quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Supremo deveria suspender restrição à polícia em favelas

O Globo

Existem instrumentos eficazes para reduzir letalidade sem que policiais sejam impedidos de cumprir seu papel

Não é de hoje que o Rio de Janeiro enfrenta crise gravíssima na segurança pública. Diariamente a população fluminense é obrigada a conviver com guerras entre quadrilhas, tiroteios, balas perdidas, arrastões ou fechamento de vias. Não há solução para o problema que não seja o combate sem trégua às organizações criminosas dominantes em comunidades da Região Metropolitana. E não há como combatê-las sem que a polícia possa fazer seu trabalho. Impedi-la de agir significa piorar a situação.

Por isso o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria alterar seu entendimento na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a ADPF das Favelas, cujo julgamento começou ontem. A decisão, tomada em 2020, restringiu operações policiais em comunidades fluminenses. Embora bem-intencionada por tentar reduzir a letalidade policial, criou outro problema: ao impor limites às operações, engessou o trabalho da polícia. O relator, ministro Edson Fachin, defendeu as restrições: “Dados concretos refutam a tese de que a brutalidade do Estado possa produzir resultados efetivos para a segurança pública”.

Mas autoridades afirmam que elas afetam a segurança. O governador Cláudio Castro (PL) diz que o estado sofre “efeitos colaterais gravíssimos”. Para ele, a excepcionalidade exigida para operações precisa ser revista. “Você tira do povo, da comunidade, o direito de ter uma polícia ostensiva”, afirma. O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), argumenta que o domínio de vastas áreas por traficantes e milicianos prejudica o ordenamento urbano. “Não defendo que a polícia não cumpra legalidades, mas a ADPF virou um elemento de constrangimento”, diz.

Embora seja difícil avaliar, as autoridades de segurança afirmam que a ADPF das Favelas ampliou o território dominado pelo crime. Os fatos sugerem que têm razão. Mesmo quando cumpre restrições e realiza operações, a polícia enfrenta dificuldades. Criminosos queimam veículos e erguem barreiras, obrigando policiais a usar retroescavadeiras e atrasando as incursões. Entre junho de 2019 e maio de 2024, houve 7.856 queixas de barricadas no Rio. Não é aceitável que bandidos se julguem donos do espaço público a ponto de decidir quem pode entrar.

Evidentemente, a letalidade policial é preocupação fundamental, mas o Rio conseguiu reduzi-la de 1.814 mortes em 2019 para 699 em 2024, ou 61%. Existem instrumentos eficazes para melhorar esses índices sem que a polícia seja impedida de agir. Um deles, como defende o Ministério Público e determinou o próprio STF, são as câmeras corporais, de uso obrigatório no estado. De acordo com estudos, elas contribuem para reduzir a letalidade, protegendo tanto cidadãos quanto policiais. Precisam ser usadas durante todas as operações. Se houver abusos, devem ser investigados e punidos.

Medidas consideradas aceitáveis no momento em que são tomadas precisam ser revistas à luz de novos contextos. É o caso da ADPF das Favelas. Não há dúvida de que operações precisam ser bem planejadas, com melhor uso de inteligência, tecnologia e cooperação entre forças de segurança. Mas é fundamental enfrentar o crime organizado em seus domínios, prendendo bandidos e apreendendo seus arsenais. Alarmados com a violência, os cidadãos fazem bem em cobrar ações do Estado. A polícia precisa ter autonomia para cumprir seu papel.

Reerguer Gaza exigirá bem-estar para palestinos e segurança para israelenses

O Globo

Desvario de Trump ao propor ‘Riviera’ no Oriente Médio deve ser visto como início de negociação

Donald Trump começou seu governo fazendo ameaças e lançando ideias estapafúrdias, com o nítido objetivo de obter concessões em negociações. Na terça-feira, ao receber na Casa Branca o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou querer ocupar a Faixa de Gaza, transferir os 2 milhões de palestinos que vivem no enclave, investir na reconstrução da infraestrutura devastada e criar, às margens do Mediterrâneo, uma “Riviera” no Oriente Médio. O desvario depois foi esclarecido. A Casa Branca negou que enviaria tropas e disse que a realocação dos palestinos seria temporária. O conselheiro de Segurança Nacional, Mike Waltz, informou que o objetivo é pressionar os países árabes a propor soluções para Gaza.

