- Valor Econômico
Alvo é Gilmar Mendes, mas raiva da caserna é ver frustrado plano de mostrar independência em relação a Bolsonaro
Orientador de dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas por militares, o professor da UFRJ e da UFRRJ Francisco Teixeira costuma travar conversas semanais com um grupo de 11 ex-alunos - seis generais, um almirante e quatro coronéis, da ativa e da reserva.
Na mais nova polêmica, o Ministério da Defesa, como se sabe, protocolou uma representação na Procuradoria-Geral da República contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que havia associado a atuação dos militares no Ministério da Saúde a um “genocídio”, devido às mortes na pandemia do novo coronavírus.
A fala ocorreu no fim de semana, mas ainda não foi digerida pelos oficiais. “Eles estão muito irritados por causa da palavrinha forte, genocídio, mas o gozado é que reconhecem que o negócio está errado”, conta Teixeira, que já lecionou na Escola Superior de Guerra (ESG) e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).
O “negócio”, em primeiro lugar, é a presença do general da ativa Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde. Especialista em logística, Pazuello deveria exercer uma interinidade, desde a saída do empresário e oncologista Nelson Teich, que durou 28 dias no cargo.
Há 62 dias na função, Pazuello está mais que o dobro do tempo que Teich. Nesse período, o número de mortos pela covid-19 no país saltou de 15 mil para mais de 75 mil.
O segundo erro que os militares reconhecem, afirma Teixeira, seria o profundo desmonte promovido no ministério por alguém que, no máximo, deveria estar de passagem. Pazuello desalojou quadros técnicos e instalou pelo menos 25 colegas de farda no primeiro escalão da Pasta, a maioria sem experiência na área, assim como ele próprio. Em alguns casos, diz, as substituições do general até optaram por médicos, mas sem qualquer notório saber em controle de pandemias.
A irritação dos militares, porém, seria menos com a acusação de Gilmar Mendes ou com Bolsonaro, já que o presidente não só não interveio de maneira firme a favor da caserna como sugeriu ao ministro da Saúde que conversasse com o magistrado. A exasperação seria de outra ordem, interna, como se a ficha tivesse caído. “O ponto principal é que as Forças Armadas, definitivamente, amarraram-se ao Bolsonaro e é isso, no fundo, a irritação delas. Não estão irritados com Gilmar, com Bolsonaro ou com o genocídio. Estão irritados com o fracasso da operação de relações públicas de se mostrarem como uma instituição independente. É isso que eles estão percebendo com o chute no balde dado pelo Gilmar: que fracassaram, sobretudo o Exército”, analisa Teixeira.
Para o historiador, os militares tentam tapar o sol com a peneira ao defenderem os 25 da Saúde, quando se sabe que há mais de 3 mil integrantes das Forças Armadas espalhados por todo o governo federal. Em sua opinião não vai adiantar tirar esse pequeno grupo - informação que começou a circular nos bastidores do ministério - e nem a saída de Pazuello, como antecipada pelo vice-presidente Hamilton Mourão. “Esperar agosto não vai mudar em nada. A única coisa que mudaria o carimbo de Bolsonaro que eles receberam seria tirar os militares que estão dentro do Palácio do Planalto. E isso eles não vão fazer. Estão umbilicalmente ligados ao destino do Bolsonaro”, diz, em referência aos três ministros/generais palacianos.
Antes mesmo do fracasso de relações públicas para se diferenciar do governo, a irritação dos militares é composta por outra derrota: a de domesticar o presidente da República. “Eles não podem fazer as duas coisas: tentar tutelar o Bolsonaro e, ao mesmo tempo, se separarem dele. E o Gilmar, inocentemente, ou como as pessoas querem, conspirativamente, evidenciou essa equação que não fecha. Ou são governo ou são independentes”, afirma.
O ministro do Supremo, segundo o professor, ainda que por meio de um arroubo de retórica, proposital ou não, durante uma transmissão ao vivo pela internet, “acertou o tiro” e “a vítima é o Pazuello”. “Porque, agora, já se estabeleceu o prazo. Eles não podem exonerá-lo amanhã de manhã, porque seria um escândalo, seria a aceitação de que, de fato, está havendo um genocídio, mas já disseram que em agosto ele vai sair. Encaçaparam a bola”, afirma.
A fala de Gilmar tende a fortalecer o grupo das Forças Armadas que é refratário à presença de militares da ativa no governo Bolsonaro e que defende a passagem para a reserva, caso queiram permanecer com o presidente. O problema, pondera Teixeira, é que para a opinião pública não “faz a menor diferença se o militar está na reserva ou na ativa”.
Também especialista de longa data em militarismo, o ex-deputado federal e professor aposentado da UFF e da UFCE, Manuel Domingos, destaca o suposto papel contraditório do comandante do Exército, Edson Pujol. O general tem sido considerado o expoente da ala que prefere manter Bolsonaro à meia distância, mas não estaria evitando a militarização do governo, até por falta de maior pressão popular. “Ele vive um dilema muito profundo entre segurar e proteger o governo Bolsonaro ou a corporação, porque o Exército é abalado em seus alicerces. É uma enrascada”.
Segundo Domingos, a Marinha está “particularmente incomodada”, já que a conta da pandemia está chegando às Forças Armadas e a “face mais visível da mortandade e do descalabro da economia será a do militar”. “O Brasil será o campeão mundial desse campeonato macabro. Está na hora de os militares tirarem o time de campo”, defende.
O problema, reconhece, é a falta de unidade na cúpula militar, no que concorda Teixeira. “Isso é o mais improvável. Porque o Alto Comando teria que desautorizar todo esse grupo representado pelo Ramos, Heleno, Braga Netto e Mourão. Aí haveria um racha, um terremoto. É por isso que eles fazem o contrário: tomam a crítica a um deles, como foi a Pazuello, como ofensa às Forças Armadas e acham que os cargos são prebendas”.
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