Valor Econômico
Trump exprime o declínio dos valores e das ideias que inspiraram os EUA na construção da ordem mundial do pós-guerra
Avaliado em seus próprios termos e objetivos,
o projeto iluminista da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, está fazendo água
diante da alucinante e alucinada competição entre as lideranças contemporâneas
e seus asseclas para mergulhar o planeta nos esgotos da barbárie.
O filósofo Fredric Jameson, no livro “A
Cultura do Dinheiro” já advertia no início do milênio: “Os quatro pilares
ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo — constituições, contratos,
cidadania e sociedade civil — são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre
lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira
situação de penúria”. Não podemos colher outro ensinamento dos embates travados
por Trump para tornar a América Grande Outra Vez.
Peço licença ao leitor para retomar considerações a respeito da Grande América, o país que emergiu dos sofrimentos das Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial.
O imaginário político predominante no New
Deal tinha uma visão progressista acerca do papel a ser exercido pelos Estados
Unidos. Em claro antagonismo com as práticas das velhas potências, os Estados
Unidos — tomando em conta o seu auto-interesse de forma esclarecida — se
empenharam na reconstrução europeia e apoiaram as lutas pela descolonização.
É oportuno registrar as origens do projeto
político, social e econômico que presidiu os avanços do pós-guerra. Discursando
no Congresso do Partido Democrata em 1936 Franklin D. Roosevelt denunciou os
poderes da oligarquia financeira no controle da sociedade e da economia.
“Era natural e talvez humano que os príncipes
privilegiados dessa nova dinastia econômica, sedentos por poder, tentem
alcançar o controle do próprio governo. Eles criaram um despotismo e o
embrulharam nos vestidos de sanções legais. Em seu serviço, novos mercenários
procuraram regimentar o povo, seu trabalho e sua propriedade.”
Essa turma está de volta. Donald Trump
entusiasmado com favores e poderes da oligarquia encarregou seus auxiliares de
cortar os direitos sociais e econômicos de seus cidadãos em nome da eficiência
dos mercados.
Daron Acemoglu escreveu no Project Syndicate:
“nos Estados Unidos, o status tornou-se firmemente ligado ao dinheiro e à
riqueza durante a Revolução Industrial, e a desigualdade de renda e riqueza
disparou como resultado. Embora tenha havido períodos em que a intervenção
governamental buscou reverter a tendência, a sociedade americana sempre foi
estruturada em torno de uma hierarquia de status íngreme.”
Nos idos de 2018, Martin Wolf, editor do
“Financial Times”, denunciou as manobras de Donald Trump para implodir a ordem
mundial. “São características destacadas do comportamento de Trump suas
invenções, sua autocomiseração e sua prática da intimidação: os outros,
inclusive os aliados históricos, “estão zombando de nós” em relação ao clima ou
“nos enganando” em relação ao comércio exterior. A União Europeia, argumenta
ele, “foi implantada para tirar proveito dos EUA, certo? Não mais... Esse tempo
acabou”.
Trump exprime o declínio dos valores e das
ideias que inspiraram os Estados Unidos na construção da chamada ordem mundial
do pós-guerra. Terminado o conflito, as forças vitoriosas, democráticas e
antifascistas trataram de criar instituições destinadas a impedir a repetição
da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potências e da
economia destravada.
A civilização ocidental, disse Gandhi, teria
sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do século XX,
além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem finalmente estendido
os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos
os cidadãos. Mas, talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva
em seu paradoxo: a construção da República dos Bárbaros. Uma novidade política
engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias
republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pela “tirania das boas
intenções”.
Os deserdados da civilidade simulam retidão
moral para praticar as brutalidades dos homens de bem. Os direitos individuais
e os valores da modernidade são tragados no redemoinho do moralismo
particularista e exibicionista dos amorais. Trump exibiu de forma contundente o
papel do ultraje pessoal na avacalhação do debate público. A ofensa pessoal
desqualificadora usada como argumento e a resposta no mesmo tom são
instrumentos da brutalização das consciências.
Perorando diante de uma plateia com algumas
milhares de pessoas na terça-feira em Michigan, Trump usou abusou de sua
contundência antirrepublicana e imprecou contra o judiciário americano,
referindo-se a juízes como comunistas.
“Não podemos permitir que um punhado de
juízes comunistas, de extrema esquerda, obstruam a aplicação de nossas leis e
assumam os deveres que pertencem exclusivamente ao presidente dos EUA”,
afirmou. “Os juízes estão tentando tirar o poder dado ao presidente para manter
nosso país seguro.”
Os projéteis disparados no debate ganharam
impulso nos Facebooks, Twitters e Instagrams da vida. Os impropérios lançados
das plataformas da arrogância não atingiram apenas os dois debatedores, mas
maltrataram impiedosamente os princípios elementares da convivência civilizada.
Os tecladistas alcançam a proeza de cometer cinco atentados contra os
adversários numa frase de 12 palavras.
Bárbaros do teclado, como Trump e
assemelhados, manejam com desembaraço a técnica das oposições binárias, método
dominante nas modernas ações e interações entre os participantes das redes. Nos
comentários da internet, vai “de vento em popa” o que Herbert Marcuse chamou de
“automatização psíquica” dos indivíduos. Os processos conscientes são
substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre
grosseiras, corpóreas.
O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o mal, está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades exaltadas. A indignação individualista e os arroubos moralistas são expressões da impotência que, não raro, se metamorfoseia em desvario autoritário.
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