Supremo deveria suspender restrição à polícia em favelas
O Globo
Existem instrumentos eficazes para reduzir
letalidade sem que policiais sejam impedidos de cumprir seu papel
Não é de hoje que o Rio de Janeiro enfrenta
crise gravíssima na segurança pública. Diariamente a população fluminense é
obrigada a conviver com guerras entre quadrilhas, tiroteios, balas perdidas,
arrastões ou fechamento de vias. Não há solução para o problema que não seja o
combate sem trégua às organizações criminosas dominantes em comunidades da
Região Metropolitana. E não há como combatê-las sem que a polícia possa fazer
seu trabalho. Impedi-la de agir significa piorar a situação.
Por isso o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria alterar seu entendimento na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a ADPF das Favelas, cujo julgamento começou ontem. A decisão, tomada em 2020, restringiu operações policiais em comunidades fluminenses. Embora bem-intencionada por tentar reduzir a letalidade policial, criou outro problema: ao impor limites às operações, engessou o trabalho da polícia. O relator, ministro Edson Fachin, defendeu as restrições: “Dados concretos refutam a tese de que a brutalidade do Estado possa produzir resultados efetivos para a segurança pública”.
Mas autoridades afirmam que elas afetam a
segurança. O governador Cláudio Castro (PL) diz que o estado sofre “efeitos
colaterais gravíssimos”. Para ele, a excepcionalidade exigida para operações
precisa ser revista. “Você tira do povo, da comunidade, o direito de ter uma
polícia ostensiva”, afirma. O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), argumenta
que o domínio de vastas áreas por traficantes e milicianos prejudica o
ordenamento urbano. “Não defendo que a polícia não cumpra legalidades, mas a
ADPF virou um elemento de constrangimento”, diz.
Embora seja difícil avaliar, as autoridades
de segurança afirmam que a ADPF das Favelas ampliou o território dominado pelo
crime. Os fatos sugerem que têm razão. Mesmo quando cumpre restrições e realiza
operações, a polícia enfrenta dificuldades. Criminosos queimam veículos e
erguem barreiras, obrigando policiais a usar retroescavadeiras e atrasando as
incursões. Entre junho de 2019 e maio de 2024, houve 7.856 queixas de
barricadas no Rio. Não é aceitável que bandidos se julguem donos do espaço
público a ponto de decidir quem pode entrar.
Evidentemente, a letalidade policial é
preocupação fundamental, mas o Rio conseguiu reduzi-la de 1.814 mortes em 2019
para 699 em 2024, ou 61%. Existem instrumentos eficazes para melhorar esses
índices sem que a polícia seja impedida de agir. Um deles, como defende o
Ministério Público e determinou o próprio STF, são as câmeras corporais, de uso
obrigatório no estado. De acordo com estudos, elas contribuem para reduzir a
letalidade, protegendo tanto cidadãos quanto policiais. Precisam ser usadas
durante todas as operações. Se houver abusos, devem ser investigados e punidos.
Medidas consideradas aceitáveis no momento em
que são tomadas precisam ser revistas à luz de novos contextos. É o caso da
ADPF das Favelas. Não há dúvida de que operações precisam ser bem planejadas,
com melhor uso de inteligência, tecnologia e cooperação entre forças de
segurança. Mas é fundamental enfrentar o crime organizado em seus domínios,
prendendo bandidos e apreendendo seus arsenais. Alarmados com a violência, os
cidadãos fazem bem em cobrar ações do Estado. A polícia precisa ter autonomia
para cumprir seu papel.
Reerguer Gaza exigirá bem-estar para
palestinos e segurança para israelenses
O Globo
Desvario de Trump ao propor ‘Riviera’ no
Oriente Médio deve ser visto como início de negociação
Donald Trump começou
seu governo fazendo ameaças e lançando ideias estapafúrdias, com o nítido
objetivo de obter concessões em negociações. Na terça-feira, ao receber na Casa
Branca o primeiro-ministro israelense, Benjamin
Netanyahu, afirmou querer ocupar a Faixa de Gaza,
transferir os 2 milhões de palestinos que vivem no enclave, investir na
reconstrução da infraestrutura devastada e criar, às margens do Mediterrâneo,
uma “Riviera” no Oriente Médio. O desvario depois foi esclarecido. A Casa
Branca negou que enviaria tropas e disse que a realocação dos palestinos seria
temporária. O conselheiro de Segurança Nacional, Mike Waltz, informou que o
objetivo é pressionar os países árabes a propor soluções para Gaza.
