O Estado de S. Paulo
Quanto mais um partido antidemocrático
cresce, mais difícil combatê-lo
Oque fazer quando um número crescente de eleitores apoia um partido que representa uma ameaça à ordem democrática? Esse é o dilema que a Alemanha enfrenta. O partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que obteve 20,8% dos votos nas eleições federais em fevereiro e ficou em segundo lugar, foi oficialmente classificado, no início de maio, como uma organização “comprovadamente extremista de direita” pelo Escritório Federal de Proteção da Constituição (BfV). Na semana seguinte, o BfV anunciou que suspenderia a avaliação até que a Justiça decidisse sobre uma ação movida pela própria AfD contra a decisão – mas sem revogar a classificação anterior.
A classificação, baseada em um relatório de
mais de mil páginas, não equivaleria à proibição do partido, mas permite uma
vigilância ampliada, inclusive com o uso de informantes. O BfV não é um
tribunal nem pode banir partidos; sua função é fornecer subsídios técnicos para
possíveis decisões políticas. Para proibir um partido, é necessário um pedido
formal ao Tribunal Constitucional, feito pelo governo federal ou pelo
parlamento.
Segundo o BfV, a AfD promove um conceito
étnico e hereditário de povo, incompatível com os princípios constitucionais
alemães. A lógica do parecer do BfV é clara: não há categorias de segunda
classe de cidadãos alemães. Propagar o contrário, mesmo por vias democráticas,
fere a Constituição – não importa quantos votos receba.
DEBATE HISTÓRICO. A decisão do BfV reacendeu
um debate histórico e jurídico: é possível ou desejável proibir um partido
político que cresce pelas urnas, mas rejeita os fundamentos democráticos?
Essa não é uma discussão nova na Alemanha. Em
1930, durante a República de Weimar, um grupo de juristas do governo da Prússia
produziu uma extensa nota técnica defendendo a proibição do Partido Nazista. O
documento, de 97 páginas, argumentava que a NSDAP buscava ativamente instaurar
um regime ditatorial através da revolução e da violência, mesmo usando uma
retórica legalista.
Robert Kempner, um dos autores da nota,
alertou na época que Hitler e seus aliados apenas fingiam respeitar as leis
para evitar represálias, mas que sua intenção era claramente golpista. O texto
foi entregue ao então chanceler Heinrich Brüning. A resposta foi de inércia.
Brüning temia que uma proibição alimentasse o vitimismo dos nazistas e os
tornasse mais populares. Ele preferiu confrontar os nazistas politicamente, mas
em 1933 Hitler foi nomeado chanceler. Depois da guerra, Kempner declarou: “Com
aquela decisão, selou-se o destino da República de Weimar”.
PARADOXO. Apesar das diferenças entre a AfD e
o NSDAP, o paralelismo com os dias atuais é inevitável. A AfD explora um
discurso antissistema, mobiliza ressentimentos contra minorias e adota
linguagem codificada para contornar limites legais. Apesar disso, cresce em
apoio, especialmente no leste alemão. Hoje, diferentemente da NSDAP em 1930, a
AfD já é um partido de grande expressão nacional. Justamente por isso, muitos
juristas e políticos hesitam em pedir sua proibição. É o paradoxo da
democracia: quanto mais um partido antidemocrático cresce, mais difícil se
torna combatê-lo por vias legais, sem parecer autoritário.
A Alemanha já proibiu partidos como o Partido
do Reich Socialista em 1952 e o Partido Comunista em 1956. No entanto,
tentativas posteriores de banir o NPD, partido de orientação neonazista, não
tiveram sucesso na Corte Constitucional, em parte porque a agremiação foi vista
como pequena demais para representar uma ameaça à democracia.
Friedrich Merz, o novo chanceler, expressou
cautela quanto à proibição da AfD, argumentando que não se pode simplesmente
excluir milhões de eleitores do processo democrático. É, portanto, pouco
provável que ele busque iniciar um processo de proibição, que poderia demorar
anos e desviar tempo e energia dos grandes desafios econômicos que sua coalizão
busca resolver.
Ainda assim, preocupa o fato de que,
justamente quando as últimas testemunhas do nazismo estão morrendo, populistas
de extrema direita busquem ressuscitar “velhos e malignos fantasmas” – como
alertou o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, ao marcar os 80 anos do
fim do regime nazista.
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