O desafio exige uma resposta que leve em conta dois pontos cruciais: o bem-estar dos palestinos que lá vivem e a segurança de Israel. A ideia de Trump não resolve nenhum dos dois — a população palestina não quer sair de Gaza, e o controle americano traria a grupos terroristas como o Hamas mais recrutas e pretextos para ataques mortíferos. Internamente, seria impraticável para Trump enviar soldados americanos a mais uma aventura militar.

Pelo menos num ponto, ele está certo: reerguer Gaza exigirá investimentos bilionários, colaboração dos países árabes e, sobretudo, a garantia de que o Hamas não voltará a comandar o enclave. Não haverá nenhum futuro para a população que sofreu bombardeios inclementes de Israel ao longo dos últimos dois anos se o grupo terrorista mantiver o poder. Basta lembrar o que aconteceu quando Israel desocupou Gaza em 2005: o Hamas passou a sujeitar a população palestina a seus desígnios, impondo a ditadura cruel que usava hospitais, escolas e mesquitas como instalações militares. Não haverá paz nem reconstrução digna com o Hamas no poder, simplesmente porque o grupo luta para destruir Israel.

Outro erro seria prolongar a ocupação militar israelense, como defendem alas radicais do governo Netanyahu. No passado, o país já manteve tropas em Gaza e no Líbano, sem derrotar os grupos terroristas. A permanência de tropas israelenses em Gaza só contribuiria para corroer ainda mais a imagem de Israel com os desgastes intrínsecos a qualquer ocupação, sem trazer nenhuma garantia de paz duradoura.

A melhor alternativa é a Autoridade Palestina passar a controlar o governo local, com apoio de tropas de Israel, dos países árabes e vigilância internacional sobre os corredores estratégicos, usados por terroristas para contrabandear armas e munição. É fundamental também um programa de investimento externo maciço para reconstruir o enclave. O objetivo do Hamas nunca foi melhorar a vida dos palestinos; o foco era destruir Israel. O auxílio internacional se transformou na extensa rede de túneis usada para esconder armas, proteger terroristas e planejar ataques. Uma Faixa de Gaza voltada para o bem-estar dos palestinos, sem bloqueio israelense, é uma aposta que, mesmo distante, vale a pena. Não transformará Gaza em Riviera, mas poderá resultar num Estado palestino com a Cisjordânia.

Juro pode subir menos, e equipe volta a falar em ajuste fiscal

Valor Econômico

A volta de preocupações com contas públicas no discurso oficial é um bom sinal, que precisará ser acompanhado de atos que só seriam benéficos para o país

Vistas a princípio como preocupantemente acomodativas, as explicações do Copom para sua decisão de não sinalizar mais aumentos de juros em maio tornaram-se claras na ata divulgada na terça-feira: o cenário para a inflação, claramente adverso, é cheio de obstáculos para o cumprimento da meta, sem atenuantes no momento. A economia brasileira carrega o impacto de uma dose extrema de juros que, no entanto, pode não ser atenuada a curto prazo. A pesquisa pré-Copom indicou que a grande maioria de analistas e consultores (81%) acha que o ritmo de aperto monetário arrefecerá para menos de 1 ponto percentual em maio, e só 19% vislumbram alta superior (Valor, ontem). Ainda que as expectativas para o IPCA estejam mais desancoradas que antes, o ciclo de alta de juros pode estar mais perto de uma pausa, ou mesmo do fim.

Agora sob o comando de Gabriel Galípolo, o BC manteve o balanço de riscos inclinado mais para uma alta que para a baixa do nível de preços e apontou que ainda é muito cedo para que um dos fatores de amortecimento da inflação mais esperado venha a se materializar - uma desaceleração da economia mais forte que a esperada. Segundo a ata, “não há evidência, mesmo incipiente, de uma desaceleração abrupta”. Há sinais tênues de alguma moderação no crescimento, mas os dados que a sugerem não permitem conclusões definitivas, são pontuais e sujeitos a diferentes interpretações. Além disso, o passado recente frustrou várias vezes as previsões de economistas e do BC de que a economia iria se retrair. Ocorreu o contrário: o PIB cresceu mais que o esperado.

