quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Disrupção de Trump ameaça lançar EUA e o mundo no caos - Humberto Saccomandi

Valor Econômico

Em apenas duas semanas, presidente dos EUA possivelmente causou mais do que no primeiro ano inteiro de seu governo anterior

Quase todo mundo esperava que o governo de Donald Trump nos EUA fosse disruptivo. Mas poucos esperam o nível atual de disrupção. Em apenas duas semanas, Trump possivelmente causou mais do que no primeiro ano inteiro de seu governo anterior. Muitas medidas serão questionadas na Justiça americana. Outras talvez sejam irrealizáveis. Mas tudo isso acaba criando expectativas, que movem os mercados e influenciam as decisões e ações de indivíduos, empresas e governos.

A disrupção, isto é, a ruptura de uma atividade, uma prática, um modo de pensar, não é negativa em si. Pode trazer novas abordagens para velhos problemas, permitir avançar em questões que estavam paralisadas devido a posições endurecidas, pode gerar inovação e tirar pessoas, grupos, empresas ou países de suas zonas de conforto.

Mas quanta disrupção é demais? E se não houver um plano claro por trás de toda essa disrupção? O resultado, então, pode ser o caos. Foi o que ocorreu quando os EUA invadiram o Afeganistão e o Iraque sem ter um objetivo coerente e factível. O resultado foram sangrentas guerras civis, o deslocamento e sofrimento de milhões de pessoas, trilhões de dólares gastos e, por fim, o Afeganistão voltou ao controle do Talibã e o Iraque (ou uma parte dele) passou para a órbita do Irã.

Em questões externas, Trump ameaçou tomar a Groenlândia e o Canal do Panamá, quer a anexação do Canadá aos EUA e, na noite de terça-feira (4), anunciou que os EUA vão ocupar por um período longo a Faixa de Gaza, após a retirada de seus dois milhões de habitantes palestinos. Nada disso nem começou a ser feito e pode se tratar de bravata, como disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A proposta de limpeza étnica em Gaza foi amplamente criticada ontem por líderes globais.

Mas há já medidas que não são bravatas e que afetam milhões de pessoas. Na semana passada o governo Trump suspendeu quase toda a ajuda externa americana. Nesta semana, Elon Musk, encarregado de eficiência governamental, iniciou o desmantelamento da Usaid, a agência americana de cooperação internacional. Isso vai afetar programas contra a fome ou que beneficiam pacientes de aids em países pobres da Ásia, África e América Latina.

A Usaid poderia ser melhorada? Tudo pode ser melhorado. Mas cortar esses programas não busca eficiência. É apenas crueldade. Ironicamente, é o homem mais rico do mundo que está cortando ajuda literalmente vital a milhões de pobres pelo planeta.

Do mesmo modo, Trump anunciou a saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do acordo de Paris. Pouca gente parece satisfeita com a gestão de Tedros Adhanom à frente da OMS, mas deixar a entidade significa enfraquecer a capacidade global de reação a epidemias, por exemplo. A Argentina, que possivelmente mais ganha do que gasta com a OMS, também resolveu sair, num gesto de agrado político de Javier Milei a Trump.

Trump também anunciou e depois recuou de tarifas de importação de 25% sobre produtos da Colômbia, México e Canadá. Supostamente o recuo é por ter obtido concessões. Mas as tarifas contra os países da América do Norte causaram um forte abalo nos mercados e possivelmente a Casa Branca foi alvo de pressões do meio empresarial americano.

Já as tarifas contra a China, principal alvo do presidente na campanha eleitoral, entraram em vigor, mas em modestos 10%. Como a moeda chinesa já perdeu quase 4% do valor em relação ao dólar desde setembro, isso atenua o impacto da tarifa, que é administrável para os chineses. A relação moderada com Pequim favorece especulações de que Trump está negociando uma grande barganha com o presidente Xi Jinping.

Segundo vários estudos que estão sendo publicados nos EUA, as tarifas ameaçam aumentar a inflação nos EUA, o que pode manter os juros altos por mais tempo. O resultado final é um crescimento menor.

A estratégia negocial de Trump é, a essa altura, bem conhecida. Ele ameaça ou às vezes até adota medidas punitivas, negocia e recua de muitas delas após obter qualquer concessão que possa chamar de vitória, ainda que isso não venha a se concretizar. Foi o que ocorreu no seu governo anterior, quando Pequim não cumpriu o acordo de compra de produtos americanos.

Mas, mesmo sendo em parte uma estratégia negocial, as ameaças comerciais movem expectativas e influenciam decisões. Que empresa vai investir no México sem saber se poderá exportar para os EUA? Se o objetivo é trazer empresas para produzir nos EUA, o tiro também pode sair pela culatra. Que empresa vai investir nos EUA sem saber para quem poderá exportar, de onde poderá comprar insumos e com quais tarifas? Confiança é um acelerador dos negócios; já incertezas são um freio. O risco, ao final, é o de todos ficarmos mais pobres.

Internamente, ao invés de tentar reformar setores do governo, Trump (junto com Musk) está adotando a estratégia de destruir primeiro para reconstruir depois. É o que aconteceu com a Usaid, mas também com áreas afetadas por cortes de gastos (alguns derrubados judicialmente), por tentativa de redução de pessoal com programa de demissão voluntária (para o qual não há dotação orçamentária) ou ameaças de demissões.

O objetivo desses cortes de gastos (inclusive com a ajuda externa) e pessoal parece ser puramente fiscal: abrir espaço para reduzir impostos para as empresas americanas. O governo federal americano tem cerca de 3 milhões de funcionários civis e responde por apenas 15% dos servidores totais. O grosso, mais de 17 milhões, está nos Estados e municípios. Ou seja, o risco de disrupção é grande, mas a economia pode ser pouca.

Além disso, muitas dessas medidas serão (ou já estão sendo) contestadas na Justiça americana. Foi o caso do cancelamento da concessão de cidadania americana a filhos de estrangeiros que não são residentes nos EUA. Ou da ameaça de demitir agentes do FBI (a polícia federal americana) que participaram de investigações contra Trump. Podem ser milhares.

Tudo isso está causando muita incerteza e uma grande confusão em setores da administração federal americana e possivelmente prejudicando a execução de serviços e a sua eficiência. Como o Estado é o maior provedor de serviços, o risco é essa disrupção toda causar ineficiências, que custam dinheiro às pessoas e às empresas.

Por fim, há o risco de Trump estar gerando uma nova onda global de antiamericanismo. Isso não pode prejudicar os EUA, se causar boicotes a produtos e serviços americanos. No Canadá, talvez o mais fiel aliado dos EUA, houve vaias contra o hino americano em partidas de basquete e hóquei no gelo, e o premiê Justin Trudeau pediu à população que não compre produtos americanos e não viaje de férias para os EUA. O governador de Ontário, a principal província canadense, ameaçou romper um acordo de US$ 100 milhões com a empresa de internet por satélite Starlink, de Musk. A deportação de milhares, talvez milhões, de imigrantes ilegais dos EUA também ameaça a imagem do país na América Latina. Uma eventual retirada forçada da população palestina de Gaza seria uma tragédia também para a reputação de Washington.

O crescente isolacionismo dos EUA e uma possível onda de antiamericanismo podem também prejudicar interesses americanos em todo o mundo. É muito provável que a China ocupe parte do espaço deixado, por exemplo, pela retirada da ajuda externa americana e pela saída dos EUA da OMS.

Nenhum comentário: