terça-feira, 1 de julho de 2025

Dados ou dogmas? O Brasil na encruzilhada - Luiz Schymura

Valor Econômico

Autoridade dos dados não vem apenas de planilhas precisas, mas de um equilíbrio delicado entre rigor científico, confiança política e uso pela sociedade

Um sistema de estatísticas de qualidade tem papel central no mundo contemporâneo. Não por acaso, pois na democracia de massas não há agenda nacional legítima sem alicerce estatístico. Na verdade, sem dados, a democracia vira um cabo de guerra de narrativas (exemplo: negacionismo da pandemia). As estatísticas representam o único campo de diálogo no qual governo, oposição e sociedade podem debater fatos. Contudo, é preciso frisar que a autoridade dos dados não vem apenas de planilhas precisas, mas de um equilíbrio delicado entre três pilares: rigor científico, confiança política e uso pela sociedade. Quando uma dessas frentes falha - seja por manipulação, isolamento técnico ou descrédito popular -, os dados perdem poder. Por conta disso, a autoridade dos dados não é dada: deve ser conquistada e mantida a cada dia.

No Brasil, essa dependência de dados entendidos como confiáveis se torna ainda mais crítica diante de um cenário econômico e político desafiador, como veremos ao longo do texto.

Vamos às evidências. Ao analisar o desempenho dos principais agregados macroeconômicos, constata-se que estão satisfatórios - o PIB cresce razoavelmente, a taxa de desemprego persiste num patamar próximo ao das mínimas históricas e a taxa de inflação permanece num nível aceitável. No entanto, a taxa de juro em torno de 7% reais ao ano (a.a.), necessária para estabilizar a inflação próxima à meta de 3% a.a., tem sido fator de imensa preocupação para os agentes econômicos. Afinal, em um cenário com juro real tão elevado, é preciso forte controle das contas públicas para mitigar o risco de desgoverno da dívida pública.

Contudo, o clima político dificulta um concerto para equilibrar as contas do setor público. O agastamento na relação entre os poderes Executivo e Legislativo - há grande dissintonia entre as pautas que o governo federal quer priorizar e as que os presidentes das casas legislativas efetivamente implementam - tem sido fator de forte desconfiança quanto à viabilidade de um ajuste fiscal convincente. Para piorar, com o avanço crescente do Congresso Nacional no controle do Orçamento público, o clima tenso entre os dois Poderes não dá sinais de arrefecer - o decreto legislativo que revogou o decreto presidencial do IOF e a sinalização do Executivo de que recorrerá ao STF dão uma boa medida da situação.

Assim, embora haja um ambiente político propício para grandes negociações, a situação das contas públicas torna imprescindível que a classe política atue de maneira extremamente diligente na condução da política fiscal. Não resta dúvida, o cobertor está bastante curto. Ninguém quer arcar com o ônus do ajuste. A chiadeira é grande. Por isso, é importante que o debate político seja travado da forma mais transparente possível. Diante desse cenário conturbado, não deve haver espaço para orçamento secreto e nada que oculte dados ou informações relacionadas ao interesse público. Nessa linha, um sistema de estatísticas de excelência ajuda sobremaneira a promover um debate político mais claro e objetivo.

Adicionalmente, a dita polarização política presente no exterior também é realidade no Brasil. O diálogo parece cada vez mais difícil entre grupos antagônicos. Por isso, para que não se perca a oportunidade de comunicação e de troca entre os mais diversos atores políticos, é fundamental que a transparência propiciada por um sistema de estatísticas públicas nacionais receba muita atenção, cuidado e recursos. Afinal, estatísticas são ferramentas poderosas, mas não infalíveis. Quando mal produzidas ou usadas de má-fé, podem conduzir a erros, injustiças e crise de legitimidade. A solução não é rejeitar os dados, mas exigir qualidade, transparência e diversidade de vozes em sua produção e interpretação.

Por fim, vale citar os desafios que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), principal produtor de estatísticas públicas do Brasil, terá pela frente. Entre 2024 e 2027, está programada uma ampla revisão das principais estatísticas socioeconômicas brasileiras. Ela teve início com a publicação, em agosto de 2024, das novas projeções populacionais do Brasil até 2070 (“Revisão 2024”, baseada no Censo demográfico de 2022), substituindo as projeções anteriores (“Revisão 2018”, ainda baseadas no Censo de 2010).

Entre os meses de novembro de 2024 e 2025, está indo a campo a coleta para uma nova edição da Pesquisa de Orçamentos Familiares. A POF 2024-25, cujos primeiros resultados deverão ser publicados em meados de 2026, irá atualizar a edição anterior, a POF 2017-18. Esse espaçamento temporal de 6-7 anos entre as duas pesquisas, na verdade, é elevado para os melhores padrões internacionais - nos EUA, a pesquisa de gastos das famílias é atualizada anualmente pelo Bureau of Labor Statistics. No dia 31 deste mês, a Pnad Contínua revisada, desde 2012, será divulgada. Novos fatores de extrapolação provenientes do Censo 2022 serão incorporados (já que se trata de uma pesquisa amostral, que precisa ser “expandida” para chegar a números compatíveis com o Brasil como um todo). Atualmente, a Pnad-C ainda utiliza fatores do Censo 2010.

Já para meados de 2026, está programada a mudança para o Sistema de Contas Nacionais Referência 2021, no lugar do atual (SCN Referência 2010, que foi introduzido no Brasil em 2015). E há ainda a previsão de que o IBGE realize um novo Censo Agropecuário em 2026, sendo o anterior de 2017. Finalmente, prevê-se para janeiro de 2027 a atualização da estrutura de ponderação do IPCA e INPC à luz das informações atualizadas trazidas pela POF 2024-25.

Dentro dessa pesada agenda de revisão e atualização estatística, o IBGE não tem ainda a garantia de que terá recursos suficiente para cumprir essas obrigações. A título de exemplo, o órgão ainda não tem a confirmação de que receberá os R$ 700 milhões para a realização do Censo Agropecuário.

Em suma, cobrar transparência no uso dos dados e apoio orçamentário para os organismos responsáveis pela produção das estatísticas públicas nacionais não é um capricho técnico, e sim um imperativo democrático.

*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre 

 

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