O Globo
Com os anos, percebi que meu retiro
espiritual estava baseado numa área explosiva, um grande perigo para a
estabilidade mundial
Desculpem um tema tão distante, mas veio à
memória uma viagem que fiz ao Himalaia, ainda no fim do século. O estopim foi
um atentado contra turistas em Pahalgam e o perigo de guerra nuclear
entre Índia e Paquistão. Foi
uma viagem mais voltada para o espírito. Tomar um chá no topo do mundo, sei lá.
Kashmir ainda era uma palavra em inglês, que supunha ser masculina.
Desembarquei em Srinagar, uma cidade famosa
pelas suas pensões no Lago Dal, as houseboats, que você alcança com pequenas
embarcações, as shikaras. Dali, viajei uns 60 quilômetros até Gulmarg, que no
inverno vira estação de esqui. Vi tropas de burros subindo a montanha, tocadas
por homens vestindo sobretudos. A quietude do lugar, a sensação de estar num
ponto alto do mundo eram fascinantes.
O problema acontecia quando voltava a Srinagar: sempre havia manifestações com a polícia quebrando o pau literalmente, porque eram cassetetes de madeira. Aos poucos, a viagem espiritual foi sendo atropelada pelo caminhão da História. O Kashmir virou Caxemira, espaço de um drama que começou antes da independência da Índia, mas se tornou agudo com a repartição do país.
Descobri que o Partido do Congresso, liderado
por Gandhi e Nehru, queria um país unificado apesar das diferenças: um terço
dos habitantes era muçulmano, e seu líder, Mohamad Ali Jinnah, queria um país
próprio. Em 1947, a partição acabou acontecendo, movendo milhões de pessoas e,
infelizmente, matando milhares em razão de um problema mal resolvido.
A Caxemira situada na fronteira teve destino
singular. A maioria de sua gente era muçulmana, mas o marajá que a dirigia,
Hari Singh, era hindu e, diante do avanço das milícias, pediu socorro. Nehru
aceitou enviar tropas desde que o reino assinasse uma adesão oficial à Índia.
Esse gesto desfechou o primeiro conflito, que terminou com um cessar-fogo
cindindo a Caxemira em duas. Sucederam-se pequenos conflitos militares, com
mais ou menos 70 mil mortos. A guerra só terminou em 1971, com um cessar-fogo.
As tensões nunca acabaram. Além da
divergência entre Índia e Paquistão, a China também detém um pedaço da
Caxemira. Os chineses controlam uma região semidesértica, Aksai Chin, que tem
para eles importância estratégica, marcada pela construção de uma estrada que
liga o Tibete à província chinesa de Xinjiang.
Considerando que Índia e Paquistão têm armas
nucleares e nunca se entenderam sobre a Caxemira, que permanece
majoritariamente muçulmana, com os anos percebi que meu retiro espiritual
estava baseado numa área explosiva, na verdade um grande perigo para a estabilidade
mundial.
O atentado aos turistas matou 26 pessoas.
Poderia ser uma delas, se acontecesse no início do século, antes de me inteirar
das condições históricas do lugar. Se pudesse, gostaria de voltar e, agora sim,
escrever e trazer imagens da Caxemira. Meu tema não seria o Himalaia, mas o Rio
Indo, que nasce no Tibete e atravessa a região. Com seus afluentes, o rio é um
ponto nervoso na crise. Tanto que a Índia, depois do atentado, não só
bombardeou posições no Paquistão, como ameaçou cortar a água do vizinho.
China e Paquistão têm um tratado de
repartição de águas, e ele é um instrumento em que os países conseguem
cooperar. A Índia pode construir hidrelétricas, mas teoricamente não pode
deixar seu rival sem água. Na verdade, se isso acontecer, o Paquistão será
atingido frontalmente na segurança alimentar, pois suas plantações se
concentram no Vale do Pendjab.
A Caxemira que passei a ver um pouco mais de
perto, com o tempo, continua sendo um lugar muito bonito com seus lagos, vales
e o próprio Himalaia. Mas é um nó político. No princípio, depois de 1947, a
Índia reconheceu alguma autonomia: a região tinha uma bandeira própria e leis
que impediam venda de terras para quem não fosse do lugar. Mas, numa área com
maioria muçulmana tão pronunciada, fala-se muito num plebiscito para que o povo
do lugar defina seu caminho. Isso a Índia ainda não aceita.
Não esqueço que tomei chá à beira de um
vulcão político que não só rachou a Índia, como produziu dois Paquistões, o
Ocidental e o Oriental, que viria ser Bangladesh. Como diz a canção: é preciso
ficar atento e forte.
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