- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O presidente quer ser um “mito” para seus seguidores ou continuar a governar o país? Depois da pandemia, será cada vez mais difícil assumir os dois papéis
As batalhas políticas do primeiro semestre deixaram marcas no governo Bolsonaro. Para que ele sobreviva e possa continuar com prestígio até o fim do mandato, mantendo alguma esperança de reeleição, precisará escolher com quem governar e de que modo. Caberá à Presidência escolher um caminho de governabilidade que reduza os efeitos danosos das contradições existentes entre seus apoiadores. Em poucas palavras, trata-se de uma encruzilhada entre dois conservadorismos, um de cunho revolucionário e outro, de viés tradicional. Juntar os dois por muito tempo será uma tarefa quase impossível.
A expressão conservadorismo revolucionário parece uma contradição em termos. Afinal, quando ser quer conservar, não se pretende fazer mudanças amplas e bruscas. Porém, o novo populismo de extrema-direita, presente em vários países e no bolsonarismo-raiz, tem como projeto enfraquecer ou destruir todas as instituições políticas de caráter liberal-democrático. Seus motes são a antipolítica, a luta contra o establishment globalista e a redução ao máximo da pluralidade ideológica, em especial com o aniquilamento da esquerda - os comunistas, classificação na qual cabe até George Soros.
Todas essas ideias visam à concentração do poder num líder carismático capaz de liderar uma revolução cultural baseada em valores mais conservadores (família patriarcal, religião e nacionalismo) que se somam ao culto à violência e a um individualismo darwinista, isto é, uma liberdade para os que mais fortes vençam. Esse é o ideário produzido pelos inspiradores intelectuais do bolsonarismo. É possível levar adiante esse conservadorismo revolucionário destruindo mais ou menos a democracia. De todo modo, a forma revolucionária de agir dos bolsonaristas-raiz exige que se cause turbulências contínuas no sistema político e nas principais instituições sociais, como a escola e os meios de comunicação de massa.
Os últimos seis meses foram repletos de acontecimentos políticos e sociais que colocaram a maior parte da população e as principais instituições contra Bolsonaro, limitando seus arroubos autoritários. O resultado dessa derrota bolsonarista colocou em jogo até a sobrevivência do presidente no cargo, além da forte pressão judicial contra seus filhos e apoiadores. Para manter seu mandato e continuar sendo peça-chave no tabuleiro político, Bolsonaro teve que se ancorar mais num outro grupo conservador, que é tradicional no Brasil há muito tempo.
Uma parte desse conservadorismo já estava próxima do bolsonarismo: os evangélicos, que tendem a ganhar mais prestígio daqui para diante. Mas havia uma outra parcela que estava fora do circulo mais íntimo do poder: o chamado Centrão, composto por políticos de vários partidos de direita e centro-direita. Trata-se de um bloco que varia de tamanho dependendo dos recursos que são distribuídos e do contexto político. O que os une é a combinação de fisiologismo com o realismo. Os parlamentares desse centrismo invertebrado apoiaram FHC e Lula, de modo que, embora professem valores geralmente conservadores, optam pelo apoio a quem lhes dá vantagens eleitorais. Dito de outro modo, não basta que Bolsonaro comungue das mesmas ideias morais. Será necessário entregar poder aos novos aliados e bem-estar a seus eleitores.
A convivência entre os dois conservadorismos ficará cada vez mais difícil dentro do governo Bolsonaro. É óbvio que o presidente vai tentar agradar aos dois lados, mas essa estratégia tem limites porque o grupo revolucionário é ideológico por excelência e terá dificuldades de aceitar o pragmatismo político dos conservadores tradicionais, e vice-versa. A batalha se tornará ainda mais forte porque houve um enfraquecimento do bolsonarismo-raiz e ele dificilmente responderá aos desafios do período pós-Covid-19.
Entre os fatores que enfraqueceram os conservadores revolucionários, quatro se destacam. O primeiro foi a derrota do discurso negacionista e anti-humanista frente à pandemia. A maioria da população ficou do lado da ciência, o sistema de Justiça amarrou as mãos de Bolsonaro no comando da política de Saúde e o número de mortes, que ainda se multiplicará nos próximos meses, deixará marcas em parcela importante da sociedade.
