Valor Econômico
Autoridade dos dados não vem apenas de planilhas precisas, mas de um equilíbrio delicado entre rigor científico, confiança política e uso pela sociedade
Um sistema de estatísticas de qualidade tem papel central no mundo contemporâneo. Não por acaso, pois na democracia de massas não há agenda nacional legítima sem alicerce estatístico. Na verdade, sem dados, a democracia vira um cabo de guerra de narrativas (exemplo: negacionismo da pandemia). As estatísticas representam o único campo de diálogo no qual governo, oposição e sociedade podem debater fatos. Contudo, é preciso frisar que a autoridade dos dados não vem apenas de planilhas precisas, mas de um equilíbrio delicado entre três pilares: rigor científico, confiança política e uso pela sociedade. Quando uma dessas frentes falha - seja por manipulação, isolamento técnico ou descrédito popular -, os dados perdem poder. Por conta disso, a autoridade dos dados não é dada: deve ser conquistada e mantida a cada dia.
No Brasil, essa dependência de dados
entendidos como confiáveis se torna ainda mais crítica diante de um cenário
econômico e político desafiador, como veremos ao longo do texto.
Vamos às evidências. Ao analisar o desempenho
dos principais agregados macroeconômicos, constata-se que estão satisfatórios -
o PIB cresce razoavelmente, a taxa de desemprego persiste num patamar próximo
ao das mínimas históricas e a taxa de inflação permanece num nível aceitável.
No entanto, a taxa de juro em torno de 7% reais ao ano (a.a.), necessária para
estabilizar a inflação próxima à meta de 3% a.a., tem sido fator de imensa
preocupação para os agentes econômicos. Afinal, em um cenário com juro real tão
elevado, é preciso forte controle das contas públicas para mitigar o risco de
desgoverno da dívida pública.
Contudo, o clima político dificulta um
concerto para equilibrar as contas do setor público. O agastamento na relação
entre os poderes Executivo e Legislativo - há grande dissintonia entre as
pautas que o governo federal quer priorizar e as que os presidentes das casas
legislativas efetivamente implementam - tem sido fator de forte desconfiança
quanto à viabilidade de um ajuste fiscal convincente. Para piorar, com o avanço
crescente do Congresso Nacional no controle do Orçamento público, o clima tenso
entre os dois Poderes não dá sinais de arrefecer - o decreto legislativo que
revogou o decreto presidencial do IOF e a sinalização do Executivo de que
recorrerá ao STF dão uma boa medida da situação.
Assim, embora haja um ambiente político
propício para grandes negociações, a situação das contas públicas torna
imprescindível que a classe política atue de maneira extremamente diligente na
condução da política fiscal. Não resta dúvida, o cobertor está bastante curto.
Ninguém quer arcar com o ônus do ajuste. A chiadeira é grande. Por isso, é
importante que o debate político seja travado da forma mais transparente
possível. Diante desse cenário conturbado, não deve haver espaço para orçamento
secreto e nada que oculte dados ou informações relacionadas ao interesse
público. Nessa linha, um sistema de estatísticas de excelência ajuda
sobremaneira a promover um debate político mais claro e objetivo.
Adicionalmente, a dita polarização política
presente no exterior também é realidade no Brasil. O diálogo parece cada vez
mais difícil entre grupos antagônicos. Por isso, para que não se perca a
oportunidade de comunicação e de troca entre os mais diversos atores políticos,
é fundamental que a transparência propiciada por um sistema de estatísticas
públicas nacionais receba muita atenção, cuidado e recursos. Afinal,
estatísticas são ferramentas poderosas, mas não infalíveis. Quando mal
produzidas ou usadas de má-fé, podem conduzir a erros, injustiças e crise de
legitimidade. A solução não é rejeitar os dados, mas exigir qualidade,
transparência e diversidade de vozes em sua produção e interpretação.
Por fim, vale citar os desafios que o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), principal produtor de
estatísticas públicas do Brasil, terá pela frente. Entre 2024 e 2027, está
programada uma ampla revisão das principais estatísticas socioeconômicas
brasileiras. Ela teve início com a publicação, em agosto de 2024, das novas
projeções populacionais do Brasil até 2070 (“Revisão 2024”, baseada no Censo
demográfico de 2022), substituindo as projeções anteriores (“Revisão 2018”,
ainda baseadas no Censo de 2010).
Entre os meses de novembro de 2024 e 2025,
está indo a campo a coleta para uma nova edição da Pesquisa de Orçamentos
Familiares. A POF 2024-25, cujos primeiros resultados deverão ser publicados em
meados de 2026, irá atualizar a edição anterior, a POF 2017-18. Esse
espaçamento temporal de 6-7 anos entre as duas pesquisas, na verdade, é elevado
para os melhores padrões internacionais - nos EUA, a pesquisa de gastos das
famílias é atualizada anualmente pelo Bureau of Labor Statistics. No dia 31
deste mês, a Pnad Contínua revisada, desde 2012, será divulgada. Novos fatores
de extrapolação provenientes do Censo 2022 serão incorporados (já que se trata
de uma pesquisa amostral, que precisa ser “expandida” para chegar a números
compatíveis com o Brasil como um todo). Atualmente, a Pnad-C ainda utiliza
fatores do Censo 2010.
Já para meados de 2026, está programada a
mudança para o Sistema de Contas Nacionais Referência 2021, no lugar do atual
(SCN Referência 2010, que foi introduzido no Brasil em 2015). E há ainda a
previsão de que o IBGE realize um novo Censo Agropecuário em 2026, sendo o
anterior de 2017. Finalmente, prevê-se para janeiro de 2027 a atualização da
estrutura de ponderação do IPCA e INPC à luz das informações atualizadas
trazidas pela POF 2024-25.
Dentro dessa pesada agenda de revisão e
atualização estatística, o IBGE não tem ainda a garantia de que terá recursos
suficiente para cumprir essas obrigações. A título de exemplo, o órgão ainda
não tem a confirmação de que receberá os R$ 700 milhões para a realização do
Censo Agropecuário.
Em suma, cobrar transparência no uso dos
dados e apoio orçamentário para os organismos responsáveis pela produção das
estatísticas públicas nacionais não é um capricho técnico, e sim um imperativo
democrático.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV
Ibre
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