quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Gaza, Embraer, deportados e as regras do jogo - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Brasil tem buscado se equilibrar frente à atuação Trump pelas “regras do jogo”. A dúvida é se será possível segurar a peteca com um presidente que nem jogo quer

Depois da ameaça sobre a Groenlândia, Canadá, Golfo do México e Canal do Panamá, Donald Trump chegou ao píncaro com a ideia de que pretende remover os palestinos da Faixa de Gaza para transformá-la numa “Riviera do Oriente Médio”. Por estapafúrdia, a proposta mereceu amplo e irrestrito rechaço da comunidade internacional, aí incluído o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que classificou-a de “bravata sem sentido”.

No mesmo dia da declaração de Trump, a Embraer fechou a maior venda da história para a empresa americana líder da aviação executiva nos EUA, Flexjet. Serão 182 jatos num contrato estimado em US$ 7 bilhões. Foi a maior encomenda da Flexjet e a maior venda de jatos executivos da Embraer na história de ambas as empresas. Há anos a Embraer tenta fechar um contrato para a aviação regional chinesa, sem sucesso.

A venda foi fechada na unidade da Embraer em Melbourne, Flórida, na terça. No mesmo dia, o CEO da empresa, Francisco Gomes Neto, foi recebido pelo chanceler Mauro Vieira. No início da manhã da quarta, o negócio foi anunciado, horas antes do comentário de Lula sobre Trump.

A economia brasileira é menos dependente dos EUA do que o México, mas a concomitância da venda histórica da Embraer não pode ser ignorada. A aviação é um setor que mobiliza a diplomacia presidencial no mundo inteiro. A Embraer começou a produzir nos EUA, entre outros motivos, para se livrar de tarifas anti-dumping. Hoje o país é responsável por 60% da receita da empresa.

Metade dos aviões do contrato com a Flexjet serão produzidos na Flórida e a outra metade nas unidades da Embraer em Gavião Peixoto e Botucatu. Uma tarifa sobre o setor poderia colocar esse contrato em risco, ainda que a blindagem da empresa seja reforçada pelos 3 mil funcionários no país, a quase totalidade na Flórida trumpista.

No primeiro governo Trump, por exemplo, a Bombardier canadense foi obrigada a vender o projeto de um avião para a Airbus fabricar nos EUA depois de uma sobretaxa. Além desta venda para a Flexjet, está em discussão projeto de um novo avião comercial para competir com a Boeing.

Não houve nota da chancelaria brasileira sobre a proposta de Trump que o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, chamou de “limpeza étnica”. A ordem é focar nos fatos. A existência de uma única nota desde sua posse, aquela sobre o voo do dia 24 de janeiro, em que o governo brasileiro considerou “inaceitável” o “tratamento indigno” dado aos brasileiros, sugere que este foi o único fato digno de registro.

O próximo voo sai na madrugada da sexta-feira do aeroporto de Alexandria, perto de Nova Orleans. A lista só sairá à véspera do embarque mas a aeronave tem capacidade máxima de 135 pessoas. O primeiro veio com 88. Dos 2,1 milhões de brasileiros nos EUA, quase 40 mil estão presos com ordem final de deportação, sem chance de recurso.

O presidente tem acusado desconhecimento da existência desses voos, mas o trato para a deportação de brasileiros foi feito entre os governos Jair Bolsonaro e Trump I e atravessou toda a gestão Joe Biden. Eram 15 voos por ano até 2024. No limite, serão duplicados. A pressão de Lula moveu o segundo voo para desembarque em Fortaleza, com possível translado para Minas em avião da FAB. Até terça-feira, ainda havia pressão do Palácio do Planalto por outras mudanças.

O país tem tentado se equilibrar sobre a lógica transacional de Trump, que guiou, por exemplo, o acordo com a Venezuela, país que ameaçou durante toda a campanha. Além da Chevron, que tem, em reservas na Venezuela, metade de toda a reserva americana, um amigo de longa data de Trump, Harry Sargeant III, conhecido como o “rei do betume” na Flórida, fez a ponte com Nicolás Maduro.

Como à Venezuela interessa manter as brechas nas sanções que permitem a atuação de petroleiras estrangeiras no país, Maduro mandou o presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Rodriguez, articular voos para os deportados e soltou seis americanos presos à época dos protestos eleitorais sob a acusação de “conspiração”.

Os aliados de Trump na comunidade latina estão revoltados mas como ele não pode se reeleger, não tem dado muita bola. O que não terá como ignorar são as consequências, para a economia americana, de deportações em massa. Um repique da inflação poderia custar a Trump a maioria nas duas Casas legislativas na eleição de meio de mandato.

A presidente do México, Claudia Sheinbaum, parece negociar com Trump sem arroubos de olho na perspectiva de o Congresso americano ser capaz de contê-lo. Menos cauteloso, Gustavo Petro não apenas teve que recuar como agora enfrenta dificuldade para obter visto até para colombianos de organizações internacionais.

O Brasil tem sido cauteloso ainda que um dos maiores testes da relação, a COP30, ainda esteja por vir. O anúncio de que sairão do Acordo de Paris não desobriga os EUA de participar do encontro. É aí que mora o perigo. O risco de Trump sair atirando ameaça o documento que o Brasil espera fechar para selar sua liderança no tema.

Até lá, notas oficiais dependerão de instâncias como o Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, se pronunciar, ao menos, com uma tentativa de voto. A ordem é se guiar pelas “regras do jogo”. A dúvida é se será possível segurar a peteca com um Donald Trump que nem jogo quer.

 

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