O desafio exige uma resposta que leve em
conta dois pontos cruciais: o bem-estar dos palestinos que lá vivem e a
segurança de Israel. A ideia de Trump não resolve nenhum dos dois — a população
palestina não quer sair de Gaza, e o controle americano traria a grupos
terroristas como o Hamas mais recrutas e pretextos para ataques mortíferos.
Internamente, seria impraticável para Trump enviar soldados americanos a mais
uma aventura militar.
Pelo menos num ponto, ele está certo:
reerguer Gaza exigirá investimentos bilionários, colaboração dos países árabes
e, sobretudo, a garantia de que o Hamas não voltará a comandar o enclave. Não
haverá nenhum futuro para a população que sofreu bombardeios inclementes de
Israel ao longo dos últimos dois anos se o grupo terrorista mantiver o poder.
Basta lembrar o que aconteceu quando Israel desocupou Gaza em 2005: o Hamas
passou a sujeitar a população palestina a seus desígnios, impondo a ditadura
cruel que usava hospitais, escolas e mesquitas como instalações militares. Não
haverá paz nem reconstrução digna com o Hamas no poder, simplesmente porque o
grupo luta para destruir Israel.
Outro erro seria prolongar a ocupação militar
israelense, como defendem alas radicais do governo Netanyahu. No passado, o
país já manteve tropas em Gaza e no Líbano, sem derrotar os grupos terroristas.
A permanência de tropas israelenses em Gaza só contribuiria para corroer ainda
mais a imagem de Israel com os desgastes intrínsecos a qualquer ocupação, sem
trazer nenhuma garantia de paz duradoura.
A melhor alternativa é a Autoridade Palestina
passar a controlar o governo local, com apoio de tropas de Israel, dos países
árabes e vigilância internacional sobre os corredores estratégicos, usados por
terroristas para contrabandear armas e munição. É fundamental também um
programa de investimento externo maciço para reconstruir o enclave. O objetivo
do Hamas nunca foi melhorar a vida dos palestinos; o foco era destruir Israel.
O auxílio internacional se transformou na extensa rede de túneis usada para esconder
armas, proteger terroristas e planejar ataques. Uma Faixa de Gaza voltada para
o bem-estar dos palestinos, sem bloqueio israelense, é uma aposta que, mesmo
distante, vale a pena. Não transformará Gaza em Riviera, mas poderá resultar
num Estado palestino com a Cisjordânia.
Juro pode subir menos, e equipe volta a falar
em ajuste fiscal
Valor Econômico
A volta de preocupações com contas públicas
no discurso oficial é um bom sinal, que precisará ser acompanhado de atos que
só seriam benéficos para o país
Vistas a princípio como preocupantemente
acomodativas, as explicações do Copom para sua decisão de não sinalizar mais
aumentos de juros em maio tornaram-se claras na ata divulgada na terça-feira: o
cenário para a inflação, claramente adverso, é cheio de obstáculos para o
cumprimento da meta, sem atenuantes no momento. A economia brasileira carrega o
impacto de uma dose extrema de juros que, no entanto, pode não ser atenuada a
curto prazo. A pesquisa pré-Copom indicou que a grande maioria de analistas e consultores
(81%) acha que o ritmo de aperto monetário arrefecerá para menos de 1 ponto
percentual em maio, e só 19% vislumbram alta superior (Valor, ontem). Ainda que as
expectativas para o IPCA estejam mais desancoradas que antes, o ciclo de alta
de juros pode estar mais perto de uma pausa, ou mesmo do fim.
Agora sob o comando de Gabriel Galípolo, o BC
manteve o balanço de riscos inclinado mais para uma alta que para a baixa do
nível de preços e apontou que ainda é muito cedo para que um dos fatores de
amortecimento da inflação mais esperado venha a se materializar - uma
desaceleração da economia mais forte que a esperada. Segundo a ata, “não há
evidência, mesmo incipiente, de uma desaceleração abrupta”. Há sinais tênues de
alguma moderação no crescimento, mas os dados que a sugerem não permitem
conclusões definitivas, são pontuais e sujeitos a diferentes interpretações.