Por outro lado, há abundância de elementos que mostram que a economia está crescendo acima de seu potencial, o que até agora afastou a inflação cada vez mais longe da meta de 3%. O BC ressaltou que o IPCA seguirá acima do teto da meta (4,5%) por seis meses, descumprindo o novo sistema de metas, que estabelece que nem o teto nem o piso (1,5%) podem ser ultrapassados por 6 meses consecutivos. Isso deverá ocorrer por mais tempo. O relatório de inflação de dezembro projetou que o IPCA só recuará a 4,5% no último trimestre do ano, e a situação piorou no front inflacionário depois que o documento foi divulgado. No cenário de referência do BC, a inflação atinge 5,2% em 2025 e ainda se mantém distante do alvo, em 4%, no terceiro trimestre de 2026, o horizonte relevante para a política monetária.

Há fatores que preocupam muito a curto prazo. A disparada do dólar elevou os preços das commodities em reais, especialmente os das carnes, que puxaram a inflação dos alimentos, uma influência preponderante no IPCA - e no ambiente político -, mas se aplacou momentaneamente. O Copom, no entanto, não tem certeza sobre a direção do câmbio no futuro. “Ainda que parte dos riscos tenha se materializado, o Comitê julgou que eles seguem presentes prospectivamente”.

O cenário externo se tornou mais sombrio, o que se deve basicamente às incertezas sobre o crescimento e o comportamento da inflação agravadas pelas políticas de Donald Trump (tema não mencionado no documento). Ainda que siga sendo considerado “desafiador”, o Copom acha agora que “cenários mais extremos, com distintos impactos sobre a inflação nas economias emergentes, têm maior probabilidade de se materializarem”.

Completam o quadro a desancoragem maior da inflação, o “ritmo bastante intenso” da demanda interna e o desempenho “pujante” da oferta de crédito. O mercado de trabalho tem se mostrado robusto e a política fiscal continua expansionista, em desarmonia indesejável com a política monetária, o que impactou de forma “relevante” a expectativa dos agentes econômicos sobre a sustentabilidade da dívida e dos preços dos ativos. O Copom reiterou que isso eleva a taxa de juros neutra da economia e aumenta os custos da desinflação em termos de impacto nas atividades produtivas.

A colaboração imprescindível do controle fiscal para o controle da inflação até agora não veio, mas pode entrar em cena, por motivos eleitorais. Depois de o presidente Lula declarar que 2026 já chegou e as pesquisas mostrarem que mais gente desaprova que aprova o governo, com perda de popularidade do presidente até no Nordeste, a equipe econômica voltou a falar em equilíbrio fiscal. “Vamos ser contracionistas”, disse na terça-feira ao Valor o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, para que a inflação convirja o mais rapidamente para as metas. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deu os mesmos sinais, levantando as expectativas de que o governo fará contingenciamentos e bloqueios relevantes no orçamento logo no início do exercício fiscal.

O obstáculo ao acerto fiscal tem vindo do Planalto. O presidente Lula disse ontem que leva “inflação muito a sério”, mas não mencionou os gastos do governo, poucos dias após a reunião ministerial em que afirmou não pretender tomar novas medidas fiscais. O calendário eleitoral torna-se bem pior para o governo com a economia em retração e a inflação alta. Ajudar o BC a combater a inflação serve aos propósitos da reeleição de Lula. A volta de preocupações com contas públicas no discurso oficial é um bom sinal, que precisará ser acompanhado de atos que só seriam benéficos para o país.

