segunda-feira, 30 de junho de 2025

Construir pontes, não muros - Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

O Estado de S. Paulo

O apelo de Francisco aplica-se aos países e aos sistemas políticos e econômicos que internamente criam barreiras entre os vários segmentos sociais

O papa Francisco foi um frasista como poucos que o mundo produziu. Não frases de efeito, de impacto midiático. Os seus dizeres eram sempre recheados de conteúdo, de mensagens para reflexão sobre a realidade que nos cerca. Devem ser considerados como lição de vida, como ensinamento para o comportamento do homem, da sociedade e das nações. Podem ser acolhidos ou não, mas, com certeza, sempre conduzem a uma análise que, em regra, abala convicções já sedimentadas e desperta consciências.

Um exemplo de sua sensibilidade, acuidade e completa ausência de preconceito foi a declaração que fez em visita a um presídio. Ao reunir-se com os presos, afirmou “eu poderia ser um de vocês”. Mostrou ter plena ciência de que o crime é um fato humano e social, que pode envolver qualquer um de nós.

Uma frase que denota o seu pleno entendimento das conturbadas e belicosas relações internacionais, especialmente no que tange ao dramático problema dos refugiados e dos imigrantes, foi dita como veemente contestação à postura desumana e cruel dos governantes que não querem acolhê-los em seus países: “Vamos construir pontes, não muros”.

Essa alusão às duas obras não poderia ser mais adequada e atual. O muro divide e isola, a ponte aproxima e congrega. O muro simboliza o egoísmo e a ponte, a união.

Esses símbolos e os seus significados não se aplicam apenas às questões dos que imploram por abrigo e acolhimento em nações que não são as deles.

O muro, no curso da humanidade, foi erguido com base na falsa ideia da superioridade de uns em relação a outros.

A alegoria utilizada pelo papa possui um eloquente significado, como se fora uma sentença declaratória de uma cruel realidade secular e ainda presente. Declara o estado de injustiça imperante no mundo.

Mas a sua declaração contém também uma condenação: condena o egoísmo, a insensibilidade, a falta de humanidade de significativa parcela da sociedade mundial.

Os muros são construídos pelo material da cobiça, do apego cego e sem concessões ao que é meu em detrimento daquilo que poderia ser do outro.

O consumismo, como espinha dorsal de um capitalismo excludente de outros valores, a competição pelo ter, com desprezo absoluto pelo que é, afasta pessoas e grupos, sendo fator de desagregação e de ruptura dos laços de solidariedade.

Ao lado da cultura argentária temos a ânsia pelo poder, pela supremacia de uns sobre outros e pela submissão desses, como fatores de guerras que chegam ao ponto de extermínios de povos e de nações, tal como se assiste nos dias de hoje.

Assim está o mundo, não diferente do que sempre foi. Na contramão de setores que evoluem, da tecnologia que alcança patamares inéditos, a mostrar a estagnação, e mesmo o retrocesso do homem, que continua a sua marcha destruidora com desprezo pelo amor ao próximo. Nós, humanos, não estamos tratando, na expressão de alguém, da “patologia da alma” que atinge quase a todos e quase a tudo.

Nesse panorama, as pontes que com esforço foram construídas estão sendo destruídas facilmente.

O candente apelo do papa Francisco, para que muros que separam e expulsam sejam substituídos por pontes que agregam e unem, não se refere apenas às nações que não acolhem imigrantes e refugiados. Aplica-se aos países e aos sistemas políticos e econômicos que internamente criam barreiras entre os vários segmentos sociais.

Não é de recente data, aliás é histórica, a separação discriminatória existente em nosso país. Há segmentos das elites que não só ficam inertes diante das carências e misérias sociais, como não querem sequer presenciá-las. Há pouco tempo alguém me disse que não se deveria fornecer comida aos moradores de rua, pois do contrário eles permaneceriam em certa região da cidade para serem alimentados... Suprema insensibilidade de um cidadão “bem-posto”, tido como “homem de bem”.

Em outra ocasião, um porteiro de edifício me disse: “São poucos os que nos cumprimentam, nos dão bom dia ou conversam conosco, como o senhor”. Exemplo eloquente da abominável separação, ou muros, de classes. Resquício da escravidão, prova do regime de castas ainda vigente. Intriga-me saber em que se baseiam aqueles que se consideram superiores. Não tenho resposta.

Os que lutam pela diminuição das carências, pelo término desse apartheid caboclo, pela justiça social, enfim, sempre cobraram que o Estado saísse de sua inércia e agisse. Pois bem, quando ocorre alguma ação positiva as camadas privilegiadas protestam.

Um amigo, morador de pequena cidade interiorana, estava indignado, pois a prefeitura local passou a fornecer uma série de benefícios aos menos aquinhoados. Com isso, a cidade estava com falta de mão de obra, pois segundo ele, não queriam mais trabalhar. O município fornecia escola em tempo integral, transporte escolar, ambulância para remoção dos doentes, ambulatório médico e tantos outros favorecimentos básicos. E o que muito o revoltava era um pequeno auxílio mensal em dinheiro.

Pontes entre nações não estão ao nosso alcance, mas derrubar os muros internos e construir canais de solidariedade é mais do que possível para nós. É um dever de humanidade.

 

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