O Estado de S. Paulo
O apelo de Francisco
aplica-se aos países e aos sistemas políticos e econômicos que internamente
criam barreiras entre os vários segmentos sociais
O papa Francisco foi um
frasista como poucos que o mundo produziu. Não frases de efeito, de impacto
midiático. Os seus dizeres eram sempre recheados de conteúdo, de mensagens para
reflexão sobre a realidade que nos cerca. Devem ser considerados como lição de
vida, como ensinamento para o comportamento do homem, da sociedade e das
nações. Podem ser acolhidos ou não, mas, com certeza, sempre conduzem a uma
análise que, em regra, abala convicções já sedimentadas e desperta
consciências.
Um exemplo de sua sensibilidade, acuidade e completa ausência de preconceito foi a declaração que fez em visita a um presídio. Ao reunir-se com os presos, afirmou “eu poderia ser um de vocês”. Mostrou ter plena ciência de que o crime é um fato humano e social, que pode envolver qualquer um de nós.
Uma frase que denota o seu
pleno entendimento das conturbadas e belicosas relações internacionais,
especialmente no que tange ao dramático problema dos refugiados e dos
imigrantes, foi dita como veemente contestação à postura desumana e cruel dos
governantes que não querem acolhê-los em seus países: “Vamos construir pontes,
não muros”.
Essa alusão às duas obras
não poderia ser mais adequada e atual. O muro divide e isola, a ponte aproxima
e congrega. O muro simboliza o egoísmo e a ponte, a união.
Esses símbolos e os seus
significados não se aplicam apenas às questões dos que imploram por abrigo e
acolhimento em nações que não são as deles.
O muro, no curso da
humanidade, foi erguido com base na falsa ideia da superioridade de uns em
relação a outros.
A alegoria utilizada pelo
papa possui um eloquente significado, como se fora uma sentença declaratória de
uma cruel realidade secular e ainda presente. Declara o estado de injustiça
imperante no mundo.
Mas a sua declaração contém
também uma condenação: condena o egoísmo, a insensibilidade, a falta de
humanidade de significativa parcela da sociedade mundial.
Os muros são construídos
pelo material da cobiça, do apego cego e sem concessões ao que é meu em
detrimento daquilo que poderia ser do outro.
O consumismo, como espinha
dorsal de um capitalismo excludente de outros valores, a competição pelo ter,
com desprezo absoluto pelo que é, afasta pessoas e grupos, sendo fator de
desagregação e de ruptura dos laços de solidariedade.
Ao lado da cultura
argentária temos a ânsia pelo poder, pela supremacia de uns sobre outros e pela
submissão desses, como fatores de guerras que chegam ao ponto de extermínios de
povos e de nações, tal como se assiste nos dias de hoje.
Assim está o mundo, não
diferente do que sempre foi. Na contramão de setores que evoluem, da tecnologia
que alcança patamares inéditos, a mostrar a estagnação, e mesmo o retrocesso do
homem, que continua a sua marcha destruidora com desprezo pelo amor ao próximo.
Nós, humanos, não estamos tratando, na expressão de alguém, da “patologia da
alma” que atinge quase a todos e quase a tudo.
Nesse panorama, as pontes
que com esforço foram construídas estão sendo destruídas facilmente.
O candente apelo do papa
Francisco, para que muros que separam e expulsam sejam substituídos por pontes
que agregam e unem, não se refere apenas às nações que não acolhem imigrantes e
refugiados. Aplica-se aos países e aos sistemas políticos e econômicos que
internamente criam barreiras entre os vários segmentos sociais.
Não é de recente data, aliás
é histórica, a separação discriminatória existente em nosso país. Há segmentos
das elites que não só ficam inertes diante das carências e misérias sociais,
como não querem sequer presenciá-las. Há pouco tempo alguém me disse que não se
deveria fornecer comida aos moradores de rua, pois do contrário eles
permaneceriam em certa região da cidade para serem alimentados... Suprema
insensibilidade de um cidadão “bem-posto”, tido como “homem de bem”.
Em outra ocasião, um
porteiro de edifício me disse: “São poucos os que nos cumprimentam, nos dão bom
dia ou conversam conosco, como o senhor”. Exemplo eloquente da abominável
separação, ou muros, de classes. Resquício da escravidão, prova do regime de castas
ainda vigente. Intriga-me saber em que se baseiam aqueles que se consideram
superiores. Não tenho resposta.
Os que lutam pela diminuição
das carências, pelo término desse apartheid caboclo, pela justiça social,
enfim, sempre cobraram que o Estado saísse de sua inércia e agisse. Pois bem,
quando ocorre alguma ação positiva as camadas privilegiadas protestam.
Um amigo, morador de pequena
cidade interiorana, estava indignado, pois a prefeitura local passou a fornecer
uma série de benefícios aos menos aquinhoados. Com isso, a cidade estava com
falta de mão de obra, pois segundo ele, não queriam mais trabalhar. O município
fornecia escola em tempo integral, transporte escolar, ambulância para remoção
dos doentes, ambulatório médico e tantos outros favorecimentos básicos. E o que
muito o revoltava era um pequeno auxílio mensal em dinheiro.
Pontes entre nações não
estão ao nosso alcance, mas derrubar os muros internos e construir canais de
solidariedade é mais do que possível para nós. É um dever de humanidade.
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