Proposta de Trump para Gaza avilta diplomacia dos EUA

Folha de S. Paulo

Ideia delirante de tomar conta da região, removendo 2 milhões de palestinos, ameaça elevar tensão no Oriente Médio

Se já havia tumultuado o mundo com as propostas bravateiras de anexar o Canadá, comprar a Groenlândia e retomar o canal do PanamáDonald Trump se superou agora em vileza ao sugerir que os Estados Unidos irão tomar posse de Gaza para transformá-la numa "Riviera do Oriente Médio".

A ideia é tão delirante que chega a ser difícil até organizar uma lista dos problemas que ela acarretaria. O mais óbvio e grave deles é que seria necessário deslocar cerca de 2 milhões de palestinos que vivem na área.

E, expressando o que até a extrema direita israelense evita pronunciar, Trump disse que esses palestinos deveriam ser levados para a Jordânia e o Egito para lá ficarem em caráter permanente. Se realizada, a transferência configuraria caso de limpeza étnica.

A Casa Branca não delegaria a tarefa a Israel —a executaria diretamente. "Os EUA tomarão conta da Faixa de Gaza, nós faremos um trabalho com ela. Nós a possuiremos e seremos responsáveis por desmantelar todas as bombas perigosas não detonadas e outras armas no local", declarou Trump após encontro com o premiê israelenseBinyamin Netanyahu, que ouvia sorridente.

Obviamente, não existe base jurídica para dar nem mesmo semelhança de legalidade a tal empreitada. O envolvimento direto e com tropas dos EUA no conflito israelo-palestino também contraria décadas de política externa de vários presidentes, incluindo o próprio Trump.

O republicano não descartou explicitamente a criação de um Estado palestino, mas alguém disposto a apoiar esse Estado não se apressaria a privá-lo de parte importante das terras que ele ocuparia. Não existe solução estável para a região que não passe pela medida, prevista desde a partilha do território determinada pela ONU em 1947.

A sequência de declarações de Trump na terça (4) faz parecer que ele elaborou a ideia no mesmo dia, sem consultar membros do governo ou especialistas.

Nessa hipótese, o nível de improviso e leviandade é incompatível com a diplomacia da maior potência econômica e militar do planeta. Seria, entretanto, típico do populista, que vê a geopolítica como uma negociação de bazar —em que as partes começam com posições grotescamente exageradas para depois chegar a um ponto intermediário que possa ser descrito como vitória por ambos os lados.

Está-se tratando, porém, de algo muito mais complexo e sutil. Se, no caso da Groenlândia, Trump pode dizer disparates sem o perigo de criar dificuldades em campo, no Oriente Médio a situação é sempre mais volátil.

Declarações impensadas podem ter consequências desastrosas. O frágil cessar-fogo em Gaza pode estar sob risco; lideranças árabes moderadas tendem a se distanciar da Casa Branca; o Irã talvez se sinta mais compelido a buscar sua bomba nuclear. Trump foi longe demais, até para seus infames padrões.

Merenda escolar mais saudável

Folha de S. Paulo

Redução do limite de ultraprocessados é correta pois atinge estrato vulnerável e pode reduzir gasto com obesidade no SUS

Quando políticas são baseadas em estudos e experiência, saem ganhando a população e o governo. Esse deve ser o caso da medida, anunciada pela gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que diminui o limite de alimentos processados e ultraprocessados na merenda das escolas públicas de 20% para 15%, com meta de 10% em 2026.

A mudança favorece alunos de um estrato que padece com déficit nutricional e gera efeitos que podem reduzir gastos no SUS.

As comidas ultraprocessadas são aquelas que passam por intenso processo de industrialização e contêm alto teor de ingredientes artificiais, como aromatizantes, emulsificantes, espessantes e corantes, além de níveis elevados de açúcar, sódio e gorduras —são biscoitos, salgadinhos, salsicha, macarrão instantâneo, refrigerantes e outros.

Segundo a maior revisão de estudos sobre o tema, publicada por pesquisadores da Austrália e dos EUA em março de 2024, elas estão associados a 32 efeitos prejudiciais à saúde, incluindo doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade.

Ademais, pesquisas mostram que sua composição estimula o sistema de recompensa do cérebro, fazendo com que as pessoas queiram consumir maiores quantidades mesmo que a fome esteja saciada —fenômeno conhecido como hiperpalatabilidade.