Além disso, o passado recente frustrou várias vezes as previsões de economistas
e do BC de que a economia iria se retrair. Ocorreu o contrário: o PIB cresceu
mais que o esperado.
Por outro lado, há abundância de elementos
que mostram que a economia está crescendo acima de seu potencial, o que até
agora afastou a inflação cada vez mais longe da meta de 3%. O BC ressaltou que
o IPCA seguirá acima do teto da meta (4,5%) por seis meses, descumprindo o novo
sistema de metas, que estabelece que nem o teto nem o piso (1,5%) podem ser
ultrapassados por 6 meses consecutivos. Isso deverá ocorrer por mais tempo. O
relatório de inflação de dezembro projetou que o IPCA só recuará a 4,5% no último
trimestre do ano, e a situação piorou no front inflacionário depois que o
documento foi divulgado. No cenário de referência do BC, a inflação atinge 5,2%
em 2025 e ainda se mantém distante do alvo, em 4%, no terceiro trimestre de
2026, o horizonte relevante para a política monetária.
Há fatores que preocupam muito a curto prazo.
A disparada do dólar elevou os preços das commodities em reais, especialmente
os das carnes, que puxaram a inflação dos alimentos, uma influência
preponderante no IPCA - e no ambiente político -, mas se aplacou
momentaneamente. O Copom, no entanto, não tem certeza sobre a direção do câmbio
no futuro. “Ainda que parte dos riscos tenha se materializado, o Comitê julgou
que eles seguem presentes prospectivamente”.
O cenário externo se tornou mais sombrio, o
que se deve basicamente às incertezas sobre o crescimento e o comportamento da
inflação agravadas pelas políticas de Donald Trump (tema não mencionado no
documento). Ainda que siga sendo considerado “desafiador”, o Copom acha agora
que “cenários mais extremos, com distintos impactos sobre a inflação nas
economias emergentes, têm maior probabilidade de se materializarem”.
Completam o quadro a desancoragem maior da
inflação, o “ritmo bastante intenso” da demanda interna e o desempenho
“pujante” da oferta de crédito. O mercado de trabalho tem se mostrado robusto e
a política fiscal continua expansionista, em desarmonia indesejável com a
política monetária, o que impactou de forma “relevante” a expectativa dos
agentes econômicos sobre a sustentabilidade da dívida e dos preços dos ativos.
O Copom reiterou que isso eleva a taxa de juros neutra da economia e aumenta os
custos da desinflação em termos de impacto nas atividades produtivas.
A colaboração imprescindível do controle
fiscal para o controle da inflação até agora não veio, mas pode entrar em cena,
por motivos eleitorais. Depois de o presidente Lula declarar que 2026 já chegou
e as pesquisas mostrarem que mais gente desaprova que aprova o governo, com
perda de popularidade do presidente até no Nordeste, a equipe econômica voltou
a falar em equilíbrio fiscal. “Vamos ser contracionistas”, disse na terça-feira
ao Valor o
secretário do Tesouro, Rogério Ceron, para que a inflação convirja o mais
rapidamente para as metas. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deu os
mesmos sinais, levantando as expectativas de que o governo fará
contingenciamentos e bloqueios relevantes no orçamento logo no início do
exercício fiscal.
O obstáculo ao acerto fiscal tem vindo do
Planalto. O presidente Lula disse ontem que leva “inflação muito a sério”, mas
não mencionou os gastos do governo, poucos dias após a reunião ministerial em
que afirmou não pretender tomar novas medidas fiscais. O calendário eleitoral
torna-se bem pior para o governo com a economia em retração e a inflação alta.
Ajudar o BC a combater a inflação serve aos propósitos da reeleição de Lula. A
volta de preocupações com contas públicas no discurso oficial é um bom sinal,
que precisará ser acompanhado de atos que só seriam benéficos para o país.
