(Correio Braziliense,14 de julho de 2020)
Ao ler recente coluna do escritor José Paulo Cavalcanti Filho, na revista Será?, de Pernambuco, lembrei que toda nação requer um Panteão, onde lembrar personagens e heróis que fizeram o passado e formaram o presente. Estátuas são parte desses panteões. Mas, de vez em quando, descobrem-se pecados dos heróis e aparecem movimentos para
lhes retirar o nome e a estátua do Panteão. Nas últimas semanas, surgiram movimentos contra personagens que deram contribuições positivas ao mundo, mas patrocinaram escravidão e racismo.
José Paulo alerta para os riscos desses gestos bem-intencionados: ao derrubar estátuas de escravocratas, derruba-se parte da história da escravidão. Melhor do que pôr ao chão estátuas seria escrever os crimes no pedestal - escravocrata, torturador, explorador, colonialista - transformando homenagens em denúncias, sem apagar a história. Com isso, não se presta a homenagem do esquecimento a um escravocrata fundador de uma universidade, por exemplo.
Ao derrubar a estátua, os alunos se esqueceriam da origem do dinheiro que serviu para construir o prédio onde assistem às aulas, a biblioteca onde estudam, os laboratórios onde pesquisam. Todas as grandes e tradicionais universidades americanas foram fundadas por donos ou traficantes de escravos. Recentemente, elas assumiram os pecados.
Se criarmos estátuas apenas de personagens perfeitos, raros papas estariam ainda firmes em pedestais, raros filósofos resistiriam ao escrutínio de hoje, provavelmente nenhum general ou político. Porque o valor das lembranças é medido pelo que pensam as gerações no presente. Além disso, as estátuas não são apenas história e homenagem, são também obras de arte, e com valor e transcendência estética que merecem respeito, independentemente do que representam.
A estátua em pedestal é para homenagear e formar sentimento coletivo de nação. Para tanto, é preciso combinar memória e explicação plena da biografia do homenageado. Sem esquecer que foram escravocratas, mas lembrando que a sociedade do passado tolerava essa maldade.
No Brasil, ainda não fizemos a autocrítica. Até o final do século 19, quase todos
os que não eram escravos tinham escravos. Diz-se que alguns ex-escravos livres no Quilombo dos Palmares tinham cativos. Até então, prédios de faculdades eram construídos por escravos. Até hoje, são erguidos por operários com mínimos salários, e raros de seus filhos estudarão nelas. Algum brasileiro de hoje mereceria uma estátua, no futuro, quando forem lembrados os privilégios usufruídos por ele, diante das relações sociais perversas ao redor, graças à concentração de renda?
Quando cheguei ao Senado, minha sala ficava na Ala Senador Felinto Muller, lembrado por ter sido chefe da tortura nos tempos do primeiro governo Vargas. Eu não podia mudar o nome oficial, mas nos meus cartões colocava Ala da Biblioteca do Senado. Fui favorável a mudar o nome da Ponte Costa e Silva para Honestino Guimarães. A luta do estudante pela liberdade e igualdade tinha valor mais sintonizado com o futuro desejado do que a obra autoritária do general.
O casamento da lembrança histórica com os valores morais do presente fizeram Ruy Barbosa cometer crime contra a história ao queimar documentos da escravidão, apagando nome de escravos e seus donos com o propósito de expor a “virtude a favor do futuro”, impedindo que descendentes dos donos pedissem indenização ao Estado brasileiro.
Verdade, história e estética devem ser a base para justificar a permanência da homenagem e seu papel pedagógico. Formar a memória completa dos povos com os erros e acertos de seus heróis. No lugar de derrubar estátuas, melhor criar uma ala para manter o nome e a cara dos escravocratas, dos racistas, dos colonialistas. Nessa ala, os visitantes poderiam vaiar e cuspir nos malditos.
Teríamos dois panteões, uma ala para os bons e outra para os maus. Espécie de Divina Comédia da História, teríamos duas alas: a dos heróis e a dos malditos. Dependeríamos do humor de Deus na história que, de tempos em tempos, mandaria mudar o endereço da estátua - embora tenhamos o direito de desejar que racistas e escravocratas enferrujem no antipanteão.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
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