A redução de ultraprocessados no ambiente escolar também é bem-vinda porque a infância e a adolescência são as fases da vida mais propensas à formação de hábitos saudáveis.

De acordo com o Atlas 2024 da Federação Mundial da Obesidade, o índice de jovens brasileiros entre 5 e 19 anos de idade acima do peso era de 34% em 2019 e tende a saltar para 50% em 2035.

Levantamento da USP e da Fiocruz revelou que, de 2013 a 2022, o custo de internação de crianças e adolescentes por obesidade no SUS aumentou 20%, de R$ 145 milhões para R$ 174 milhões. O gasto total com a doença nesse período superou R$ 1,54 bilhão.

O controle de ultraprocessados na rede pública de ensino beneficia famílias mais pobres, que têm acesso precário a alimentos frescos, como frutas e verduras, e a espaços para atividades físicas.

A medida deve ser aliada à educação alimentar nas escolas e vigilância sobre as informações nos rótulos dos produtos, que desde 2022 devem alertar para altos índices de sal, açúcar e gorduras.

A obesidade exige ações interdisciplinares e de longo prazo. Agir na infância produz resultados positivos para os cofres públicos e, mais importante, para a saúde dos brasileiros.

Depois do pacotinho, a agendinha

O Estado de S. Paulo

Ao apresentar agenda econômica para o próximo biênio, governo Lula repete os erros do esvaziado pacote fiscal, expõe um deserto de ideias e explicita a ambição de sobreviver até 2026

A equipe econômica do governo Lula da Silva elencou sua lista de prioridades para os próximos dois anos. A exemplo do pacote fiscal, que gerou tanta expectativa quanto frustração, a ponto de ser chamado de “pacotinho”, a agenda econômica também já pode ser tratada no diminutivo.

São, ao todo, 25 propostas, o que já demonstra uma perigosa combinação entre incoerência e otimismo. Afinal, quem tem 25 prioridades não tem nenhuma, sobretudo quando 15 delas dependem da aprovação de um Congresso com o qual o governo precisa negociar cada projeto individualmente.

A lista é encabeçada pelo fortalecimento do arcabouço fiscal de forma a garantir, ao mesmo tempo, a expansão do Produto Interno Bruto (PIB), desemprego e inflação baixos e estabilidade da dívida. Em primeiro lugar, é bastante simbólico que o fortalecimento do arcabouço não passe, nem superficialmente, por medidas de corte de gastos.

Em segundo lugar, o desempenho econômico do ano passado explicita a dificuldade do objetivo do governo. O crescimento surpreendeu e a taxa de desemprego chegou a níveis historicamente baixos, mas a inflação estourou a meta e a dívida bruta subiu 2,2 pontos porcentuais, para 76,1% do PIB. O endividamento, por sinal, só não aumentou ainda mais porque o Banco Central queimou reservas para conter a desvalorização cambial em dezembro.

Com um crescimento econômico menor, como o projetado para 2025, o desemprego tende a subir e a inflação, a desacelerar. A trajetória da dívida bruta, no entanto, permanece uma incógnita, pois depende de muitos fatores, entre os quais despesas que possuem regras próprias e que crescem à revelia do arcabouço fiscal e dos juros, que aumentam justamente quando não há credibilidade fiscal.

Já ficou claro que o limite aos supersalários e a reforma da previdência dos militares, que estão na lista da Fazenda, não serão suficientes para sinalizar um compromisso firme com o reequilíbrio das contas públicas. Por outro lado, já se sabe que, a depender de Lula da Silva, não haverá novas medidas fiscais.

A agenda também insiste em ações que custaram caro à credibilidade do ministro Fernando Haddad. Mais uma vez, a reforma tributária sobre a renda foi apresentada associada à promessa de campanha de isentar impostos de quem ganha até R$ 5 mil mensais e à tributação sobre milionários.