Proposta de Trump para Gaza avilta diplomacia
dos EUA
Folha de S. Paulo
Ideia delirante de tomar conta da região,
removendo 2 milhões de palestinos, ameaça elevar tensão no Oriente Médio
Se já havia tumultuado o mundo com as
propostas bravateiras de anexar o Canadá, comprar
a Groenlândia e retomar o canal do Panamá, Donald Trump se
superou agora em vileza ao sugerir que os Estados
Unidos irão tomar posse de Gaza para transformá-la numa "Riviera
do Oriente
Médio".
A ideia é tão delirante que chega a ser
difícil até organizar uma lista dos problemas que ela acarretaria. O mais óbvio
e grave deles é que seria necessário deslocar cerca de 2 milhões de palestinos
que vivem na área.
E, expressando o que até a extrema direita
israelense evita pronunciar, Trump disse que esses palestinos deveriam ser
levados para a Jordânia e
o Egito para
lá ficarem em caráter permanente. Se realizada, a transferência configuraria
caso de limpeza étnica.
A Casa Branca não delegaria a tarefa a Israel —a
executaria diretamente. "Os EUA tomarão conta da Faixa de Gaza,
nós faremos um trabalho com ela. Nós a possuiremos e seremos responsáveis por
desmantelar todas as bombas perigosas não detonadas e outras armas no
local", declarou
Trump após encontro com o premiê israelense, Binyamin
Netanyahu, que ouvia sorridente.
Obviamente, não existe base jurídica para dar
nem mesmo semelhança de legalidade a tal empreitada. O envolvimento direto e
com tropas dos EUA no conflito israelo-palestino também contraria décadas de
política externa de vários presidentes, incluindo o próprio Trump.
O republicano não descartou explicitamente a
criação de um Estado palestino, mas alguém disposto a apoiar esse Estado não se
apressaria a privá-lo de parte importante das terras que ele ocuparia. Não
existe solução estável para a região que não passe pela medida, prevista desde
a partilha do território determinada pela ONU em 1947.
A sequência de declarações de Trump na terça
(4) faz parecer que ele elaborou a ideia no mesmo dia, sem
consultar membros do governo ou especialistas.
Nessa hipótese, o nível de improviso e
leviandade é incompatível com a diplomacia da maior potência econômica e
militar do planeta. Seria, entretanto, típico do populista, que vê a
geopolítica como uma negociação de bazar —em que as partes começam com posições
grotescamente exageradas para depois chegar a um ponto intermediário que possa
ser descrito como vitória por ambos os lados.
Está-se tratando, porém, de algo muito mais
complexo e sutil. Se, no caso da Groenlândia, Trump pode dizer disparates sem o
perigo de criar dificuldades em campo, no Oriente Médio a situação é sempre
mais volátil.
Declarações impensadas podem ter
consequências desastrosas. O
frágil cessar-fogo em Gaza pode estar sob risco; lideranças árabes
moderadas tendem a se distanciar da Casa Branca; o Irã talvez se sinta mais
compelido a buscar sua bomba nuclear. Trump foi longe demais, até para seus
infames padrões.
Merenda escolar mais saudável
Folha de S. Paulo
Redução do limite de ultraprocessados é
correta pois atinge estrato vulnerável e pode reduzir gasto com obesidade no
SUS
Quando políticas são baseadas em estudos e
experiência, saem ganhando a população e o governo. Esse deve ser o caso da
medida, anunciada pela gestão de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), que diminui o limite de alimentos processados e ultraprocessados na
merenda das escolas públicas de
20% para 15%, com meta de 10% em 2026.
A mudança favorece alunos de um estrato que
padece com déficit nutricional e gera efeitos que podem reduzir gastos no SUS.
As comidas ultraprocessadas são aquelas que
passam por intenso processo de industrialização e contêm alto teor de
ingredientes artificiais, como aromatizantes, emulsificantes, espessantes e
corantes, além de níveis elevados de açúcar, sódio e gorduras —são biscoitos,
salgadinhos, salsicha, macarrão instantâneo, refrigerantes e outros.
Segundo a maior revisão de estudos sobre o
tema, publicada por pesquisadores da Austrália e
dos EUA em março de 2024, elas estão associados a 32 efeitos prejudiciais
à saúde,
incluindo doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade.
Ademais, pesquisas mostram que sua composição
estimula o sistema de recompensa do cérebro, fazendo com que as pessoas queiram
consumir maiores quantidades mesmo que a fome esteja saciada —fenômeno
conhecido como hiperpalatabilidade.
