrarem fileiras em sua defesa contra uma oposição de direita que choca ovos de serpente autocrática e mesmo neofascista. O chamado repercute, pois basta olhar para o mundo das democracias ocidentais para se ver que o perigo não é fantasia. Mas não pode ser proibido pensar se o Brasil, embora longe de estar imune à extrema-direita, não está, neste momento, menos permeável a suas ameaças e ataques do que esteve até 8 de janeiro de 2023 e se também não está entre as democracias mais precavidas, do ponto de vista político e judicial, em comparação até com democracias das melhores famílias.

Afinal, os golpistas foram identificados, estão sendo submetidos a processos e consequentes julgamentos e os atores políticos da direita adotam, em geral, atitude mais moderada diante dos temas institucionais. Seu avanço nesse terreno (a manutenção do veto de Bolsonaro à chamada lei das fake news) é um revés sério para o campo democrático, mas talvez decorra mais de problemas de calibragem política da lei. Passadas as eleições, pode ter sido um erro não tomar a iniciativa de moderar dispositivos controversos para torná-los politicamente exequíveis. Isso permitiu à extrema-direita vencer essa batalha jogando praticamente parada. Também é fato que a extrema-direita segue agressiva nas pautas de costumes e da segurança pública e que através delas tem conseguido evitar o isolamento e obtido êxitos legislativos, sem, contudo, tornar-se hegemônica.

Quando se analisa as interações sociais e sistêmicas dessa corrente política não se vê nela condições de hegemonizar uma oposição de direita que seja competitiva ou ameaçadora. Tem inegável força eleitoral, mas seu líder maior está impedido de concorrer à Presidência e o partido em que se abriga cresceu, mas não está mais em posição de liderança, dentro do que se supõe em termos de eleições ao Legislativo, nas quais a direita mais fisiológica e a centro-direita têm mais peso. Se passarmos para a interação com a sociedade civil organizada não há sinais de alteração na situação amplamente desfavorável que enfrentou nas eleições de 2022. Por outro lado, é sensato supor que seu potencial de infiltração com fito golpista em certos segmentos (militares, policiais, milícias, clubes de tiro) decerto não foi zerado, mas diminuído, pelo fato de não haver mais cobertura e cumplicidade institucional vindas do alto.

No plano da teia institucional, ainda que esteja conseguindo evitar o isolamento no Legislativo e tenha elegido mais parlamentares do que tinha até 2022, as possibilidades de irradiação eleitoral são sensivelmente mais limitadas pelo seu arredamento político do Poder Executivo e sua presença nula na burocracia que, aliás, essa corrente quis destruir. No Senado não tem vida fácil como oposição a Rodrigo Pacheco e por mais que, na Câmara, Lira lhe dê oxigênio, é quantitativa e qualitativamente inferior à farra do orçamento secreto e às franquias que tinham, graças ao trânsito no palácio de onde saíam os meios de manipular eleições. E quanto às interações com o Judiciário, bem, sobre isso é escusado falar.

Tudo isso pesado mantem-se a importância estratégica de uma frente cívico-política, no estado e na sociedade, contra a extrema-direita. Mas vale o mesmo raciocínio imperativo para formar uma aliança eleitoral em torno de Lula contra todo o campo da direita? É, no mínimo, cedo para responder sim.

A direita, lato sensu, somada à centro-direita, tem peso e flexibilidade para atrair o eleitorado de centro, se do governo não vier, em sentido contrário, uma nítida sinalização centrista, em vez de zigue-zagues e acrobacias verbais. É provável que essa articulação de direita e centro-direita não possa, até 2026, dispensar o apoio de Bolsonaro na competição presidencial. Mas já faz tempo que essa arena deixou de ter relevância soberana, absoluta, incontrastável. A disputa por influência no Congresso passou a ter peso maior para alguns atores, desde que ele se tornou um eixo decisivo de poder político no país.

Tradicionalmente, eleições municipais não dão pistas tão seguras para a eleição presidencial seguinte, como as que costumam dar para as eleições à Câmara dos Deputados. Outubro de 2024 pode, nesse sentido, ser um momento de maturação e consolidação da capacidade da direita governar o país, a partir de 2027, em registro distinto do que foi o do governo Bolsonaro, com razoável autonomia em relação ao resultado da eleição presidencial. Como, aliás, vem ocorrendo após as eleições de 2022.

Para evitar mal-entendidos: um candidato a presidente claramente de direita, como Tarcísio de Freitas ou Ronaldo Caiado, mesmo com possibilidade de fazer um governo sem extremismo, não é opção fácil para um eleitor de centro, nem razoável para um eleitor de centro-esquerda moderado e não petista. Por um bom tempo esse tipo de eleitor vai continuar tentando escapar da polarização dominante por algum terceiro caminho não competitivo do tipo “T”, que é de tábua, mas também de Tebet e quem sabe de Tábata. Mas antes de dar esse quadro como consumado para 2026, é preciso trazer dois pontos nos quais esta coluna insiste desde que os atuais governo e congresso se desenharam e arriaram suas malas.   

Em primeiro lugar, a estabilidade do governo, através de uma governabilidade democrática, é tão estratégica para a própria democracia quanto a formação e consolidação de uma oposição democrática.  Em segundo, pensar assim é possível através de um realismo que aceite as novas relações entre Legislativo e Executivo e pretenda corrigir desvios e exageros, mas não sua dinâmica geral, pela qual a agenda do primeiro é formada por interação tensa e cooperativa entre ambos os poderes e não por prerrogativa do segundo, como ocorria no finado presidencialismo de coalizão. Eleições municipais reforçarem um pouco mais essa tendência é mais provável do que atuarem no sentido de revertê-la.

*Cientista político e professor da UFBa.

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