Para um governo que depende da arrecadação para cumprir a meta, não parece prudente abrir mão de uma receita líquida e certa como contrapartida a uma tentativa de fazer os mais ricos pagarem mais na proporção de seus rendimentos. Não que isso não deva ser proposto, mas seria útil levar em conta a experiência de muitos países que já tentaram o mesmo sem muito sucesso antes de se comprometer com a medida.

O Congresso, ademais, não parece disposto a avalizar pautas impopulares. E nem se pode culpar os parlamentares por essa postura. Cabe, afinal, ao Executivo apresentar uma agenda que represente um projeto de país capaz de mobilizar a sociedade. Se assim fosse, angariar o apoio de deputados e senadores seria um processo quase natural.

O que há, no entanto, é um verdadeiro deserto de ideias, e a única ambição parece ser a de sobreviver até 2026. O Orçamento é expressão disso. Até que a peça orçamentária seja aprovada, o governo só poderá executar 1/18 dos gastos discricionários por mês, à exceção de despesas obrigatórias como salários e aposentadorias. O detalhe é que a apreciação da proposta, que deveria ter ocorrido no ano passado, ocorrerá somente após o carnaval.

Antes disso, o governo pretende concluir a reforma ministerial para acomodar o Centrão na Esplanada dos Ministérios e encontrar uma forma minimamente honrosa de entrar em acordo com o Legislativo e o Supremo Tribunal Federal sobre as emendas parlamentares.

Se já é pouco para quem almeja tentar a reeleição presidencial, é muito pouco para um governo que se elegeu sob a égide de salvar a democracia e reconstruir as políticas públicas destruídas pelo bolsonarismo. Depois do pacotinho, o marqueteiro Sidônio Palmeira terá muito trabalho para defender essa agendinha.

Proposta imprudente

O Estado de S. Paulo

Após sugerir remoção de toda a população do Jardim Pantanal, prefeito Ricardo Nunes recua ao ser advertido pelo governador de SP. Não se administra uma metrópole na base do improviso

Durou cerca de 24 horas a proposta de solução do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, para um problema de décadas. A decisão de remover a população do Jardim Pantanal, na zona leste da capital paulista, a pretexto de resguardá-la dos alagamentos recorrentes no bairro, foi adiada após seu padrinho político, o governador Tarcísio de Freitas, pedir mais “cautela” na formulação de projetos para a região.

O Jardim Pantanal, erguido na várzea do Rio Tietê nos anos 1980, está debaixo d’água há quase uma semana. E não é de hoje que basta cair uma chuva mais forte sobre a cidade para que o lugar inunde. No episódio mais grave, registrado em 2009, o Jardim Pantanal ficou mais de um mês alagado. Agora, com ruas transformadas em canais e casas tomadas pela água novamente, o prefeito resolveu falar em remoção, uma ideia tão simplista quanto equivocada.

Segundo Nunes, a Prefeitura realizou um estudo prévio para a construção de um dique de contenção do Rio Tietê na área afetada. A obra, contudo, não poderia ser realizada, na visão do prefeito, em razão do seu custo, da ordem de R$ 1 bilhão. Ademais, para Nunes, seria ocioso “lutar contra a natureza”.

No mesmo dia em que anunciou a ideia, Nunes se reuniu com Tarcísio para discutir o drama do Jardim Pantanal. Na ocasião, foram apresentadas três propostas de intervenção no bairro elaboradas pela Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (Siurb). A melhor solução para o problema crônico dos cerca de 45 mil paulistanos que vivem no Jardim Pantanal, de acordo com o prefeito, seria removê-los de suas casas e deixar para trás suas histórias e seus vínculos afetivos, comunitários e econômicos, dando-lhes em troca uma “ajuda financeira” de R$ 20 mil a R$ 50 mil. Essa ação, porém, custaria quase R$ 2 bilhões ao erário – o dobro, portanto, do custo de construção do dique que o prefeito havia rejeitado um dia antes.

Outras duas propostas preveem obras de macrodrenagem a fim de manter os moradores onde estão – e a um custo menor para a Prefeitura de São Paulo. Por isso, no dia seguinte, em conversa com jornalistas, coube ao governador do Estado recomendar prudência, com toda a razão, na análise desses projetos. “Se a gente adotar, na pressão, uma solução que seja simplista, provavelmente a gente vai dar uma resposta errada”, disse o governador.

