sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Flávia Oliveira - Crime sem trégua, que cansa

- O Globo

Ficamos nós, negras e negros brasileiros, à espera do próximo caso a ser gravado

O racismo não dá trégua. Nunca deu. Por muito tempo, não dará. Na esteira dos protestos nos Estados Unidos pelo assassinato de George Floyd, homem negro asfixiado até a morte por um policial branco, o assunto entrou no raio de visão de uma sociedade, a brasileira, até então acomodada aos antolhos da democracia racial. Dimensões variadas do racismo nacional passaram a ser percebidas e escancaradas e denunciadas. De uma hora para outra, avolumam-se os episódios, num processo assemelhado à multiplicação dos registros de violência doméstica após a Lei Maria da Penha, de assédio sexual a partir da campanha Me Too, de intolerância religiosa depois que a Região Metropolitana do Rio de Janeiro explodiu em ataques aos terreiros de candomblé e umbanda. Como resumiu o ator Will Smith, sobre os EUA, o crime não aumentou, está sendo filmado. A vocês, preciso confessar: é tão relevante quanto exaustivo.

Para pessoas negras, usando uma expressão da moda, falar de racismo é gatilho. Só falar de racismo, enlouquecedor. Em plena pandemia da Covid-19, o Brasil se mostrou disposto encarar o espelho da desigualdade racial que o forjou. Que bom. É todo dia um 7 a 1. Que péssimo. Ficamos nós, negras e negros brasileiros, à espera do próximo caso a ser gravado, escrutinado, comentado. Os últimos dias foram fartos de exemplos nefastos. Quando fazia uma entrega num endereço em Valinhos, o jovem Matheus Pires sofreu discriminação por raça e classe, dimensão interpessoal do crime, como tão bem cunhou Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional Brasil, na reunião pública organizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para tratar de igualdade racial no sistema judicial.

O encontro, anteontem, coincidiu com a divulgação da sentença em que a juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, escreveu três vezes que o réu Natan Vieira da Paz, primário, era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”. A peça deu materialidade ao racismo institucional presente na Justiça brasileira. No exercício da função, a magistrada usou a cor da pele como justificativa para a condenação. Por determinação do CNJ, a Corregedoria-Geral de Justiça do Paraná instaurou procedimento administrativo. A OAB-PR reivindicou apuração pelo Ministério Público. O advogado e filósofo Silvio Almeida, autor do livro “Racismo estrutural”, cobrou anulação da sentença.

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, numa análise de 23.497 audiências de custódia realizadas entre setembro de 2017 e 2019, observou que 80% dos homens e mulheres detidos eram negros. É preta ou parda a pele do suspeito padrão nas abordagens policiais e da maioria dos brasileiros encarcerados. Foi pela marcação racial presente na formação dos agentes da lei que o jovem negro Matheus Fernandes, quando tentava trocar um relógio no Ilha Plaza, foi abordado e agredido por uma dupla de policiais militares dublês de consultores de segurança do shopping. Mais um exemplo de racismo institucional, tornado público pela ação de testemunhas que filmaram a cena e, provavelmente, salvaram a vida do rapaz.

O racismo religioso desembocou na decisão de um juiz de tirar dos pais a guarda da filha de 12 anos, que se iniciava num terreiro de candomblé em Araçatuba (SP). Denúncia nunca confirmada de abuso sexual e maus-tratos deu origem à arbitrariedade, que envolveu Conselho Tutelar, Guarda Municipal, polícia, Ministério Público e Justiça de primeira instância. O MP já deu parecer favorável à restituição da guarda, mas o agravo ainda será julgado, informou o advogado da família, Hédio Silva, ex-secretário de Justiça de São Paulo.

Há o racismo escancarado, que dói. Há o racismo disfarçado, que dói também. É sobre racismo o julgamento no Supremo Tribunal Federal, que suspendeu as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro enquanto durar a pandemia da Covid-19. É negra a maioria dos brasileiros assassinados e dos jovens mortos em decorrência de intervenção policial. Nas periferias vivem mulheres e homens e crianças e jovens e idosos negros que predominam entre doentes, mortos e vulnerabilizados pela crise sanitária. São negras sete entre dez trabalhadoras domésticas do país; no segundo trimestre, 1,257 milhão ficou sem ocupação, segundo o IBGE. Negros estão sobrerrepresentados no desemprego, na informalidade, na baixa renda, nas doenças crônicas, nas condições habitacionais precárias, na falta de saneamento básico, acesso a computador e internet, usuários do Sistema Único de Saúde, estudantes da rede pública.

Para onde se olhe na sociedade brasileira, há uma face do racismo à espreita. Não há brecha para distração, escape, rota de fuga. É alentador o esforço que segmentos da sociedade — menos governo, mais imprensa, intelectuais, artistas e celebridades — estão fazendo para identificar, compreender e, em certa medida, combater essa anomalia. Mas preciso dizer aos colegas jornalistas, às amigas e amigos ativistas, às pessoas brancas bem-intencionadas, ao recém-formado pelotão antirracista que pensar — e só pensar — nisso machuca. E cansa.

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