A redução de ultraprocessados no ambiente
escolar também é bem-vinda porque a infância e a adolescência são as fases da
vida mais propensas à formação de hábitos saudáveis.
De acordo com o Atlas 2024 da Federação
Mundial da Obesidade, o índice de jovens brasileiros entre 5 e 19 anos de idade
acima do peso era de 34% em 2019 e tende a saltar para 50% em 2035.
Levantamento da USP e da Fiocruz revelou
que, de 2013 a 2022, o custo de internação de crianças e adolescentes por
obesidade no SUS aumentou
20%, de R$ 145 milhões para R$ 174 milhões. O gasto total com a doença
nesse período superou R$ 1,54 bilhão.
O controle de ultraprocessados na rede
pública de ensino beneficia famílias mais pobres, que têm acesso precário a
alimentos frescos, como frutas e verduras, e a espaços para atividades físicas.
A medida deve ser aliada à educação alimentar
nas escolas e vigilância sobre as informações nos rótulos dos produtos,
que desde
2022 devem alertar para altos índices de sal, açúcar e gorduras.
A obesidade exige ações interdisciplinares e
de longo prazo. Agir na infância produz resultados positivos para os cofres
públicos e, mais importante, para a saúde dos brasileiros.
Depois do pacotinho, a agendinha
O Estado de S. Paulo
Ao apresentar agenda econômica para o próximo
biênio, governo Lula repete os erros do esvaziado pacote fiscal, expõe um
deserto de ideias e explicita a ambição de sobreviver até 2026
A equipe econômica do governo Lula da Silva
elencou sua lista de prioridades para os próximos dois anos. A exemplo do
pacote fiscal, que gerou tanta expectativa quanto frustração, a ponto de ser
chamado de “pacotinho”, a agenda econômica também já pode ser tratada no
diminutivo.
São, ao todo, 25 propostas, o que já
demonstra uma perigosa combinação entre incoerência e otimismo. Afinal, quem
tem 25 prioridades não tem nenhuma, sobretudo quando 15 delas dependem da
aprovação de um Congresso com o qual o governo precisa negociar cada projeto
individualmente.
A lista é encabeçada pelo fortalecimento do
arcabouço fiscal de forma a garantir, ao mesmo tempo, a expansão do Produto
Interno Bruto (PIB), desemprego e inflação baixos e estabilidade da dívida. Em
primeiro lugar, é bastante simbólico que o fortalecimento do arcabouço não
passe, nem superficialmente, por medidas de corte de gastos.
Em segundo lugar, o desempenho econômico do
ano passado explicita a dificuldade do objetivo do governo. O crescimento
surpreendeu e a taxa de desemprego chegou a níveis historicamente baixos, mas a
inflação estourou a meta e a dívida bruta subiu 2,2 pontos porcentuais, para
76,1% do PIB. O endividamento, por sinal, só não aumentou ainda mais porque o
Banco Central queimou reservas para conter a desvalorização cambial em
dezembro.
Com um crescimento econômico menor, como o
projetado para 2025, o desemprego tende a subir e a inflação, a desacelerar. A
trajetória da dívida bruta, no entanto, permanece uma incógnita, pois depende
de muitos fatores, entre os quais despesas que possuem regras próprias e que
crescem à revelia do arcabouço fiscal e dos juros, que aumentam justamente
quando não há credibilidade fiscal.
Já ficou claro que o limite aos supersalários
e a reforma da previdência dos militares, que estão na lista da Fazenda, não
serão suficientes para sinalizar um compromisso firme com o reequilíbrio das
contas públicas. Por outro lado, já se sabe que, a depender de Lula da Silva,
não haverá novas medidas fiscais.
A agenda também insiste em ações que custaram
caro à credibilidade do ministro Fernando Haddad. Mais uma vez, a reforma
tributária sobre a renda foi apresentada associada à promessa de campanha de
isentar impostos de quem ganha até R$ 5 mil mensais e à tributação sobre
milionários.
Para um governo que depende da arrecadação
para cumprir a meta, não parece prudente abrir mão de uma receita líquida e
certa como contrapartida a uma tentativa de fazer os mais ricos pagarem mais na
proporção de seus rendimentos. Não que isso não deva ser proposto, mas seria
útil levar em conta a experiência de muitos países que já tentaram o mesmo sem
muito sucesso antes de se comprometer com a medida.