Diante de tanta incerteza, o prefeito Nunes afirmou que está “avaliando possibilidades” e que não havia “nada definido” sobre o que fazer no Jardim Pantanal. Por ora, o trabalho será focado em ações de assistência emergencial. A definição de um projeto definitivo para a região foi prometida para abril.

O que a Prefeitura poderia fazer de imediato é concluir as obras de drenagem no Jardim Pantanal que estão atrasadas há mais de um ano. Enquanto sofre, a população local espera pela instalação de um pôlder, espécie de muro para conter a água, lançá-la num reservatório e depois escoá-la por um córrego. Estivesse de pé, decerto essa estrutura teria ao menos atenuado os efeitos da última enchente.

Os alagamentos na região e em outras áreas da metrópole tendem a aumentar diante dos eventos climáticos cada vez mais extremos e recorrentes. Isso exigirá políticas públicas habitacionais e ambientais bem estruturadas, e não o improviso com que Nunes anunciou o fim de um bairro para dizer, um dia depois, que ainda analisará opções.

Os alagamentos no Jardim Pantanal não são mera reação da natureza, mas reflexo de decisões erradas sobre a ocupação do solo tomadas ao longo de muitos anos. Com ou sem os moradores, qualquer ação na região custará caro e não pode ser decidida no calor do momento ou apenas quando o bairro está debaixo d’água.

Seja qual for o projeto escolhido – construir diques, parques ou remover a população –, espera-se das autoridades uma solução eficaz e definitiva para o Jardim Pantanal e, sobretudo, para seus milhares de moradores.

Especialização médica a distância

O Estado de S. Paulo

Cursos ‘lato sensu’, a maioria não presencial, atendem quem não consegue vaga em Residências

Uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB) sobre cursos de especialização lato sensu em Medicina acende um alerta sobre a formação desses profissionais. Embora o título de especialista em determinada área seja condicionado à realização de Residência Médica, há franco crescimento de especializações que prometem o que não podem cumprir.

Segundo o levantamento, são quase 2 mil cursos de especialização em Medicina, sobretudo em instituições particulares. Mas 41% deles, ou 800, são promovidos na modalidade de ensino a distância (EAD) e 11%, ou 216, na semipresencial. Menos da metade, ou 927 cursos, é presencial.

Essa formação alternativa se impõe por vários motivos. Um deles é que o número de vagas em Residências, que são reconhecidas pelas Sociedades Médicas das áreas, é inferior ao de médicos formados no País. Em 2022, formaram-se 25,5 mil médicos nas faculdades do Brasil afora, mas havia apenas 16 mil vagas em Residências. A esse fenômeno se deu o nome de “déficit de oportunidades”.

Se faltam oportunidades nas Residências, sobram nas especializações. Esses cursos são mais curtos e demandam menos recursos. Enquanto uma Residência exige a estrutura de um hospital de ensino, com a presença de preceptores e supervisores, com formação teórica e prática ao longo de até 2,8 mil horas, a serem concluídas entre dois e cinco anos, uma especialização pode ser realizada em 360 horas.

São múltiplas também as vantagens financeiras – não para os pacientes. O recém-formado em Medicina paga uma mensalidade ao mesmo tempo que pode ingressar no mercado de trabalho e receber bons vencimentos, fugindo da bolsa padrão de pouco mais de R$ 4 mil paga a um residente. Ao término, recebe o diploma da especialização, mas, na prática, não é especialista em nada.

Como há procura, há oferta. As instituições encontraram um novo filão de cursos, mais focados, supostamente, no mercado, embora a Lei do Mais Médicos, de 2013, vincule a abertura de graduações de Medicina à oferta de Residência Médica. Em que pese a expansão dos cursos na última década, parece que a letra da lei não tem surtido efeito.

