Revista Será?
O presidente da República está certo quando reclama do poder que vem assumindo o Congresso Nacional na definição de parcela significativa do orçamento da União, R$ 50 bilhões, que é quase tudo o que o Executivo tem disponível como recursos não obrigatórios, com o caráter impositivo e sem a devida transparência na alocação das emendas. Esta é a natureza do conflito em torno das emendas parlamentares. É como se o Executivo tivesse dois orçamentos, um comandado pelos ministérios e órgãos setoriais e o outro ditado pelo Congresso Nacional, determinando onde e em que o governo deve aplicar os recursos. O que o Congresso vem fazendo, nos últimos anos, até chegar à aberração do “orçamento secreto” e das “emendas pix”, é uma invasão nas responsabilidades do Executivo, dispersando recursos de acordo com visões e interesses fragmentados de deputados e senadores.
O Congresso Nacional tem a prerrogativa
constitucional de analisar, aprimorar e/ou reformular projetos apresentados
pelo Executivo, entre os quais se destaca a Proposta Orçamentária elaborada e
enviada pelo Executivo (Lei Orçamentária Anual). Assim, Deputados e Senadores
podem apresentar emendas à proposta do Executivo, acrescentando, reformulando
ou mesmo retirando projetos, compondo uma nova peça orçamentária que será
enviada de volta para sanção (ou veto) do Presidente da República. Entretanto,
esta prerrogativa de apresentação de emendas parlamentares à proposta
orçamentária sofreu uma primeira distorção com a definição do direito de cada
deputado e cada senador a um determinado valor para introdução no orçamento, de
acordo com sua visão e os interesses das suas bases eleitorais. Os
parlamentares não se importam muito com o conjunto da proposta orçamentária,
cada um deles introduzido a sua cota particular no orçamento, como se o
dinheiro fosse seu.
Como era um valor relativamente pequeno no
volume total de despesas públicas do Orçamento, a cota foi normalizada e, todo
ano, durante a discussão do Orçamento, os parlamentares negociam a alocação do
seu valor orçamentário com as Prefeituras ou com organizações privadas sem fins
lucrativos. Ocorre que esta prática leva à fragmentação e dispersão de recursos
da União em projetos e investimentos ao largo e fora de qualquer planejamento e
lógica de desenvolvimento, levando à movimentação de Governadores, Prefeitos e
organizações junto aos parlamentares aliados para adquirir uma cota da cota. Na
verdade, esta distorção é resultado de uma deformação mais geral e anterior do
sistema federativo, com uma elevada concentração da receita total na União.
Estados e Municípios dependem de transferências voluntárias, negociadas e
conveniadas com o governo federal, para a implementação de projetos relevantes
para o desenvolvimento local. As emendas parlamentares são um instrumento dos
parlamentares nas alianças das suas bases eleitorais nos municípios,
politicagem e clientelismo, sem falar nos casos de corrupção com “venda” de
emendas.
Num certo momento, houve uma iniciativa de
alguns governadores de reunir a bancada dos seus Estados para formular
propostas conjuntas de emendas para projetos de grande porte e impacto no
desenvolvimento estadual. As emendas de bancada que, originalmente, reuniam a
cota individual de vários parlamentares, passaram a constituir outro segmento
da intervenção do Congresso na formulação do orçamento da União, logo com
destaque de um valor adicional ao que cada parlamentar já dispõe
individualmente. Somadas as duas – individuais e de bancada – quase dobra o
valor das emendas parlamentares: as emendas de bancada alcançam cerca de 2% da
Receita Corrente Líquida (nem sequer um percentual das despesas previstas) e as
emendas de bancada chegam a mais de 1% da RCL.
Entretanto, como a execução orçamentária é de
responsabilidade do poder executivo, a liberação dos recursos correspondentes
às emendas introduzidas no orçamento poderia ser contingenciada e suspensa. O
que gerou outro tipo de cambalacho, a liberação de emendas em favor dos aliados
e, o que era mais grave, a “compra” pela Presidência da República de apoio ou
adesão de parlamentares como condição da liberação dos recursos alocados nas
suas emendas. Vários presidentes usaram deste mecanismo para ter algum nível de
governabilidade, no que se chamou de “presidencialismo de coalisão”, que de
coalisão não tinha nada. Diante disso, o Congresso apresentou nova Emenda
Constitucional tornando impositiva a liberação dos recursos das emendas
parlamentares, incluindo mais tarde as emendas de bancada nesta categoria.
Evitavam a barganha política, mas restringiam a capacidade de gestão
orçamentária da União: poderia contingenciar tudo, menos o que o Congresso
introduziu como emenda.
Além das emendas individuais e de bancada, o
Congresso criou uma terceira categoria, a emenda de relator, com uma cota de
recursos a ser distribuída pelo poderoso relator da proposta orçamentária entre
os parlamentares de sua simpatia. O presidente da Câmara de Deputados, junto
com o relator, passou a utilizar a referida emenda de relator para barganhar
apoio aos seus próprios projetos e interesses. Chamada de emenda secreta,
porque não definia o autor da proposta, a emenda do relator é uma perversão adicional
que, além do mais, ampliou substancialmente o poder do Congresso na definição
da alocação dos recursos da União em projetos e investimentos públicos.
Como se achasse pouco, o Congresso Nacional
aprovou, em 2019, emenda constitucional que instituiu o que chama de
transferências especiais, autorizando que parte das emendas individuais sejam
distribuídas diretamente para Estados e Municípios sem passar pelos ministérios
do executivo, o que passou a ser chamado de emendas pix, com recursos que
sequer passam pela estrutura do Executivo e, até agora, iam diretamente para o
caixa dos Estados e Municípios beneficiados pelo padrinho político.
Depois do mal-estar criado por uma limitar do
ministro Flavio Dino, do STF-Supremo Tribunal Federal, suspendendo as emendas
parlamentares até que o Congresso defina regras claras de transparência e
rastreabilidade dos recursos, houve um entendimento e um acordo ridículo que
não lida com o grave problema da ingerência do Congresso na formatação do
orçamento da União nas suas diferentes facetas; o acordo nem sequer acabou com
as emendas pix, apenas exigindo transparência. Como bem definiu o jornal Estado
de São Paulo, a montanha pariu um rato. No fundo, ninguém toca na raiz do
problema: o grave desequilíbrio financeiro dos entes federativos que gera a
dependência de Estados e Municípios aos favores do Executivo Federal, e abre
caminho para o festival de emendas dispersas no território brasileiro.
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