O Congresso, ademais, não parece disposto a
avalizar pautas impopulares. E nem se pode culpar os parlamentares por essa
postura. Cabe, afinal, ao Executivo apresentar uma agenda que represente um
projeto de país capaz de mobilizar a sociedade. Se assim fosse, angariar o
apoio de deputados e senadores seria um processo quase natural.
O que há, no entanto, é um verdadeiro deserto
de ideias, e a única ambição parece ser a de sobreviver até 2026. O Orçamento é
expressão disso. Até que a peça orçamentária seja aprovada, o governo só poderá
executar 1/18 dos gastos discricionários por mês, à exceção de despesas
obrigatórias como salários e aposentadorias. O detalhe é que a apreciação da
proposta, que deveria ter ocorrido no ano passado, ocorrerá somente após o
carnaval.
Antes disso, o governo pretende concluir a
reforma ministerial para acomodar o Centrão na Esplanada dos Ministérios e
encontrar uma forma minimamente honrosa de entrar em acordo com o Legislativo e
o Supremo Tribunal Federal sobre as emendas parlamentares.
Se já é pouco para quem almeja tentar a
reeleição presidencial, é muito pouco para um governo que se elegeu sob a égide
de salvar a democracia e reconstruir as políticas públicas destruídas pelo
bolsonarismo. Depois do pacotinho, o marqueteiro Sidônio Palmeira terá muito
trabalho para defender essa agendinha.
Proposta imprudente
O Estado de S. Paulo
Após sugerir remoção de toda a população do
Jardim Pantanal, prefeito Ricardo Nunes recua ao ser advertido pelo governador
de SP. Não se administra uma metrópole na base do improviso
Durou cerca de 24 horas a proposta de solução
do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, para um problema de décadas. A decisão
de remover a população do Jardim Pantanal, na zona leste da capital paulista, a
pretexto de resguardá-la dos alagamentos recorrentes no bairro, foi adiada após
seu padrinho político, o governador Tarcísio de Freitas, pedir mais “cautela”
na formulação de projetos para a região.
O Jardim Pantanal, erguido na várzea do Rio
Tietê nos anos 1980, está debaixo d’água há quase uma semana. E não é de hoje
que basta cair uma chuva mais forte sobre a cidade para que o lugar inunde. No
episódio mais grave, registrado em 2009, o Jardim Pantanal ficou mais de um mês
alagado. Agora, com ruas transformadas em canais e casas tomadas pela água
novamente, o prefeito resolveu falar em remoção, uma ideia tão simplista quanto
equivocada.
Segundo Nunes, a Prefeitura realizou um
estudo prévio para a construção de um dique de contenção do Rio Tietê na área
afetada. A obra, contudo, não poderia ser realizada, na visão do prefeito, em
razão do seu custo, da ordem de R$ 1 bilhão. Ademais, para Nunes, seria ocioso
“lutar contra a natureza”.
No mesmo dia em que anunciou a ideia, Nunes
se reuniu com Tarcísio para discutir o drama do Jardim Pantanal. Na ocasião,
foram apresentadas três propostas de intervenção no bairro elaboradas pela
Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (Siurb). A melhor solução
para o problema crônico dos cerca de 45 mil paulistanos que vivem no Jardim
Pantanal, de acordo com o prefeito, seria removê-los de suas casas e deixar
para trás suas histórias e seus vínculos afetivos, comunitários e econômicos,
dando-lhes em troca uma “ajuda financeira” de R$ 20 mil a R$ 50 mil. Essa ação,
porém, custaria quase R$ 2 bilhões ao erário – o dobro, portanto, do custo de
construção do dique que o prefeito havia rejeitado um dia antes.
Outras duas propostas preveem obras de
macrodrenagem a fim de manter os moradores onde estão – e a um custo menor para
a Prefeitura de São Paulo. Por isso, no dia seguinte, em conversa com
jornalistas, coube ao governador do Estado recomendar prudência, com toda a
razão, na análise desses projetos. “Se a gente adotar, na pressão, uma solução
que seja simplista, provavelmente a gente vai dar uma resposta errada”, disse o
governador.