Por isso, a cobrança da AMB por mais fiscalização se justifica diante dos apontamentos da pesquisa conduzida com a FMUSP. Cabe ao governo federal, por meio dos Ministérios da Educação e da Saúde, acompanhar a oferta desses cursos, cobrando que as faculdades que se engajam no mercado dos cursos de Medicina também atendam a demandas sociais, com a formação de especialistas de fato e de direito nas diversas áreas, como cardiologia, psiquiatria, dermatologia, pediatria e oncologia, entre outras.

Não menos importante, investimentos são necessários nas estruturas das Residências, e o valor da bolsa demanda incremento, haja vista que a contrapartida financeira é fundamental para atrair bons residentes. Assim, conciliam-se interesses de mercado e os interesses sociais. Sem médicos devidamente especializados e qualificados, é a população quem padece.

Alerta para o avanço das arboviroses

Correio Braziliense

Autoridades de saúde começam o ano com a incumbência de manter no radar o enfrentamento à dengue, à chikungunya e à febre amarela

Sob a sombra da avalanche dos casos de dengue em 2024, autoridades de saúde começam este ano com a incumbência de manter no radar outras duas arboviroses: a febre amarela e a chikungunya. O aumento de  ambas as infecções no Brasil começa a destoar da curva, evidenciando que o combate ao Aedes aegypti, que transmite as três doenças, e os avanços na imunização são estratégias vitais para um país que se vê sobressaltado por urgências sanitárias desde 2020, com a chegada da covid-19.

O enfrentamento à febre amarela parece mais evidente. No último domingo, o Ministério da Saúde emitiu um alerta sobre o aumento da transmissão da doença em quatro unidades da Federação: São Paulo, Minas Gerais, Roraima e Tocantins. Em nota técnica às secretarias de Saúde dos estados, a pasta recomendou a intensificação de ações de vigilância e a imunização nas áreas de risco. Salientou ainda que o período de maior preocupação com a enfermidade vai de dezembro a maio, praticamente o mesmo da dengue.

Essa janela de vulnerabilidade engloba também o carnaval, que, pelo maior deslocamento de pessoas, favorece o avanço de doenças virais. No caso da disseminação da febre amarela, o risco sobrevoa cidades que fazem parte dos grandes circuitos momescos do país. São Paulo, por exemplo, concentra a maior parte dos casos da doença neste ano e calcula que 16 milhões de pessoas sairão às ruas até a quarta-feira de cinzas. Belo Horizonte espera 6 milhões.

Há outro agravante: é pertinente imaginar que foliões podem não saber se estão, de fato, protegidos. Isso porque, em 2018, seguindo um protocolo de emergência da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil aplicou doses fracionadas do imunizante na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Quem recebeu essa vacina precisa completar a imunização, e pode ter se esquecido ou não ter sido orientado sobre o reforço. Caso planeje viajar para locais em que há transmissão de febre amarela ou regiões rurais e de mata, deve fazê-lo com pelo menos 10 dias de antecedência. 

Considerando que faltam praticamente três semanas para o carnaval, são urgentes campanha de esclarecimento sobre a cobertura vacinal e disponibilidade de vacinas. Há de se ressaltar que o governo federal trabalha no envio de 800 mil doses extras para São Paulo até o início deste mês. Mas é preciso investir no escoamento da imunização o quanto antes, considerando, ainda, o obstáculo da resistência vacinal.

Quanto à chikungunya, o foco de atenção é o Centro-Oeste. Ao Correio, o sanitarista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Jonas Brant alertou que a região concentrou a maioria dos casos em 2024 e que, pelos números já registrados, o cenário deve se repetir neste ano. Ainda não há vacina no Brasil disponível para a doença, que, devido às dores incapacitantes, demanda uma rede de suporte mais complexa, com assistência do diagnóstico à reabilitação, o que pode durar meses. 

Fica claro que, ainda que compartilhem o mesmo vetor, febre amarela, chikungunya e dengue demandam respostas diferentes das autoridades. O início da gestão em saúde em  prefeituras, em razão das eleições municipais de 2024, tende a deixar a situação ainda mais complexa. É certo, porém, que não se trata de um desafio sanitário a ser enfrentado apenas pelos gestores públicos. As arboviroses são, de fato, uma luta de todos.


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