Valor Econômico
Decreto de regulação do EaD sofreu resistência de representantes do setor, contrários à melhoria na qualidade da formação de profissionais
Um decreto que o governo anuncia para hoje,
apertando as regras para os cursos de educação à distância, movimentou os
corredores e gabinetes de Brasília nos últimos meses. Representantes dos
maiores grupos educacionais do país fizeram uma verdadeira blitz em diversos
órgãos para suavizar a nova regulação e preservar uma fonte considerável de
lucro.
Dados do Censo da Educação Superior, produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostram que a oferta de vagas em cursos de educação à distância (EaD) cresceu 167,5% nos últimos cinco anos, enquanto na modalidade presencial elas caíram 13,5%.
Praticamente quatro em cada cinco vagas
oferecidas para ingresso em cursos de graduação no Brasil estão concentradas no
modelo à distância. Num país de dimensões continentais e renda baixa, o uso da
tecnologia para a disseminação massificada de conhecimentos se configura como
uma alternativa para ampliar o número médio de anos de escolaridade da
população.
Sem regras firmes relativas à qualidade desse
serviço, porém, o crescimento exponencial do EaD pelas faculdades privadas se
tornou tão somente fonte de lucros num mercado de venda de ilusão de
prosperidade para milhões de jovens.
A baixa qualificação da mão-de-obra é uma das
principais fontes de queixa de executivos e fator que contribui para a baixa
produtividade das empresas brasileiras. Apesar disso, 93% das 10 milhões de
vagas de ensino tecnológico estão concentradas no ensino à distância. Melhorar
a regulação desse serviço é fundamental, portanto, para melhorar a capacitação
profissional de nossos trabalhadores.
Situação mais preocupante emerge quando se
trata da formação de nossos futuros professores. Quase nove em cada dez vagas
de licenciatura - cursos que preparam para a carreira docente, nas áreas de
pedagogia, letras, matemática, ciências e artes - estão concentradas no ensino
à distância.
Enquanto os países avançados e nossos
vizinhos com os melhores desempenhos no teste Pisa, como Chile e México,
baseiam-se no método presencial para a formação de seus professores, no Brasil
prevalecem as aulas assíncronas ministradas à distância. Para as faculdades
privadas, o EaD minimiza custos e maximiza receitas; já o país acumula
prejuízos com milhares de professores “formados” sem prática e sem o
aprendizado de técnicas de ensino que só se adquirem em salas de aula de
verdade.
Não é por coincidência que nossos níveis
educacionais deixem tanto a desejar. O estudo “Aprendizagem na Educação Básica:
situação brasileira no pós-pandemia”, produzido pela entidade Todos pela
Educação com dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), revela
que, em 2023, apenas 55,1% dos estudantes do 5º ano do ensino fundamental
tinham aprendizagem adequada em Língua Portuguesa e 43,5% em Matemática. Sem
professores formados adequadamente, fica difícil esperar que a educação seja um
instrumento relevante para a mobilidade social e a redução das desigualdades.
Embora tenha havido uma proliferação no
número de instituições privadas de ensino nas últimas décadas no Brasil, o
setor passou por uma intensa concentração nos últimos anos. De acordo com o
anuário Valor 1000, os dez maiores grupos educacionais do país tiveram um
faturamento conjunto de R$ 27,8 bilhões em 2023. E é justamente para defender
esse mercado bilionário que representantes do setor têm feito uma forte pressão
em Brasília para evitar que o Ministério da Educação imponha condições mais
duras a respeito da qualidade dos cursos EaD no Brasil.
De acordo com a plataforma Agenda
Transparente, um serviço desenvolvido pela organização Fiquem Sabendo que
consolida informações dos compromissos públicos de autoridades do governo
federal, representantes dos grupos educacionais têm feito uma romaria de
visitas para defender seus interesses.
Desde que as discussões sobre a nova
regulação ganharam força no governo, a Secretaria de Regulação e Supervisão da
Educação Superior do MEC vem sendo assediada com audiências solicitadas por
executivos de gigantes como Cogna, Yduqs, Ânima, Ser Educacional e Virtu
Educação. Muitas vezes os encontros são intermediados por entidades como
Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), Associação
Nacional das Universidades Particulares (ANUP), Associação Nacional de Educação
Católica do Brasil (Anec), Associação Brasileira das Faculdades (Abrafi) e
Associação dos Centros Universitários (Anaceu), que concentram e multiplicam o
poder de influência do setor.
Nas últimas semanas, com a minuta do decreto
no Palácio do Planalto, o lobby subiu de nível. A proposta do MEC era até
tímida em comparação às melhores práticas internacionais: exigir pelo menos que
50% da carga horária nos cursos de licenciatura sejam presenciais. O lobby das
universidades privadas ainda conseguiu emplacar que aulas síncronas mediadas
fossem computadas como presenciais. E ainda assim acharam ruim.
Parece que mais uma vez a gana privada por
maior lucro prevaleceu sobre o interesse público na melhoria da educação
brasileira.
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