Diante de tanta incerteza, o prefeito Nunes
afirmou que está “avaliando possibilidades” e que não havia “nada definido”
sobre o que fazer no Jardim Pantanal. Por ora, o trabalho será focado em ações
de assistência emergencial. A definição de um projeto definitivo para a região
foi prometida para abril.
O que a Prefeitura poderia fazer de imediato
é concluir as obras de drenagem no Jardim Pantanal que estão atrasadas há mais
de um ano. Enquanto sofre, a população local espera pela instalação de um
pôlder, espécie de muro para conter a água, lançá-la num reservatório e depois
escoá-la por um córrego. Estivesse de pé, decerto essa estrutura teria ao menos
atenuado os efeitos da última enchente.
Os alagamentos na região e em outras áreas da
metrópole tendem a aumentar diante dos eventos climáticos cada vez mais
extremos e recorrentes. Isso exigirá políticas públicas habitacionais e
ambientais bem estruturadas, e não o improviso com que Nunes anunciou o fim de
um bairro para dizer, um dia depois, que ainda analisará opções.
Os alagamentos no Jardim Pantanal não são
mera reação da natureza, mas reflexo de decisões erradas sobre a ocupação do
solo tomadas ao longo de muitos anos. Com ou sem os moradores, qualquer ação na
região custará caro e não pode ser decidida no calor do momento ou apenas
quando o bairro está debaixo d’água.
Seja qual for o projeto escolhido – construir
diques, parques ou remover a população –, espera-se das autoridades uma solução
eficaz e definitiva para o Jardim Pantanal e, sobretudo, para seus milhares de
moradores.
Especialização médica a distância
O Estado de S. Paulo
Cursos ‘lato sensu’, a maioria não
presencial, atendem quem não consegue vaga em Residências
Uma pesquisa da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com a Associação Médica
Brasileira (AMB) sobre cursos de especialização lato sensu em
Medicina acende um alerta sobre a formação desses profissionais. Embora o
título de especialista em determinada área seja condicionado à realização de
Residência Médica, há franco crescimento de especializações que prometem o que
não podem cumprir.
Segundo o levantamento, são quase 2 mil
cursos de especialização em Medicina, sobretudo em instituições particulares.
Mas 41% deles, ou 800, são promovidos na modalidade de ensino a distância (EAD)
e 11%, ou 216, na semipresencial. Menos da metade, ou 927 cursos, é presencial.
Essa formação alternativa se impõe por vários
motivos. Um deles é que o número de vagas em Residências, que são reconhecidas
pelas Sociedades Médicas das áreas, é inferior ao de médicos formados no País.
Em 2022, formaram-se 25,5 mil médicos nas faculdades do Brasil afora, mas havia
apenas 16 mil vagas em Residências. A esse fenômeno se deu o nome de “déficit
de oportunidades”.
Se faltam oportunidades nas Residências,
sobram nas especializações. Esses cursos são mais curtos e demandam menos
recursos. Enquanto uma Residência exige a estrutura de um hospital de ensino,
com a presença de preceptores e supervisores, com formação teórica e prática ao
longo de até 2,8 mil horas, a serem concluídas entre dois e cinco anos, uma
especialização pode ser realizada em 360 horas.
São múltiplas também as vantagens financeiras
– não para os pacientes. O recém-formado em Medicina paga uma mensalidade ao
mesmo tempo que pode ingressar no mercado de trabalho e receber bons
vencimentos, fugindo da bolsa padrão de pouco mais de R$ 4 mil paga a um
residente. Ao término, recebe o diploma da especialização, mas, na prática, não
é especialista em nada.
Como há procura, há oferta. As instituições
encontraram um novo filão de cursos, mais focados, supostamente, no mercado,
embora a Lei do Mais Médicos, de 2013, vincule a abertura de graduações de
Medicina à oferta de Residência Médica. Em que pese a expansão dos cursos na
última década, parece que a letra da lei não tem surtido efeito.
Por isso, a cobrança da AMB por mais
fiscalização se justifica diante dos apontamentos da pesquisa conduzida com a
FMUSP. Cabe ao governo federal, por meio dos Ministérios da Educação e da
Saúde, acompanhar a oferta desses cursos, cobrando que as faculdades que se
engajam no mercado dos cursos de Medicina também atendam a demandas sociais,
com a formação de especialistas de fato e de direito nas diversas áreas, como
cardiologia, psiquiatria, dermatologia, pediatria e oncologia, entre outras.