Derivado desse primeiro fator, um segundo elemento tende dificultar o uso da bússola do conservadorismo revolucionário: os eleitores, os políticos do Congresso, a comunidade internacional e mesmo os agentes do mercado local vão cobrar cada vez mais resultados das políticas públicas. Dois exemplos ilustram bem essa situação. No caso da política ambiental, o fracasso de suas ações vai ter terríveis consequências econômicas. Deixariam de vir investimentos internacionais para o país. A área de infraestrutura, que precisará da alavanca de capital estrangeiro, ficará a ver navios. E há ainda o grande risco do negacionismo ambiental impactar as exportações do país, especialmente do agronegócio.
O governo Bolsonaro terá que obter credibilidade internacional e mostrar resultados nas políticas de proteção ao meio ambiente. Para isso, terá de fortalecer decisões técnicas e se livrar dos conservadores revolucionários - que se mostraram, ademais, incompetentes. Vale frisar que além de melhorar os indicadores do país, será preciso reconquistar a confiança, algo que exigirá a criação de canais de diálogo com, pelo menos, uma parcela dos ambientalistas. Sem isso, o mundo não acreditará no Brasil. Uma mudança como essa exige pragmatismo e rechaço a ideologias.
A Educação é outro setor no qual o conservadorismo revolucionário só produziu destruição até agora, com efeitos na piora da qualidade e equidade do ensino que provavelmente apenas serão percebidos no médio prazo (talvez depois desse mandato), mas com efeitos políticos já de curto prazo. A lista de descontentes no atual momento é extensa. Famílias cujos filhos voltarão a escolas públicas em condições precárias; jovens que estão fazendo ou saindo do ensino médio e que ficaram descontentes com todo o processo de escolha das novas datas do Enem; integrantes das universidades públicas, que hoje combinam eleitores de classe média (professores e alunos) com uma parcela crescente advinda das cotas sociais e raciais, e das instituições privadas, onde os alunos estão abandonando cada vez mais os estudos por falta de recursos; e, finalmente, prefeitos, governadores e políticos locais de vários partidos, pois eles serão mais cobrados pela sociedade e não têm tido o apoio federal necessário.
Daqui pra frente, as falhas em políticas públicas vão ficar mais evidentes. Com um ano e meio de governo, o bolsonarismo, tomado principalmente pelo conservadorismo revolucionário, não foi capaz de melhorar ou produzir alternativas ao modelo vigente, de modo que chegará a hora e a vez dos cidadãos cobrarem mais pelos serviços públicos e pelos resultados das políticas. O Centrão sabe disso e, por isso, logo, logo, além de cargos, demandará mais pragmatismo ao presidente para continuar no seu barco.
Um terceiro fator que colocará o bolosonarismo-raiz em frágil situação serão as pressões internacionais. Elas tendem a aumentar porque o Brasil se tornou um pária para parte da comunidade internacional, por conta de seus fracassos nas áreas de saúde, meio ambiente e direitos humanos, bem como em razão de sua postura contrária às ações multilaterais. O impacto internacional sobre o conservadorismo revolucionário virá, ainda, do enfraquecimento recente da extrema-direita em vários lugares do mundo. E se Trump perder a eleição presidencial, Bolsonaro terá de dizer que nem conhece seus amigos radicais.
Mas a maior derrota do extremistas que deram base ao bolsonarismo está no campo das instituições democráticas. O projeto mais autoritário advindo daí ganhou limites fortes, embora não se possa negar que Bolsonaro ainda tentará controlar instituições importantes, como no caso do Ministério Público Federal. Só que os conflitos institucionais vão permanecer, sobretudo porque há muitos esqueletos no armário da família Bolsonaro. Desse modo, não será mais possível permanecer no poder e, principalmente, governar, sem ser pragmático em relação às principais instituições políticas.
Nesta encruzilhada ideológica, a sobrevivência do bolsonarismo parece depender de sua migração mais explicita para o conservadorismo tradicional. O discurso em relação aos valores pode ser mantido, embora deva ser expresso de uma forma mais amena, mas será necessário negociar mais e evitar o extremismo nas políticas públicas. O Centrão quer o voto do povão, e não revoluções culturais.
Abandonar o conservadorismo revolucionário não é tão simples, todavia. Essa mudança traz basicamente dois custos: a possível perda de apoiadores mais fiéis e, especialmente, o fato de que o discurso antipolítica se tornará cada vez mais “fake” junto ao eleitorado em geral. Fica a pergunta: Bolsonaro quer ser um mito para seus seguidores ou continuar governando o Brasil? Depois da pandemia, talvez seja cada vez mais difícil assumir os dois papéis, mas, conhecendo a personalidade do presidente (e de seus filhos), ainda não é possível dizer qual caminho ele irá adotar.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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