CartaCapital
As chamadas emendas impositivas
desestabilizam o arranjo de independência e harmonia entre os poderes do Estado
Há uma divergência teórico-doutrinária em
relação à natureza jurídico-constitucional do orçamento público. Muitos
autores, provavelmente a maioria, acompanhando a tendência da nossa
jurisprudência, analisam a questão sob o ponto de vista estritamente formal.
Trata-se de uma Lei.
Por outro lado, o orçamento é, materialmente,
uma atividade de controle administrativo com finalidade de planejamento.
Segundo Gaston Jèze, o orçamento é um “ato condição” da cobrança de tributos.
Para Léon Duguit, por sua vez, é ato administrativo relativo às receitas e
despesas originárias e, do mesmo modo, lei em sentido material autorizativa da
cobrança de receitas derivadas.
Independentemente da corrente adotada, formal ou material, é relevante destacar um truísmo entre todas essas concepções: o orçamento possui uma finalidade de planejamento. Trata-se de um valor estrutural que se manifesta por atos de controle. Ou seja, atos materialmente administrativos, ainda que possam advir de uma lei de controle do Legislativo em relação ao Executivo.
Como atividade essencialmente de controle, o
modal deôntico adequado, constitucionalmente exigido, deveria ser o “permitido”
em qualquer matéria relativa ao orçamento público. Por essa razão, as
alterações constitucionais relativas às chamadas emendas impositivas, que em
vez de adotarem o modal deôntico “permitido” valeram-se do modal
“obrigatório”, contrariaram a natureza jurídico-constitucional do
orçamento público. Com efeito, a emenda deveria permitir a despesa, ao
contrário de obrigar a sua realização. Uma das características do ato de
controle é não haver iniciativa. Se fosse obrigatório, não poderia ser mero ato
de controle nem possuir a finalidade de planejamento. Consequentemente,
as emendas
impositivas violam a natureza jurídico-constitucional do
orçamento público.
Ao contrário de singelo vilipêndio ao regime
jurídico do orçamento público, as chamadas emendas impositivas instabilizam o
sistema constitucional de separação de funções estatais, bem como o arranjo de
independência e harmonia entre os poderes do Estado. Ou seja, ao obrigar uma
determinada conduta, e não a facultar, fragiliza-se a interação de vontades que
deveria haver entre o Legislativo e o Executivo.
Na perspectiva clássica, tem-se que coube a
Montesquieu a formulação da doutrina da separação dos poderes estatais com a
nomenclatura, bicameralismo legislativo e independência judicial nos moldes
difundidos nas democracias contemporâneas. O cerne da sua doutrina consistiu,
em linhas gerais, na entrega de díspares funções a órgãos distintos e
especializados, o que serviria de mecanismo de contenção do poder.
Foi com base nas referidas premissas que,
recentemente, o PSOL pediu ao Supremo a declaração de inconstitucionalidade das
emendas impositivas. A ação direta de inconstitucionalidade, da qual somos um
dos advogados subscritores, a partir de ideia de Walfrido Warde e a par de
colegas de primeira grandeza como Rafael Valim, Waldyr Simão, Gustavo Marinho,
Anderson Bonfim e outros, visa obter o reconhecimento da inconstitucionalidade
da captura do orçamento público pelo Legislativo, em detrimento das legítimas prerrogativas
constitucionais da administração pública, à qual compete, precipuamente,
executar políticas públicas.
Nos termos deduzidos na ação de controle
concentrado, a captura do orçamento pelo Legislativo é nociva ao planejamento e
à execução de políticas públicas, além de comprometer o equilíbrio das contas
públicas e, em escala mais ampla, o desempenho da economia brasileira. Na feliz
constatação de Walfrido Warde, igualmente um dos advogados subscritores da
ação, as emendas impositivas acarretam um profundo desarranjo no modelo
orçamentário previsto na Constituição.
Reconhecendo a plausibilidade das
inconstitucionalidades deduzidas e, ainda, o altíssimo quantitativo de emendas
parlamentares de execução impositiva, o ministro Flávio Dino, relator da ação,
concedeu parcialmente a medida cautelar requerida para suspender a execução de
emendas impositivas até os poderes Legislativo e Executivo regulamentarem a
matéria de acordo com a Constituição, com vistas a maior transparência e
adequação ao interesse público, tendo o relator rechaçado, em especial,
qualquer impositividade até a realização do referido diálogo institucional
É ao Executivo que a nossa Constituição
confere as legítimas atribuições relativas à satisfação imediata das
necessidades coletivas, bem como relacionadas à prestação de serviços públicos.
O Legislativo não pode atribuir para si referidas competências que visam, em
muitas situações, simplesmente irrigar currais eleitorais, bem como, inclusive
por meio de reduzida transparência, mitigar os mecanismos de controle da
realização de despesas públicas. •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital,
em 28 de agosto de 2024.
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