Não menos importante, investimentos são necessários nas estruturas das Residências, e o valor da bolsa demanda incremento, haja vista que a contrapartida financeira é fundamental para atrair bons residentes. Assim, conciliam-se interesses de mercado e os interesses sociais. Sem médicos devidamente especializados e qualificados, é a população quem padece.
Alerta para o avanço das arboviroses
Correio Braziliense
Autoridades de saúde começam o ano com a
incumbência de manter no radar o enfrentamento à dengue, à chikungunya e à
febre amarela
Sob a sombra da avalanche dos casos de dengue
em 2024, autoridades de saúde começam este ano com a incumbência de manter no
radar outras duas arboviroses: a febre amarela e a chikungunya. O aumento
de ambas as infecções no Brasil começa a destoar da curva, evidenciando
que o combate ao Aedes aegypti, que transmite as três doenças, e os avanços na
imunização são estratégias vitais para um país que se vê sobressaltado por
urgências sanitárias desde 2020, com a chegada da covid-19.
O enfrentamento à febre amarela parece mais
evidente. No último domingo, o Ministério da Saúde emitiu um alerta sobre o
aumento da transmissão da doença em quatro unidades da Federação: São Paulo,
Minas Gerais, Roraima e Tocantins. Em nota técnica às secretarias de Saúde dos
estados, a pasta recomendou a intensificação de ações de vigilância e a
imunização nas áreas de risco. Salientou ainda que o período de maior
preocupação com a enfermidade vai de dezembro a maio, praticamente o mesmo da
dengue.
Essa janela de vulnerabilidade engloba também
o carnaval, que, pelo maior deslocamento de pessoas, favorece o avanço de
doenças virais. No caso da disseminação da febre amarela, o risco sobrevoa
cidades que fazem parte dos grandes circuitos momescos do país. São Paulo, por
exemplo, concentra a maior parte dos casos da doença neste ano e calcula que 16
milhões de pessoas sairão às ruas até a quarta-feira de cinzas. Belo Horizonte
espera 6 milhões.
Há outro agravante: é pertinente imaginar que
foliões podem não saber se estão, de fato, protegidos. Isso porque, em 2018,
seguindo um protocolo de emergência da Organização Mundial da Saúde (OMS), o
Brasil aplicou doses fracionadas do imunizante na Bahia, em São Paulo e no Rio
de Janeiro. Quem recebeu essa vacina precisa completar a imunização, e pode ter
se esquecido ou não ter sido orientado sobre o reforço. Caso planeje viajar
para locais em que há transmissão de febre amarela ou regiões rurais e de mata,
deve fazê-lo com pelo menos 10 dias de antecedência.
Considerando que faltam praticamente três
semanas para o carnaval, são urgentes campanha de esclarecimento sobre a
cobertura vacinal e disponibilidade de vacinas. Há de se ressaltar que o
governo federal trabalha no envio de 800 mil doses extras para São Paulo até o
início deste mês. Mas é preciso investir no escoamento da imunização o quanto
antes, considerando, ainda, o obstáculo da resistência vacinal.
Quanto à chikungunya, o foco de atenção é o
Centro-Oeste. Ao Correio, o sanitarista e professor da Universidade de Brasília
(UnB) Jonas Brant alertou que a região concentrou a maioria dos casos em 2024 e
que, pelos números já registrados, o cenário deve se repetir neste ano. Ainda
não há vacina no Brasil disponível para a doença, que, devido às dores
incapacitantes, demanda uma rede de suporte mais complexa, com assistência do
diagnóstico à reabilitação, o que pode durar meses.
Fica claro que, ainda que compartilhem o mesmo vetor, febre amarela, chikungunya e dengue demandam respostas diferentes das autoridades. O início da gestão em saúde em prefeituras, em razão das eleições municipais de 2024, tende a deixar a situação ainda mais complexa. É certo, porém, que não se trata de um desafio sanitário a ser enfrentado apenas pelos gestores públicos. As arboviroses são, de fato, uma luta de todos.
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