O Globo
Coube ao STF interpretar e aplicar normas
penais sem poder se socorrer de doutrina e jurisprudência sedimentadas
Passado quase um ano desde o julgamento, pelo
STF, dos primeiros processos relacionados aos eventos de 8 de janeiro de 2023,
cumpre refletir sobre como a Corte tem respondido aos atentados.
Em muitos aspectos, a forma e magnitude dos
ataques ao Estado Democrático foram inéditas, e isso desafia a capacidade de
resposta de instituições cujas normas e padrões de atuação se estabeleceram por
décadas sem que se imaginassem atos de tais características. Do mesmo modo, à
Justiça é sempre mais desafiador aplicar a lei sem poder se socorrer de
precedentes dos tribunais sobre situações semelhantes, mais ainda quando está
em jogo a liberdade de cidadãos — como ocorre em julgamentos criminais.
Não apenas o contexto histórico-político e a forma de concretização de ataques à ordem democrática são relativamente novos, como também algumas das leis penais cuja incidência foi invocada a partir das tristes cenas a que assistimos no 8 de Janeiro. Coube, então, ao STF interpretar e aplicar normas penais sem poder se socorrer, como tradicionalmente faz, de doutrina e jurisprudência sedimentadas ao longo de anos.
Afastou-se, nas denúncias apresentadas
pela PGR,
a incidência do crime de “terrorismo”, por muitos invocado desde logo— e que se
fez presente em nota conjunta firmada por representantes dos três Poderes no
dia seguinte aos ataques. Como afirmamos à época, se era possível chamar os
eventos de “terror” sob o ângulo político, pretender a ocorrência do crime de
terrorismo era um equívoco à luz da legislação vigente.
Esse acerto, contudo, não impediu que as
condenações — que já somam mais de duas centenas — apresentassem penas
elevadas, de até 17 anos de prisão. Isso se deve a várias razões, e muitos
foram os diferentes delitos: associação criminosa armada, dano qualificado ao
patrimônio da União, atentados ao Estado de Direito. É preciso considerar,
também, que em diversas condenações o STF cumulou a incidência de dois delitos
de elevada gravidade, no que talvez não tenha sido a melhor interpretação: a
incidência concomitante das figuras de abolição violenta do Estado Democrático
de Direito e golpe de Estado.
Não há razão a quem argumente que o fato de
os Poderes terem seguido em funcionamento e de o governo eleito não ter sido
deposto implicaria a não ocorrência desses crimes, pois a lei criminaliza, nos
artigos 359L e 359M do Código Penal, a tentativa de abolição do Estado de
Direito ou de golpe de Estado; pois, uma vez consumados, não haveria punição
possível. Mas é de pensar, à luz da semelhança dos delitos, da gravidade das
penas de cada um (quatro a oito e quatro a 12 anos de reclusão,
respectivamente) e da circunstância de ambos visarem igualmente a proteger as
instituições democráticas, se não se trata de hipótese em que o crime mais
grave deve absorver o crime menos grave, em que haveria a punição àquele e não
a este, sem prejuízo da responsabilização por outros delitos.
Nesse sentido votou o ministro Luís Roberto
Barroso, em posição que, embora vencida no plenário, pareceu-nos a
mais acertada. Ela resultaria em penas menos elevadas, ainda assim
proporcionais aos crimes e a sua inegável gravidade, bem capturada pelo
relator, ministro Alexandre de
Moraes. Essa interpretação, mais benéfica à liberdade — como é
próprio da interpretação do Direito Penal — ainda evitaria alegações de dupla
punição pelo mesmo fato, vedada na Justiça criminal dos Estados democráticos.
A dificuldade na aplicação da lei deriva
também de os crimes contra a democracia serem recentes em nosso Código Penal,
incluídos pela Lei 14.197/21. Não se imaginou que, com pouco mais de um ano de
vigência, a interpretação dessas figuras jurídicas complexas seria testada em
casos de tamanha repercussão, antes que houvesse tempo de a doutrina jurídica e
os tribunais se debruçarem melhor a respeito — tornando mais difícil a missão
do STF.
Muito há ainda a analisar e aprimorar, a
exemplo de como garantir a individualização de condutas e provas e o exercício
da ampla defesa para delitos praticados em multidão, pois a celeridade da
marcha processual jamais pode violentar direitos fundamentais de réus. E ainda
se aguarda a futura responsabilização de financiadores e autores intelectuais
dos atentados, nem sequer denunciados.
O necessário repúdio aos ataques deve ser
visto pelo STF como oportunidade histórica de dar exemplo na garantia da ampla
defesa em sua extensão constitucional e, onde seja caso de condenação, de
aplicar penas proporcionais, fazendo valer os direitos fundamentais que
assistem a qualquer cidadão.
*Rogério Fernando Taffarello é professor na
FGV-SP e advogado criminalista
Um comentário:
Muito bom! Concordo em gênero, número e grau com o autor.
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